Enquanto obras de educação infantil são canceladas ou paralisadas, as filas de espera por uma vaga vêm aumentando no Estado

Programas do Governo Federal, como o Pró-infância e obras compactuadas com o FNDE não estão sendo concluídas, causando atraso na educação das crianças gaúchas.

Henrique Bergmann
Redação Beta
12 min readJun 17, 2020

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Elias Vargas Letícia Guintani da Costa Cristina Bieger Ketlin de Siqueira

Dois anos e meio. 913 dias. 21.912 horas de espera.

Esse foi o tempo que Kelly Moraes de Oliveira, 31 anos, mãe do Davi, de 3, demorou para conseguir uma vaga na educação infantil. Segundo Kelly, depois que seu filho nasceu ela procurou por uma escola para matriculá-lo, porém a realidade mostrou a dificuldade que existe para se conseguir uma vaga. “Eu demorei dois anos e meio, mais ou menos isso”.

Sem trabalho e precisando sustentar a família, Kelly resolveu procurar por outros lugares, mais distantes de casa. Após várias tentativas, ela conseguiu uma vaga para seu filho. “Depois de dois anos e meio, eu consegui a vaga na Escola Infantil Lar Esperança. Ele fica lá o dia inteiro. É muito concorrido uma vaga para as crianças, muitas mães ficam aguardando, vira uma disputa. Parece que o Estado não se importa com isso. Quando você consegue, levanta a mão pro céu e agradece”, desabafa.

Indicadores do IBGE (2010) apontam que a proporção de mulheres como chefes de família no Estado ultrapassa os 36%. O impacto da problemática pode afetar até mesmo a comida na mesa das crianças, visto que, em muitos casos, a falta de uma vaga na rede de ensino infantil atinge diretamente a garantia do emprego dessas mães e o reingresso ao mercado de trabalho.

Um direito de todos e um dever do Estado

O acesso à educação infantil no Brasil é um direito da criança e um dever do Estado, assegurado pela Constituição Federal. Conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, a educação infantil passou a ser definida como a primeira etapa da Educação Básica. Atendendo crianças de zero a cinco anos, é dividida em duas etapas, sendo as creches para crianças de zero a três e a pré-escola, de quatro a cinco anos. O Estado deve assegurar a prestação desse serviço independente da obrigatoriedade da criança frequentar ou não a rede de ensino.

A infância é uma fase recheada de descobertas, que necessita inclusão e possui significativa importância para a formação do cidadão. Conforme consta na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), a educação infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seu aspecto físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.

Para os pais, as escolas de educação infantil são importantes aliados na educação e no desenvolvimento das crianças, e, primordialmente para as mães chefes de família, o acesso das crianças às escolas proporciona maior chance de um retorno ao mercado de trabalho. Pela lógica, a alta demanda faria com que mais instituições de ensino infantil fossem construídas, mas nem sempre é a realidade.

Ketleen da Silva Pereira, de 24 anos, mãe da Alana da Silva, 2 anos e 8 meses, conta que depois que ganhou sua bebê, não tardou para procurar uma escola infantil para sua filha no bairro Morro Santana em Porto Alegre. “Assim que eu ganhei a Alana, fui procurar, pois sei da dificuldade, passei por isso com minha outra filha de 8 anos. Não é fácil”, relata.

Enquanto não conseguia vaga para sua filha, Ketleen a deixava aos cuidados da dinda. “Eu não tinha dinheiro para pagar uma creche, estava desempregada na época e quando eu consegui emprego, ainda não tinha conseguido arrumar uma vaga pra ela. Então deixava com a dinda, ou com a minha mãe quando ela estava de folga”, completa.

Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), em 2019 foram feitas no Rio Grande do Sul 124.902 matrículas nas creches e 176.890 matrículas nas pré-escolas da rede municipal. Esses números vêm crescendo consideravelmente nos últimos anos, mas também são refletidos nas filas de espera por uma vaga.

