CRÍTICA: Documentário premiado discute a união dos trabalhadores
“Indústria Americana” debate o choque cultural entre os modelos de trabalho dos Estados Unidos e da China
Vencedor do Oscar de 2020 na categoria melhor documentário de longa-metragem, Indústria Americana narra a história da instalação da empresa chinesa Fuyao Glass na cidade de Dayton, em Ohyo, em uma fábrica que abrigou uma montadora de automóveis até 2008. A obra, dirigida por Julia Reichert e Steven Bognar, tem como protagonistas gestores e funcionários e apresenta o choque cultural entre norte-americanos e chineses durante a instalação da corporação, entre os anos de 2015 e 2017.
Disponível na Netflix, a produção também traz o antagonismo da função do trabalho na vida de cada um, a presença da China como uma potência capitalista nos Estados Unidos e a precarização das condições enfrentadas pelas pessoas no emprego. Em pouco mais de 110 minutos, Indústria Americana consegue oferecer uma perspectiva mundial das dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores.
Logo no início do documentário são mostradas imagens de líderes sindicais discursando, após o fechamento da fábrica da General Motors, que viria a abrigar a empresa de vidros automotivos chinesa em 2015. Quase como uma contraposição ao primeiro momento do documentário, depois é apresentada uma sala na qual acontecem a breve apresentação e o primeiro contato com os interessados em trabalhar na organização de origem asiática. Com tal dualidade, a produção indica a proposto de dar voz aos protagonistas envolvidas no processo de instalação da empresa, independente da posição ocupada ou opinião expressa nos relatos.
Enquanto os diretores retratam tais situações, pode-se ver o maquinário pesado em funcionamento e alguns funcionários manuseando cuidadosamente os vidros. Aliado a uma trilha sonora bem animada, somos induzidos ao otimismo que toma conta de todos envolvidos no processo: funcionários e diretores da organização, políticos locais e até mesmo a imprensa.
Para contextualizar, temos o grande evento inaugural organizado pela empresa, com a presença do presidente da Fuyao Glass discursando muito sorridente ao mencionar a instalação de sua organização nos Estados Unidos. Contudo, neste dia, a fala de um deputado local mencionando a tradição de sindicatos de trabalhadores naquela região incomoda os membros da diretoria.
Conforme o desenrolar do roteiro, o tema ganhará cada vez mais peso, evidenciando o “calcanhar de Aquiles” dos mandachuvas da empresa chinesa. A proximidade da relação dos diretores com os documentaristas possibilita uma imersão às condutas dos gestores de uma multinacional, como pode-se ver na reunião em que se discute o artigo publicado acerca da instalação da empresa em um jornal local.
Com o objetivo de oferecer uma percepção da personalidade daqueles empregados, os documentaristas reúnem relatos de pessoas com diferentes experiências de vida, na tentativa de aproximá-los e, assim, criar uma percepção coletiva de “quem”. Começamos com o funcionário acompanhado desde sua casa até chegar na empresa, contando com emoção o significado de voltar àquele local em que também trabalhou na montadora. Tem o relato da trabalhadora que mora no porão da casa da irmã e, depois de anos desempregada, pretende voltar à classe média.
Outra funcionária compartilha as dificuldades de se adequar àquele trabalho. Antes, quando trabalhava na montadora, ganhava 29 dólares por hora; hoje recebe quase a metade do salário, o que traz dificuldades para manter sua família. Empregado da Fuyao Glass há mais de 20 anos, um homem chinês conta que ficará na empresa por dois anos, sem a possibilidade de visitar sua família nesse período, mostrando o quanto se doa para a empresa.
Com este apanhado de diferentes histórias, os documentaristas conseguem se vincular e se aproximar da vida dos trabalhadores. Isso proporciona uma sensação de identificação nas pessoas que ou tem história semelhante, ou tem um familiar muito próximo ou simplesmente conhecem alguém com trajetória parecida.
Quando os documentaristas começam a entrar na vida dos funcionários americanos e chineses, é visível a diferente maneira de enxergar a função do trabalho para cada cultura. Os americanos e, até mesmo, o Ocidente em geral, veem o trabalho como o local no qual irão ganhar dinheiro para manter sua família, acessar alguns bens de consumo e ter lazer, ou melhor, com o objetivo de ascender à classe média ou enriquecer. Por sua vez, os chineses têm o trabalho como algo que traz dignidade para sua vida, o que talvez seja uma visão limitada pela condição dos diretores do documentário, que são americanos, oferecendo uma perspectiva mais positiva da função do trabalho no Ocidente.
