Dois anos de TRANSformação nos parlamentos municipais gaúchos

Vereadoras trans do Rio Grande do Sul relatam obstáculos e avanços encontrados nos seus mandatos nos legislativos

Bábiton Leão
Redação Beta
6 min readMay 5, 2022

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Vereadoras cravaram uma bandeira de representatividade no Estado (Imagem: Reprodução/Canva)

O Brasil foi marcado, na última eleição, pelo avanço da diversidade e da representatividade. Em 2020, as Câmaras Municipais registraram aumento de 275% no número de vereadores travestis e transexuais eleitos.

Os dados apurados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) fazem uma comparação com 2016, quando apenas oito pessoas foram nomeadas. Agora, 22 travestis e transexuais ocupam posições nos parlamentos.

No Rio Grande do Sul, São Borja, Rio Grande e Entre-Ijuís foram os únicos a eleger vereadoras transexuais. Dois anos depois de eleitas, as representantes seguem esbarrando em obstáculos causados pelo preconceito.

Apesar de semelhantes, o cotidiano das vereadoras demonstra algumas diferenças pontuais. A Beta Redação conversou com Maria Regina da Conceição (PT), de Rio Grande; Yasmin Prestes (MDB), de Entre-Ijuís; e Lins Robalo (PT), de São Borja, para saber como está sendo o período de mandato.

Representatividade na Câmara mais antiga do Estado

Mais conhecida como Regininha, a vereadora Maria Regina da Conceição (PT) foi eleita com 930 votos em 2020 no município de Rio Grande, no Litoral Sul do Estado. No cargo, encarou o mesmo preconceito que enfrenta desde os 17 anos, quando se descobriu transexual.

Hoje, aos 41 anos de idade, ela usa da experiência para lidar a situação.

“Eu já posso dizer que tinha uma pós-graduação em preconceito. Portanto, sabia como lidar com essas adversidades e com essas formas de exposição”, relata Regininha.

Ela precisou se provar digna até dentro do próprio partido. Filiada ao PT desde 2014, conta que a aceitação veio pelo convencimento diário e pela ocupação do espaço. Mesmo assim, ainda teve que vivenciar situações discriminatórias.

Regininha, vereadora no município de Rio Grande pelo Partido dos Trabalhadores (Foto: Arquivo pessoal/Maria Regina da Conceição)

Regininha acredita que os partidos políticos são reflexo da sociedade e, muitas vezes, reproduzem formas de exclusão. Exemplo disso é a forma como foi recebida pelos colegas. Depois de eleita, relata não ter recebido ameaças diretamente, mas viu muitas caras feias e perdeu alguns contatos — principalmente de pessoas vinculadas à esquerda.

Por não acreditarem que ela poderia ocupar a posição, houve mais dificuldade em aceitá-la como representante do povo. “Algumas pessoas acabaram por não aceitar essa vitória de uma mulher trans pela primeira vez no Legislativo mais antigo do Estado”, explica.

Ameças durante o mandato

Mesmo tendo uma convivência tranquila e respeitosa dentro da Câmara de Vereadores, Regininha afirma ter recebido ameaças de eleitores de outros candidatos. As pessoas se dirigiam a ela como “vereador travesti do PT”, ou “vereador”, não respeitando a sua identidade de gênero.

No cotidiano na Câmara, alega ter seus projetos recebidos de maneira diferente.

“Algumas pautas que eu trazia — como a identidade de gênero, a questão do nome social e de educação — eram muitas vezes questionadas, e alguns projetos dados como inconstitucionais”, assegura Regininha.

Foi só depois de cobrar o presidente da Casa, Filipe Branco (MDB), por uma postura da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que as coisas começaram a mudar.

O preconceito, mesmo que velado pelo “medo do cancelamento”, segundo a vereadora, ainda é comum. Para enfrentar as violências, Regininha se apoia na sua equipe de trabalho. Formada por um chefe de gabinete e quatro assessores LGBTQIA+, a bandeira da diversidade foi levantada dentro da casa pela primeira vez.

A vereadora diz gostar de atuar na rua, conversar com os moradores nos bairros e fiscalizar. Por ser da oposição e estar em menor número de representantes na Câmara, seus projetos encontram mais dificuldade para avançar no Legislativo.

Ainda assim, Regina consegue cumprir sua função de forma efetiva, legislando e fiscalizando o Executivo. “Isso eu tenho conseguido fazer de forma tranquila, sem nenhum tipo de obstáculo ou preconceito nas comunidades”, afirma.

Seu medo, no momento, é ter o mandato prejudicado pelo preconceito, pelas fake news ou por atos que, na maioria das vezes, não são compreendidos por pessoas cisgênero. Para exemplificar, a vereadora menciona uma situação transfóbica em que se envolveu.

