Oficinas de arte levam direitos ao cárcere

Eventos culturais trabalham a ressocialização dos detentos do antigo Presídio Central

Deivid Duarte
Redação Beta
6 min readApr 10, 2019

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Como resultado das oficinas do Direito no Cárcere, os próprios detentos fotografam e gravam o Sarau Poético e Literário. (Foto: Carmela Grüne/Acervo Pessoal)

“Cresça, independente do que aconteça”. O sol daquela tarde de sexta-feira iluminava as paredes pintadas de laranja e azul, enquanto Rodrigo Ennes Sampaio, 30, tocava no violão a música Quero ser feliz também, do Natiruts. As mais de 30 pessoas no lugar cantavam juntas com entusiasmo, em um clima de felicidade e positividade. O pedaço de céu azul visto do salão, os livros na estante, a cantoria: era fácil esquecer que estávamos num presídio e que Rodrigo é um dos 4.299 presos na Cadeia Pública de Porto Alegre, o antigo Presídio Central.

Durante o sarau no presídio, Rodrigo pediu o violão para tocar um reggae. (Foto: Carmela Grüne/Acervo Pessoal)

A galeria E1, destinada a detentos em tratamento de dependência química, foi palco do Sarau Poético e Literário do projeto Direito no Cárcere, no dia 29 de março. A iniciativa busca, desde 2011, humanizar a convivência no presídio e facilitar o acesso à cultura, à justiça e à memória, além de aumentar a autoestima.

Idealizado pela advogada e jornalista Carmela Grüne, o projeto já atendeu mais de 800 detentos. Muitos deles retomam os laços familiares graças à iniciativa, que estimula a integração social. Por isso, contando os parentes dos apenados e os voluntários, Carmela estima que mais de 5 mil pessoas se envolveram com a causa nos últimos 8 anos.

Com câmera fotográfica e de vídeo nas mãos, os próprios apenados fizeram a cobertura do sarau. As atividades dos detentos no projeto são resultado de oficinas de expressão artística, pintura, fotografia, cinema e escrita.

A prática estimula a cidadania cultural e ajuda a enfrentar o preconceito contra os detentos, pois o conteúdo produzido por eles é compartilhado no Vlog Liberdade — primeiro canal de expressão de presos da América Latina. Assim, qualquer pessoa pode conhecer mais sobre um pedaço do cotidiano do cárcere.

Gleisson aproveitou o sarau para ler um poema de sua autoria. (Arte: Deivid Duarte/Beta Redação)

Durante o sarau, o clima é de alegria entre os detentos e voluntários. Acostumados à convivência restrita aos colegas de cela e dos agentes penitenciários, os apenados aproveitam o momento para cantar, ouvir histórias e ler obras próprias. Segundo a organizadora, os textos ainda vão virar livro. Nesta última edição, os participantes também curtiram um reggae tocado pelo vocalista da banda Produto Nacional, Paulo Dionísio, que levou o violão.

É notável o esforço dos detentos em construir e manter um espaço digno para cumprir a pena e alcançar a ressocialização na galeria E1. Eles mesmos pintam, limpam e fazem as obras na ala com a ajuda dos voluntários. Os materiais são resultado de doações e financiamento coletivo. O Estado apenas fornece a autorização para as atividades.

Trecho da música Saudade, tocada durante o Sarau e composta com a ajuda dos detentos. (Arte: Deivid Duarte/Beta Redação)

Claudio Roberto da Costa, voluntário há 4 anos e coordenador do projeto Vó Chica, estava lá por um motivo maior. Ex-usuário de drogas, ele participa do projeto para servir de exemplo para os detentos em tratamento de dependência química.

“Sinto muita identificação com eles, viemos do mesmo lugar, da periferia, viramos mão de obra da iniciativa privada e acabamos fazendo algumas escolhas erradas, mas tento mostrar que podemos dar a volta por cima”, revela.

Outra voluntária no sarau foi Vera Maria Inacio da Costa, 74. Ela participa há dois anos do projeto, pois se diz em dívida com o sistema prisional. Vera foi a primeira enfermeira penitenciária do Estado, mas deixou a vida carcerária para estudar no exterior.