Com visões tão distintas, o desempenho em funções semelhantes acaba sendo bem diferente. Como a unidade americana apresenta baixa lucratividade e produtividade, é organizada uma visita à empresa no país asiático. Durante a viagem, o funcionário da sede chinesa, em conversa com o colega estadunidense, diz que os norte-americanos são preguiçosos pela baixa produtividade, tendo em vista a jornada de trabalho de 8h diárias e as folgas nos finais de semanas.
Para ele, pensar em baixa produtividade é algo inimaginável pelas condições de trabalho dos norte-americanos, comparando à rotina dos empregados da empresa no país asiático: trabalham 12h por dia e têm um dia de folga a cada dois finais de semana. Tal situação é uma tentativa do documentário apresentar como os trabalhadores de uma mesma multinacional tem realidades tão distintas.
Ao longo da viagem, duas situações causam espanto. A primeira delas é a concentração, dedicação e aplicação dos funcionários chineses enquanto estão no ambiente de trabalho. Os empregados relatam que conseguem visitar a família somente duas vezes em um ano. Tal condição é inimaginável para quem está inserido no mundo do trabalho no Ocidente. Mesmo com a rotina de trabalho consumindo um terço do dia, as pessoas conseguem ter algum convívio familiar. A segunda situação de estranheza são os funcionários manuseando pedaços de vidro quebrados sem equipamentos de proteção individual recomendados: usam somente uma luva, sem estar com óculos indicado para proteger os olhos.
Na unidade de Dayton, nos Estados Unidos, o chefe da segurança do trabalho acompanha o cotidiano dos funcionários e fica numa situação bem difícil. É cobrado para garantir que as instalações sejam seguras, mas diz que assegurar um ambiente de proteção requer investimentos, o que nem sempre parece ser desejado pelos gestores. Fica implícito, mas parece que ele tem dificuldades em melhorar a segurança dos funcionários pela resistência de quem controla os gastos da empresa.
Com o documentário concentrando na Fuyao Glass America, temos as primeiras demissões nos cargos de alto escalão na diretoria. Outro ponto é a retirada dos norte-americanos dos cargos de gestores, sendo ocupados somente por profissionais chineses. Para a comunidade local, ficam somente os cargos no chão de fábrica, aqueles com maior periculosidade.
Embora desde o começo a empresa coloque funcionários das duas nacionalidades em muitas funções, as relações parecem cada vez mais difíceis e o sentimento inicial de uma relação amistosa desaparece. O foco passa a ser somente em tornar aquela unidade rentável, justificando o alto investimento do empresário chinês em Dayton. Tais acontecimentos
De acordo com o mostrado pelo documentário, o maior conflito entre os mandachuvas e os funcionários da empresa é a organização do sindicado de trabalhadores. Como toda narrativa, o confronto gerado pela discussão acerca do tema toma conta do documentário, pois gera uma expectativa dos próximos acontecimentos a seguir. Inclusive, a trilha sugere a tensão vivenciada por todos naqueles dias no qual antecederam a votação para fundação da organização representativa dos trabalhadores.
Com a posição das lideranças empresariais representadas pela obra sendo veementemente contra a organização sindical, é possível aproximar ao visto no Brasil. Para contextualizar, na reforma trabalhista de 2017, a contribuição sindical passou a ser opcional e assuntos antes negociados com os sindicatos, passaram a ser tratadas entre empresa e funcionário. Ponto para o documentário por oferecer uma visão bem otimista da necessidade do engajamento e da formação de coletivos para defesa dos trabalhadores.
Mesmo com a possibilidade de ter o emprego remunerado, as pessoas precisam se colocar em condições nem sempre favoráveis ao desempenho da função, pela necessidade de ter uma renda mensal e sobreviver. E com a precarização cada vez maior das funções e empregos com salário que parecem estar sempre em desacordo com a inflação, grande parte das pessoas tem trabalhado para subsistir. Na obra, tal condição é apresentada sob a ótica americana, o que não chega a ser um problema para a visão brasileira, pois estamos inseridos no Ocidente e as relações de trabalho são semelhantes.
Um representante da Fuyao justifica que o sindicato chinês da empresa consegue manter a engrenagem em pleno funcionamento — relação entre trabalhadores, empresa e Estado — pela compreensão de que todos estão no mesmo barco. Nas palavras dele, se a empresa quebrar, os postos de trabalho desaparecem junto.
Tal afirmação é questionável, uma vez que a condição de vida do trabalhador parece cada vez mais repleta de dificuldades, enquanto o grande empresário fica com sua fortuna cada vez maior. Ou seja, Indústria Americana consegue retratar de uma maneira bem intimista a vida do trabalhador no chão de fábrica, com um recado bem simples e ainda atual: trabalhadores do mundo, uni-vos.