No quadro são apresentados os números de matrículas feitas na rede municipal de ensino infantil no estado (divulgação: INEP)

Na busca por um mapeamento das obras de educação infantil no Estado, a reportagem obteve acesso aos dados fornecidos no site do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) em parceria com o SIMEC (Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle). Juntos, os órgãos são responsáveis pela execução e repasse de verbas aos municípios para obras de educação básica em todo país. Todas as solicitações podem ser acompanhadas de forma on-line pelo SIMEC, portal em que também são feitas as atualizações de cada uma das obras pelas prefeituras municipais, fornecendo um dado preliminar do investimento do FNDE na construção de cada instituição.

pesquisa no portal do Simec traz informações quanto às obras na educação em todo o país. Foto: Divulgacão Simec

Com a plataforma, a equipe teve acesso a obras de Educação Infantil no Rio Grande do Sul que se encontram paralisadas, canceladas, inacabadas, em reformulação ou em fase de licitação. No total, somam-se 164 construções nesses estágios. Dado que implica quase como uma consequência em relação às filas de espera para garantia de vagas na rede de educação infantil.

Percebe-se que, obras do tipo B, conforme explicitadas nos PROJETOS PADRÃO CONSTRUÇÃO DE ESCOLAS são as que mais sofreram cancelamentos, 60. Dessas, apenas 18 não tinham registros de pagamento por parte do FNDE. Através do pedido 23480018065201970 sobre a Explicação da classificação das obras no Simec registrado no e-Sic, foi apurado que obras canceladas não podem ser repactuadas, assim, o ente que recebeu os fundos deve devolvê-los por meio da Guia de Recolhimento da União — GRU. Apenas obras inacabadas poderão ser repactuadas, ou seja, 43 do total de 164.

Entre as obras canceladas, o descaso é alarmante. Muitas delas estão com execução superior a 60% e outras encontravam-se em fase de finalização quando foram paralisadas. Enquanto pais e crianças enfrentam as filas de esperas, prédios sem uso estão a mercê do tempo e depredação. Porto Alegre, capital do Estado, é o município que mais acumula obras canceladas.

Questionada sobre o impacto que as obras inacabadas no Estado, a Coordenadora de Educação da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), Fátima Ehlert, garante a complexidade do problema e a dificuldade para trazer dados de forma mais detalhada. A reportagem aguarda retorno do contato ainda na próxima semana para, enfim, obter dados com mais precisão referente aos reflexos nas filas de espera e situação dos municípios do Estado, na garantia de trazer um panorama ainda mais detalhado sobre as cidades mais impactadas pelas obras não entregues.

Estudos buscam resultados

A professora Drª. associada da faculdade de educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Simone Albuquerque, coordenadora da pesquisa e oferta da implementação do programa Proinfância no Rio Grande do Sul explica que a execução de políticas públicas e programas específicos para a educação infantil começaram a ser feitas há pouquíssimo tempo, tornando-se parte do sistema de ensino e a primeira etapa da educação básica em 1996.

A professora afirma que o programa Proinfância, iniciado em 2007, tem a função de construir e reformar creches e pré-escolas adquirindo equipamentos específicos, é o primeiro programa arquitetônico pensado para a educação infantil com grande impacto no sistema educacional brasileiro.

“Até o Proinfância, sempre existiu uma política pobre para a pequena infância. Nunca existiu um programa de grande impacto que pudesse dar uma oferta de qualidade na educação infantil”, conta a pesquisadora.

Até a criação do proinfância, as construções e compras de materiais e equipamentos para creches e pré-escolas eram realizadas com recursos financeiros municipais. Apenas com o Proinfância o governo federal passou a investir financeiramente nessas construções ou reformas, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento (FNDE).

No projeto, o FNDE disponibiliza o dinheiro para a construção, enquanto o município viabiliza o terreno e faz a licitação para a escolha da empresa que irá realizar a obra. O FNDE é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, e também o órgão responsável pela realização dos programas e ações da educação básica no Brasil, dando auxílio financeiro e técnico às prefeituras.

Mas a implementação do programa no Estado ainda não atingiu todas as expectativas. Segundo a professora Simone, entre 2007 e 2018, baseado nos números expostos pelo FNDE, 643 obras foram projetadas ou iniciadas, com 358 concluídas. As obras não concluídas se dividem, segundo o FNDE, em canceladas (17), inacabadas (10), em execução (82), paralisadas (51), em planejamento (38), em licitação (19), em reformulação (65).

O gráfico apresenta a relação de obras da educação infantil no estado e o estágio em que se encontram (Fonte: SIMEC)

A professora comenta que as regiões sudeste e metropolitana do Rio Grande do Sul são as mais afetadas por esses atrasos. Na região sudeste, das 54 obras apenas 11 foram concluídas. Na Metropolitana das 140 obras, 100 foram concluídas.

