"Enquanto estamos conversando, um motoboy sofreu acidente em alguma rua do país"

Ralf MT, youtuber e entregador de aplicativo, comenta em entrevista concedida a Beta Redação sobre a rotina da classe

Gabriel Reis
Redação Beta
6 min readMay 3, 2022

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Em 2020, o Congresso Brasileiro de Engenharia de Produção realizou um panorama do índice de sobrecarga de trabalho dos motoboys de aplicativos de entrega, concluindo se tratar de uma rotina de trabalho de extrema pressão e estresse. Em abril de 2021, o Ministério da Saúde divulgou uma pesquisa que aponta os motociclistas como a categoria que mais sofreu acidentes de trabalho de 2011 a 2020 em todo o país. No mesmo ano, um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que o trabalho plataformizado no Brasil chega a 1,4 milhão de trabalhadores informais, totalizando 31% do setor de transporte, armazenagem e correios.

Neste cenário, estourou em algumas capitais do Brasil, no dia 1 de julho de 2020, um movimento grevista de entregadores chamado “Breque Dos Apps”. Os envolvidos reivindicavam melhores condições de trabalho, alegando jornadas diárias de 12 horas, zero direitos trabalhistas, alto risco de contágio da Covid-19, necessidade de alteração da taxa de entrega e dificuldade em entrar em contato com as plataformas de entrega em casos de necessidade.

Com a intenção de contrapor as reclamações dos entregadores organizados, no mesmo dia a plataforma IFood emitiu um comunicado junto a uma pesquisa interna. De acordo com a plataforma de entrega, até aquele momento, 70% dos entregadores com registro no aplicativo possuíam vínculo direto com os restaurantes, além de afirmarem que o ganho direto com o aplicativo era calculado em torno de R$21,80 por hora. O movimento dos entregadores se estendeu pelo mês de julho de 2020, passando por uma desmobilização meses depois, mas ainda assim contando com greves em determinadas cidades até o final de 2021.

Entregador grevista posa para foto durante protesto do Breque dos Apps em Porto Alegre, 1° de julho de 2020. (Foto: Deriva Jornalismo)

Em março de 2022, dias após o IFood realizar um reajuste nos valores de repasse aos entregadores, com uma maior organização e apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), foi realizada uma greve de motoboys em cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Rondônia, nomeada “Apagão Dos Apps”, mantendo apenas nas redes sociais o nome Breque Dos Apps. As reivindicações se mantinham, com entregadores alegando insuficiência nas medidas tomadas pelas plataformas de entrega até o momento. Em paralelo a isso, através da contratação de empresas de marketing digital para operar nas redes sociais, o IFood foi acusado por parte dos entregadores de tentar desmobilizar o movimento.

A rotina árdua de trabalho dos entregadores os coloca em situações de risco diário para a saúde física e mental, de acordo com Ralf Alexandre Campos, 41 anos, entregador e youtuber. Conhecido pelo apelido Ralf MT, o carioca conta sobre a rotina de trabalho de um entregador e de sua trajetória no YouTube. Ralf é um comunicador que se propõe a dialogar com outros entregadores sobre as demandas da categoria e as ações e inações das plataformas de entrega.

Ralf MT, entregador e youtuber, explicando em vídeo como entregadores de aplicativo podem acionar o seguro entregador. (Foto: reprodução / YouTube)

Seu trabalho no YouTube e nas redes sociais tem qual propósito?

De início criei pensando em falar sobre viagens. Com o tempo decidi falar sobre o dia a dia de entregador e as dificuldades enfrentadas por nós entregadores. Abordo sobre a situação dos entregadores do IFood, Loggi, Uber Eats, Rappi e Lalamove. Essa jornada no YouTube já me rendeu até investidas do IFood contra o meu canal em vídeos de denúncia que fiz sobre o descaso da plataforma e a forma deles de agir com os motoboys. Porém, todas essas tentativas do aplicativo foram em vão, meu trabalho segue.

