Documentário da Netflix aborda o abuso sexual no esporte, um tabu ainda para as instituições
Maggie Nicohls, Simone Biles, Rachael Denhollander, Jamie Dantzscher. Mentirosas, ansiosas por atenção, gananciosas, amarguradas, vítimas. Heroínas, corajosas, fortes, protagonistas, sobreviventes. Falar sobre qualquer tipo de violência nunca é fácil, mas quando o foco do debate é abuso sexual, assédio e estupro, o assunto tem a potência de gerar as dualidades de opiniões manifestadas acima.
A dificuldade de nomear, encarar e combater esse tipo de violência pode ser verificada através da análise de dados. Segundo o relatório Global Status Report on Preventing Violence Against Children 2020, produzido pela Organização Mundial da Saúde, metade das crianças do mundo, ou aproximadamente 1 bilhão de crianças, a cada ano, é afetada por violência física, sexual ou psicológica.
Quando se une a temática da violência sexual ao esporte a discussão fica ainda mais nebulosa. Para além da promoção da saúde física, a prática esportiva carrega ideias de coragem, heroísmo, sucesso e determinação que constroem a imagem dos atletas, inspirando crianças a se dedicarem cada vez mais cedo a uma modalidade de preferência.
No entanto, é nos bastidores dos jogos e competições que uma faceta sombria se esconde: em torno da iniciação esportiva, dos longos treinos e de acompanhamento médico regular há um abuso sistemático de poder que expõe crianças e adolescentes a situações de violência.
Atleta A, um documentário dirigido por Bonni Cohen e Jon Shenk, disponível na Netflix desde junho, apresenta essa realidade. O longa acompanha a equipe de jornalistas investigativos do The Indianapolis Star e as atletas Rachael Denhollander, Jamie Dantzscher, entre tantas outras, que tornaram públicas suas vozes contra o abuso sistemático de jovens na ginástica olímpica nos Estados Unidos, por Larry Nassar, médico oficial da equipe.
“Até agora, eu era identificada como a ‘Atleta A’ pela USA Gymnastics [Federação Americana de Ginástica], pelo Comitê Olímpico dos Estados Unidos e pela Universidade de Michigan. Quero que todo mundo saiba que ele [Nassar] não fez isso com a ‘Atleta A’, e sim com Maggie Nichols”. Essa foi a declaração escrita pela ginasta e campeã mundial, Maggie Nichols, lida pela sua mãe no julgamento contra o ex-médico da equipe de ginástica artística.
A ginasta foi a primeira a formalizar denúncia de assédio sexual contra Nassar, em uma investigação que o condenou a mais de 360 anos de prisão por crimes sexuais contra menores. Foi o depoimento dela que desencadeou mais de cem acusações de outras ginastas e ex-ginastas.
O documentário mostra que a decisão de denunciar o médico da equipe, em 2015, prejudicou a carreira promissora de Maggie e que, à época, a comissão, a equipe técnica e outros responsáveis pela segurança das atletas ignoraram a denúncia. Os dirigentes, que sabiam do comportamento do médico, deixaram o nome da atleta fora da lista de ginastas, mesmo ela sendo uma das mais cotadas para representar os Estados Unidos nos Jogos do Rio-2016.
O caso das ginastas retratado no documentário não é isolado. Denúncias registradas pelo serviço Disque 100 confirmam que 92% das crianças e adolescentes que sofreram violência sexual, entre 2011 e 2017, eram do sexo feminino.
De acordo com as professoras do curso de Psicologia da Unisinos e integrantes do Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS), Michele Scheffel Schneider e Zuleika Köhler Gonzales, a cultura patriarcal é o que permite que muitas mulheres e meninas tenham seu corpo visto como objeto, ou seja, a aparência delas importa mais do que todos os outros aspectos que as definem enquanto indivíduos.
É a partir dessa banalização que a maioria dos abusadores sente liberdade em tocar, violar, invadir o corpo e o espaço do sexo feminino. Zuleika define o patriarcado como um sistema social em que homens mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. “A cultura patriarcal domina os mercados, as relações, domina a maneira da gente se colocar no mundo”, confirma a psicóloga.
No esporte, essas relações de disparidade de gênero ficam evidentes quando olhamos para os salários pagos a equipes masculinas e femininas. Em 2018, a UN Women publicou uma comparação mostrando que apenas o salário anual de Messi naquele ano — $84 milhões de dólares — era duas vezes superior ao salário combinado de 1693 jogadoras — $42.6 milhões de dólares — das sete ligas principais de futebol feminino. “O esporte é uma máquina de fazer dinheiro, sobretudo o futebol masculino no Brasil, é por isso que ele aparece tanto e isso dita o lugar que a mulher ocupa nele”, completa Zuleika.
No Brasil, a captação de dados que mostram a realidade da violência sexual contra crianças e adolescentes é ainda incipiente. Os motivos são a falta de integração dos órgãos responsáveis e a falta de padronização dos dados coletados, somado ao problema da subnotificação. A estimativa é que apenas 10% dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes sejam, de fato, notificados às autoridades no país.