Hoje, além do apoio ao Direito no Cárcere, ela realiza atendimentos de acupuntura com detentos da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). “Vejo valentões tremer com medo de agulha”, brinca.

Para o presidente do Instituto Cidade Segura, doutor e mestre em sociologia, Marcos Rolim, as oficinas de arte e a participação da sociedade no cárcere estimulam uma ressocialização mais ampla:

“Atividades culturais cumprem um papel importante na ressocialização, porque permitem que os apenados simbolizem suas experiências e que projetem suas possibilidades em um espaço de liberdade e criação que é como o oposto da prisão. A interação com pessoas que não estão presas, por outro lado, alarga as referências dos apenados, abre possibilidades de construção de capital social e lhes oferece a chance de conhecer histórias pessoais muito diversas daquelas que costumam marcas as trajetórias dos encarcerados.”

Um abrigo dentro da Cadeia Pública

“Eu me sinto uma gotinha no universo, mas uma gota que fura a pedra. Então essa pedra, ela vai furar. E eu sou teimosa.” É dessa forma que Carmela se apresenta no vídeo de abertura do canal no Youtube. A analogia é realista se pensarmos na montanha de problemas da Cadeia Pública. A construção, erguida em 1959, possui diversas carências estruturais e abriga mais que o dobro de sua capacidade de lotação.

Com espaço para receber dignamente 1.824 detentos, hoje, 4.299 pessoas se espremem para cumprir a pena na Cadeia Pública, conforme dados da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe).

Outro dado da Susepe evidencia a falência do sistema penitenciário gaúcho: 71,4% (71,9% homens e 62% mulheres) dos presos que passam pelos cárceres do Estado voltam para a prisão depois de libertos.

Marcos Rolim considera a taxa altíssima. Para ele, o alto índice de retorno ao sistema prisional está diretamente ligado à péssima qualidade da execução penal no Rio Grande do Sul, que considera uma das piores do país.

“Quando me refiro à baixa qualidade da execução penal, me refiro à prática de amontoar pessoas em galerias, mecanismo que estrutura as facções criminais, também à ausência de qualquer investimento significativo em formação dos apenados e na submissão da massa carcerária a condições desumanas de encarceramento”, afirma o especialista em segurança pública.

Rodrigo Ennes, há nove meses na ala dos dependentes químicos em tratamento, resume a situação da carceragem: “Assim que tu é preso, tu é mandado para o ‘fundão’, lá tem celular, droga e o domínio das facções. Aqui no E1 é quase um abrigo”, confessa.

Ao entrar no corredor da galeria E da Cadeia Pública, logo percebemos a diferença do resto do presídio. Os quadros coloridos, que reproduzem figuras como Gandhi e o rapper Sabotage, chamam a atenção de quem espera um ambiente cinza e sem vida.

Durante sarau no final de março, Carmela mostra as pinturas na entrada da galeria E. (Vídeo: Carmela Grüne/Acervo Pessoal)

Entretanto, fazer parte da galeria E1 não é tão simples. Considerado o porta-voz do grupo por alguns dos detentos da ala, Gleisson Cristiano Schulz explica que existe uma espécie de processo seletivo para poder entrar.

“O primeiro requisito é o cara ter força de vontade porque é difícil. O próximo passo é um teste psicológico e psicossocial. Depois disso é feita a avaliação pelo sargento que decide se tu segue para a próxima etapa: ficar 21 dias internado no Centro de Custódia Hospitalar Vila Nova, onde acontece o tratamento de desintoxicação”, explica.

Além disso, exames toxicológicos, para confirmar a abstinência dos detentos, são realizados periodicamente. Gleisson garante que está há 3 anos longe das drogas e que vai sair uma pessoa melhor quando libertado.

Força de vontade para entrar e muito mais para se manter. Douglas Machado Franco diz ter demorado dois anos para ingressar na ala. Segundo ele, o antigo tenente-coronel não aprovava seus testes. Porém, depois de um tempo no E1, acabou tendo uma recaída, o que o levou de volta para o “fundão”.

“Mas eu tive foco, continuei cursando o ensino médio na escola do presídio, entrei para a ala dos trabalhadores. Até agora já diminui 1.281 dias da minha pena e consegui me manter limpo de novo para voltar para o E1”, finaliza.

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