“Se houvesse um índice maior de obras concluídas, muito dos problemas de falta de vaga e lista de espera para crianças entrarem na educação infantil seria solucionada”. Simone Albuquerque, coordenadora da pesquisa e oferta da implementação do programa Proinfância no Rio Grande do Sul. (um destaque)

Para Simone, existem algumas razões para esse baixo índice de conclusão de obras. A primeira razão ocorre porque os projetos de construção são únicos para todo o solo brasileiro. No Rio Grande do Sul, muito por conta do clima, os projetos acabam tendo que sofrer alterações, conta a professora.

“Por exemplo, no projeto original o saguão é aberto. É impossível as crianças em pleno inverno gaúcho frequentarem o espaço. Por isso muitas adaptações são feitas em cada cidade. Seja a troca do piso, colocação de vidros e janelas e etc. Mas tudo isso faz com que as obras levem cada vez mais tempo para serem finalizadas”, pontua.

A pesquisadora também entende que a atuação do FNDE é uma das razões para os atrasos das obras. Para ela, o acompanhamento e a fiscalização das obras feito pelo órgão ainda é muito precário. Simone ainda chama atenção para a transparência do FNDE para que o cidadão consiga acompanhar as obras, imaginando que também seja uma tarefa difícil de se realizar.

Ela também entende que muitos problemas surgem após a conclusão das obras, salientando que o fim da relação entre o governo federal e municipal reforça essa situação.

“A relação entre município e FNDE acaba com a finalização da obra. O município recebe a escola pronta, mas depois precisa mobiliar, organizar a alimentação e os professores. E alguns municípios não estão preparados para realizar essas funções. Por isso, algumas prefeituras terceirizam o controle das escolas para mantê-las de pé, fazendo com que o município perca o controle da área pedagógica, o que acarreta na queda de qualidade no atendimento”, explica Simone.

Segundo a professora pesquisadora da UFRGS e da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Nalu Farenzena, hoje o FNDE tem uma receita de 45 bilhões de reais. É o menor número dos últimos anos: em 2014 foram 59,5 bilhões, em 2015 55,4 bilhões, em 2016 55,6 bilhões, em 2017 56,9 bilhões e em 2018 50,5 bilhões de reais. “o FNDE foi criado para ter a função como o ‘banco do MEC’. Ou seja, uma autarquia com mais agilidade de captar, aplicar e transferir recursos”, diz Nalu.

O FNDE é cerca de 40% das despesas totais do MEC. Suas receitas são captadas pelo salário-educação, que é uma contribuição social vinculada ao financiamento da educação básica, dos quais 40% são administrados pelo FNDE. Vale dizer que os outros 60% do salário-educação são direcionados e administrados diretamente pelas escolas e municípios. A outra fonte de receita é a partir de recursos do próprio tesouro nacional. Nalu também afirma que o FNDE possui uma autonomia relativa, principalmente ao desenvolver programas próprios, mas, ainda assim, atua bastante vinculada às secretarias do MEC.

A professora diz que o monitoramento e controle do FNDE sobre esses tipos de programa, como o proinfância, é feito em maioria por amostragem, pois são muitas escolas para monitorar. Já a fiscalização sobre os recursos repassados pelo governo federal, segundo a professora, é feita pelo TCU, mas afirma. “O FNDE precisaria se fortalecer em termos de colaborações com outras entidades para poder avaliar, monitorar e para poder ter informações que lhe permitam melhorar suas ações. Só que na conjuntura política atual é difícil pensar em fortalecimento do FNDE”, conclui.

Nalu Farenzena também entende que a transparência dos dados do FNDE poderiam ser melhor feitos. Ela diz que os dados são encontrados com facilidade, estão disponíveis, mas enxerga como complicados para o cidadão comum entender, pois sempre mudam de ano para ano a forma que é disponibilizado e apresentado. Como ela explica, existe uma diferença em dados estarem disponíveis e serem transparentes.

Ela explica que o Proinfância, assim como outros programas do FNDE, é um programa de assistência voluntária e pode ser mais fácil de descontinuar, embora ela ache improvável, dada a demanda e necessidade de creches e pré-escolas.

O que dizem as prefeituras municipais

Pensando em confrontar os dados obtidos pelo site do SIMEC com as prefeituras do estado, essa reportagem entrou em contato com 18 prefeituras, todas de municípios com mais de 100 mil habitantes. São elas: Porto Alegre, Caxias do Sul, Canoas, Pelotas, Santa Maria, Gravatai, Viamão, Novo Hamburgo, São Leopoldo, Alvorada, Rio Grande, Passo Fundo, Sapucaia do Sul, Uruguaiana, Cachoeirinha, Santa Cruz do Sul, Bagé e Bento Gonçalves.