Para a psicóloga Michele, isso se dá porque muitas vezes a vítima é culpabilizada e desacreditada pelos responsáveis que recebem as queixas. No esporte, ela indica que os atletas são cercados por grandes expectativas criadas por eles próprios, pelos pais ou pelos treinadores. Isso cria a ideia de que uma denúncia de violência poderia representar uma quebra dessas expectativas. “Às vezes se coloca uma expectativa enorme e não se escuta se eles realmente querem seguir no esporte, se há outras possibilidades, ainda mais com as mulheres e meninas. Elas ficam sem serem escutadas”, conta a psicóloga.
Além disso, quando a criança ou adolescente já está em uma situação de vulnerabilidade em casa ou não tem um vínculo de confiança com algum responsável, a situação se agrava. “Quando essa rede de apoio é falha, a identificação da violência fica ainda mais prejudicada”, completa.
Para a professora e Conselheira do Conselho Regional de Educação Física, Débora Rios Garcia, as federações e instituições deveriam adotar medidas de proteção aos atletas, mas em função do ideal de rendimento a saúde mental e o bem-estar ficam em segundo plano. “Como os clubes são dirigidos por homens, eles tendem a abafar estes casos. Muitos têm o pensamento voltado para a performance do atleta e esquecem do indivíduo”, afirma Débora.
Segundo a conselheira, o esporte é essencial no combate à violência. “Nossos atletas devem ter bem claro o direito sobre o seu corpo”, salienta.
Atletas brasileiros como Joanna Maranhão, Petrix Barbosa e Diego Hypólito são algumas das vozes que decidiram trazer à tona a violência sexual e psicológica que viviam nos bastidores. Eles fazem parte da nova geração que trouxe o debate para a frente das câmeras, para os jornais e, principalmente, para as redes sociais.
Movimentos como o #MeToo, o Maio Laranja, #NãoMereçoSerEstuprada e #NiUnaAMenos têm inspirado cada vez mais denúncias e discussões sobre o tema nas salas de aula, no mercado de trabalho e nas comunidades. “Os jovens que sofreram abuso achavam que só acontecia com eles, porque tudo era abafado nos clubes. Com o advento das redes sociais, tudo veio à tona”, confirma a conselheira Débora.
É graças a esse cenário midiático e aos movimentos sociais que esse debate tem ganhado mais espaço. “Eu entendo que a denúncia faz parte de todo um movimento mais amplo que é propor e, ao mesmo tempo, abrir espaço para uma multiplicidade de vozes. Isso vem em uma crescente de lutas que já acontecem há algumas décadas”, afirma a psicóloga Zuleika. “A denúncia vai questionando e tensionando esses lugares tão bem estabelecidos na cultura patriarcal”, complementa.
A violência sexual na infância tem consequências que marcam o crescimento da criança e do adolescente. “Em termos gerais, tem muitos efeitos. O abuso sexual é um trauma e essas situações traumáticas deixam no psiquismo uma marca de algo não representado, sem nome, sem um simbolismo, sem um sentido, isso deixa uma angústia, e dependendo da intensidade do trauma, vai se revelar de outras formas”, ressalta a professora Michele. Depressão, melancolia, baixa autoestima, insegurança e medos excessivos são algumas reações listadas por ela, que podem variar de acordo com a intensidade das agressões e com a idade da criança ou adolescente agredida.
Mesmo com os altos índices de violência e o número reduzido de denúncias, polêmicas envolvendo o veto da educação sexual nas escolas seguem acontecendo no atual governo. A professora de educação física Débora acredita que o caminho para o combate é justamente o inverso. “Podemos falar sobre a educação sexual através de atividades que trabalham o cognitivo, emocional, físico e social. O objetivo é preparar as crianças e jovens com conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que os empoderem para viver sua saúde e bem-estar com dignidade, além de desenvolver relacionamentos sociais respeitosos”, comenta.
Para além da integração da educação sexual nas escolas e instituições, a professora defende que sinais de agressão devem ser imediatamente investigados. “Quando notarmos as brincadeiras que fazem sobre técnico, massagista ou outra pessoa envolvida com o clube, sobre sexualidade, deve-se imediatamente averiguar. Ao contratar um técnico, pesquisar sua vida pregressa. Havendo qualquer dúvida, vetar sua contratação”, ressalta.
Nesse mesmo sentido, a psicóloga Michele acredita que o caminho para combater a violência sexual está no diálogo aberto sobre o assunto. “Criar espaços para falar sobre isso é, com certeza, um caminho. Há muito tabu para falar sobre sexualidade. E poder falar com as crianças, dentro da linguagem delas, sobre as mudanças e sobre os limites do corpo na escola é uma alternativa”, afirma.
Serviço
Segundo o artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), você deve fazer uma denúncia no caso de suspeita ou confirmação de violações de direitos humanos de crianças e adolescentes, de qualquer tipo, incluindo a violência sexual (abuso ou exploração sexual).
Polícia Militar — 190
Disque Direitos Humanos — 100
Disque Denúncia -180