“Foi por conta de um menino trans que estava fazendo uso do banheiro feminino, pois não estava conseguindo usar o banheiro de acordo com sua identidade. Nós fizemos uma ação e ela acabou tendo uma proporção muito grande no município. Algumas pessoas acabaram, dentro de grupos de WhatsApp nas suas relações, espalhando fake news a meu respeito”, expõe Regininha.

Mesmo com as dificuldades, ela está conseguindo pôr em prática os seus planos para a cidade. “Minha vida de parlamentar é bem corrida, cansativa e exaustiva, mas tenho conseguido avançar com os meus planos e objetivos”, complementa Regininha.

Igualdade de gênero faz o trabalho fluir melhor

Ao contrário de Regininha, a vereadora Yasmin Prestes (MDB) encontrou na Câmara de Entre-Ijuís um lugar de acolhimento. Primeira transexual eleita na Região das Missões, ela cresceu no município que tem cerca de 9 mil habitantes, segundo o último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Yasmin atribui seus 260 votos na eleição de 2020 ao envolvimento que tem com os trabalhos sociais. “Como nasci e me criei no município, são pouquíssimas pessoas que não conheço. O trabalho voluntário que eu exerço me deixa mais próxima das pessoas”, relata.

Yasmin Prestes, vereadora no município de Entre-Ijuís pelo MDB (Foto: Arquivo pessoal/Yasmin Prestes)

Entre-Ijuís proporcionou uma campanha tranquila dentro e fora do partido. Após a eleição, a vereadora foi recebida por todos com alegria e respeito — o que ela enxerga como uma redução de preconceitos.

Dentro da Câmara de Vereadores, o apoio é geral. Além de nunca ter sido discriminada, Yasmin afirma que não existe diferenciação entre ela e seus colegas homens. “Meus projetos são aceitos como de qualquer outro colega de Parlamento”, aponta.

O apoio da cidade, sua persistência e vontade fizeram com que o nervosismo no novo cargo fosse dissipado. Atualmente, ela está colocando em prática seus projetos para a cidade. “Tudo está fluindo com naturalidade”, conta.

O diálogo é a base na Terra dos Presidentes

Eleita em São Borja com 678 votos, a vereadora Lins Robalo (PT) carrega consigo muita representatividade. Ela é a única mulher eleita e a única representante dos negros na Câmara do município.

Por não ser a primeira mulher trans dentro do partido, a aceitação dos colegas foi natural durante o pleito. Natural de São Borja, ela foi bem recebida pela maioria dos moradores — inclusive aqueles que não fazem parte do seu eleitorado.

Depois de eleita, a situação mudou. Lins relata encontrar preconceito em seu mandato devido ao diálogo que mantém com os grupos minorizados em espaços de poder, como as comunidades negra e LGBTQIAP+.

Representante de mais de uma bandeira, ela conta que já recebeu ameaças devido aos seus posicionamentos na luta antirracista.

“Já fui ameaçada por posicionamentos antirracistas que denunciam todas as perversidades que os corpos pretos e diversos recebem na sociedade”, denuncia Lins.

Conhecida por ser uma das fundadoras do movimento Girassol, Amigos na Diversidade, Lins é também mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

No seu currículo constam ainda especializações em Políticas Públicas de Violência Intrafamiliar e em Comunicação Não-Violenta e Cultura de Paz pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa).

Lins Robalo, vereadora do município de São Borja pelo PT (Foto: Arquivo pessoal/Lins Robalo)

O diálogo é a chave para a representante política. Dentro da Câmara de Vereadores, o ambiente com os colegas é instável. Sem afinidades políticas e identitárias, ela entende que os embates são parte do processo.

O apoio ou o preconceito são mais evidentes conforme as posições e parcerias feitas dentro da Câmara. Segundo a vereadora, tudo depende da maneira que o jogo é jogado e de como é feita a movimentação das peças dentro da política.

Com o preconceito presente durante toda sua trajetória, Lins Robalo diz ter receio que o mandato seja prejudicado pelo seu comportamento combativo. Enquanto representante de movimentos sociais, ela percebe ter mais dificuldades de atuar dentro da casa.

Apesar das dificuldades, Lins está conseguindo pôr em prática os seus planos. A vereadora na “Terra dos Presidentes” conta que tem projetos em vista para os próximos anos na política. “Irei tentar outros espaços, por entender que a política precisa ser oxigenada e fortalecida com a nossa presença”, complementa.

Saiba mais

Projetos voltados para a comunidade LGBTQIAP+ encontram dificuldades no cenário brasileiro. Para entender melhor, leia a reportagem Falta de dados inviabiliza criação de políticas públicas para população LGBTQIAP+, de Douglas Schütz.

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