Devido a pandemia do novo coronavírus, muitas das pessoas responsáveis estavam trabalhando em home office ou com horário reduzido. O contato solicitado era via e-mail, onde o retorno recebido foi baixo ou inexistente.

A prefeitura de Porto Alegre, através de sua assessoria de comunicação retornou à reportagem com as respostas aos questionamentos. Sobre a quantidade de obras paralisadas com recursos federais, o retorno obtido pelo município é de que seriam 32 no total. Essas, são obras de educação infantil contratadas pela Secretaria de Educação junto ao programa Pró-infância, do governo federal, com recursos do PAC 2 via FNDE, a partir de 2011/2012. Do total, 13 foram concluídas e pelo menos oito estão inacabadas, que deverão ser retomadas com recursos repactuados do FNDE via parceiros ou com recursos próprios previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020.

As demais 11 obras não chegaram a ser iniciadas. Segundo a prefeitura, no período previsto para a construção das escolas, o FNDE não teria concluído os depósitos necessários para a finalização de algumas obras e também a Smed enfrentou problemas com abandono de obras por dissolução de construtoras e com a falta de recursos para o cumprimento das contrapartidas financeiras. As empresas que desistiram das obras tiveram contratos suspensos, foram multadas e impedidas de participar de licitações do município por determinado período.

O cancelamento de algumas obras não iniciadas ocorreu devido à não ocorrência de déficit de vagas nas regiões das obras contratadas e também devido à limitação financeira do município para dispor de contrapartidas.

Sobre a questão das obras de educação infantil no estado, o jornal Diário Gaúcho produziu uma reportagem sobre o assunto em 2019 e atualizada no início deste ano. Nela, é possível perceber que das 20 obras públicas não concluídas, 12 são de escolas de educação infantil, sendo quatro em Porto Alegre, três em Viamão, duas em Gravataí, três em Guaíba, todas financiadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação.

Questionados sobre as vagas, a prefeitura comenta que o déficit na faixa etária de 0 a 3 anos se manteve na média de 6 mil vagas nos últimos anos. A justificativa é de que, nesta faixa, o sistema municipal de educação, porém, já atende 63% da demanda, enquanto o Plano Nacional de Educação determina atendimento de 50% da população até 2024. Na Pré-escola (Jardim A e Jardim B), não há déficit de vagas na totalidade do município, mas há falta residual em alguns bairros onde a demanda é maior, como Centro e Partenon, enquanto há vagas ociosas em outros, como Humaitá e Cruzeiro.

Com relação às escolas de educação infantil, a prefeitura diz não haver obras canceladas com recursos federais e que possui 43 escolas de educação infantil na rede municipal de ensino — a rede pública estatal — que atende cerca de 8 mil alunos, e 213 escolas de educação infantil na rede comunitária — a rede pública não estatal (mantida por organizações da sociedade civil mediante recursos repassados pela Prefeitura) -, que atendem a outros 20 mil alunos. Também 36 escolas municipais de Ensino Fundamental contam com turmas de Pré-escola. Ou seja, são cerca de 28 mil crianças atendidas pelo município. As escolas estão distribuídas em grande parte na periferia da cidade e também na região central.

Conforme o site da Prefeitura de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, são aproximadamente sete obras da educação infantil sem contrato vigente, sendo cinco delas do convênio Proinfância. A Escola Municipal de Educação Infantil, Cohab C, na região sul de Gravataí, não faz parte do convênio Proinfância, conforme detalhes da planilha de Obras da Prefeitura do município. A construção da escola, iniciada em 2017, foi paralisada em 2019 já na etapa final. Abandonada, gera insegurança para os moradores da região. A reportagem do Diário Gaúcho trouxe detalhamentos da situação nessa reportagem.

Contrariando a normalidade em pedidos de Lei de Acesso à Informação, a reportagem aguarda há dois meses por uma resposta relacionada aos dados atualizados das obras de educação infantil no município, bem como o número de vagas na educação básica destinada ao município e sua distribuição. Contatada em 3 de junho, a assessoria de comunicação ficou de retornar à reportagem quanto a atualização dos dados. Não obtivemos retorno até o fechamento desta edição.

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