Fale um pouco mais sobre a rotina de um entregador.

Normalmente acorda entre 7h e 8h da manhã, toma um café simples, com bolacha e água, e saem sem hora para voltar para casa e sem pausa para almoçar.

Quais os maiores desafios de um entregador de aplicativo?

As altas taxas por entrega e a manutenção das motocicletas totalmente ao custo do motoboy. Tudo isso gera alta frustração e desgaste.

Você conhece entregadores que se queixam de exaustão, estresse e problemas de saúde mental?

Muitos entregadores que conheço sofrem de depressão. Muitos dormem e descansam na rua em meio a rotina exaustiva de trabalho. Quando o dia rende poucas entregas e consequentemente poucos ganhos, alguns apresentam irritabilidade e brigam fácil em casa e com os colegas de trabalho.

E que tipo de suporte as plataformas oferecem aos entregadores?

Até pouco tempo atrás nenhum suporte era dado. Porém, hoje tramita pelos poderes a PL 1.665/2020, que de início visava exigir das plataformas medidas de proteção financeira aos entregadores. Agora, a partir do dia 5 de abril de 2022, passou a ser proposto junto a PL um seguro aos motoboys. Por ser algo muito recente, não conheço nenhum entregador que tenha acionado o seguro.

Entregadores descansam pelas ruas de São Paulo, julho de 2020. (Foto: Roberto Parizotti / Fotos Públicas)

É dito que acidentes envolvendo entregadores são comuns.

Sim. Conheço motoboys que já perderam membros enquanto trabalhavam. Também conheço entregadores que entraram na justiça contra o IFood sob acusação de descaso por parte da plataforma e ganharam. Enquanto estamos conversando provavelmente um motoboy sofreu acidente em alguma rua do país.

E há uma contradição entre as exigências das plataformas para o entregador obter boas pontuações…

Sim. Existem os chamados tempos de coleta e de entrega. A plataforma pede para que o entregador vá o quanto antes ao restaurante e espere até que a comida esteja pronta — este é o momento de coleta. Mas o tempo de entrega é o indicador do período esperado para que o motoboy chegue ao cliente. Chegando dentro do estimado a pontuação na plataforma aumenta e o entregador garante mais oportunidades de entrega. Se o entregador não atender a essas demandas de tempo vai ter menos oportunidades de serviço. Muitos acabam sofrendo de desgaste mental ou se envolvendo em acidentes, e as principais vítimas costumam ser os mais experientes, já acostumados com essa rotina.

Um dos ditos atrativos das plataformas de serviços e outros aplicativos é oferecer uma oportunidade de trabalho autônomo. O que você tem a dizer sobre isso?

Considero uma falsa autonomia. Esses aplicativos possuem algoritmos próprios e os entregadores precisam trabalhar conforme o modo de funcionamento da plataforma em questão. Atendendo às demandas do aplicativo o motoboy terá mais oportunidades de serviço.

Existe um companheirismo entre os entregadores no que diz respeito a apoio e suporte mútuo?

Diria que sempre entra mais gente do que sai nos movimentos que reivindicam condições mais dignas aos entregadores. Mas ainda falta união entre os membros da classe. O modo de funcionar do aplicativo torna o trabalho de entregador muito competitivo, isso pode contribuir para essa desunião ainda presente.

Falta um conhecimento maior da população sobre a situação de quem trabalha nesses meios?

Mais ou menos. Greves em que os entregadores propuseram um breque dos apps foram bem recebidas pelo público consumidor dos serviços, que de certa forma ajudaram na execução da greve. Por outro lado, a realidade diária do motoboy não é de conhecimento geral do público. A participação do consumidor junto aos movimentos se torna uma via de mão dupla, já que nem todos os entregadores se envolvem nas causas, muitas vezes pela necessidade de levantar um dinheiro.

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Gabriel Reis
Redação Beta

Estudante de jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pesquisador no laboratório DigiLabour.