Ensino domiciliar volta a ser debatido no Brasil

Aprovado com urgência em maio, projeto de lei regulamenta nova modalidade de aprendizado

Carolina Santos
Redação Beta
9 min readJun 14, 2022

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Projeto de lei, também conhecido como homeschooling (em inglês) que está esperando avaliação do Senado (Foto: Jessica Lewis/Unsplash)

A aprovação do projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar no Brasil reacendeu um debate que está em pauta há anos. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido que a prática não condiz com a atual legislação, que não permite que os pais tirem os filhos da escola para ensiná-los exclusivamente em casa.

Ainda assim, o PL 2.401/19 foi aprovado com 264 votos a favor, 144 contra e duas abstenções na Câmara dos Deputados — e segue para o Senado. Ocorre agora uma consulta de opinião pública sobre o tema, que é cercada pela polarização. Atualmente, são 34.378 votos a favor e 29.782 contrários.

Apesar da discussão, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) contabiliza 7.500 famílias praticantes do ensino domiciliar no Brasil. Com o objetivo de oferecer reforço escolar para jovens que estudam em casa, a Homeschool Annabel foi criada há 12 anos, em Porto Alegre, por Ana Hens e Maria Isabel. A instituição também oferece um plano pedagógico anual para o ensino domiciliar.

A Homeschool Annabel foi criada em 2012 e se autointitula a primeira homeschool do Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal/Ana Hens)

O plano inclui conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), momentos de socialização com atividades físicas e artísticas, além daquilo que os genitores acreditam que precisa ser acrescentado na aprendizagem dos filhos. Tudo é acompanhado de perto pelos tutores da escola, que também dão monitoria para que os pais aprendam como ensinar seus filhos.

Ana Hens é licenciada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e diretora pedagógica da Homeschool Annabel.

“Desde 2004 eu já estudava sobre ensino doméstico e sempre fui a favor, principalmente quando a gente tem falta de qualidade de ensino no país”, afirma.

Ela diz que se a família tem o desejo e pode — no sentido de ter tempo hábil — se dedicar ao ensino doméstico e fazer todos os trâmites que precisa, a Homeschool Annabel pode auxiliar.

A diretora da escola de reforço explica que, mesmo sem a regulamentação, algumas famílias que já fazem o ensino doméstico entram em contato com a a instituição da qual a criança estava matriculada e explicam os motivos pelos quais desejam trocar a modalidade de ensino.

Quando isso acontece, as famílias podem ser fiscalizadas pelo Conselho Tutelar. “Elas devem comprovar que não há abandono intelectual, que as crianças permanecem estudando a partir das atividades, dos registros, dos planos de aula”, explica Ana.

Portanto, famílias que fazem ensino domiciliar podem ser autuadas pelo Conselho e prestar explicações na Justiça. “Já há alguns casos que comprovaram que não houve abandono intelectual e a criança pôde permanecer fazendo o ensino doméstico”, lembra a pedagoga.

Para ingressar no ensino superior, os estudantes do ensino doméstico precisam formalizar a formação a partir de exames certificados pelo Ministério da Educação. Para se formar, é possível fazer as provas do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) em dois momentos. O primeiro é com 15 anos, para se graduar no ensino fundamental, e o segundo e a partir dos 17, para completar o ensino médio.

Há ainda a possibilidade de finalizar a formação pelo programa Educação de Jovens e Adultos (EJA). Se o estudante passar, ele ganha certificação e, assim, pode se matricular em universidades.

Segundo Ana, não existem casos de jovens que foram afastados do convívio familiar por causa do ensino doméstico. “Só podem ser retirados das famílias se houver agressão, violência, se não ensinam nada para os filhos, mantêm em cativeiro ou usam como mão de obra infantil”, afirma.

Como é a proposta do ensino domiciliar

O projeto de lei que está em discussão funcionará assim, caso seja aprovado: o aluno deverá estar matriculado em uma escola e seus responsáveis deverão ter, obrigatoriamente, o ensino superior completo. Além disso, os supervisores não podem ter antecedentes criminais. Outra opção seria contratar um tutor formado para estar à frente do ensino.

Os responsáveis também devem ter um plano pedagógico montado, que poderá ser solicitado pela escola a qualquer momento para fins de comprovação. Provas serão realizadas na instituição de ensino em que o aluno está matriculado para medir o aprendizado.

Atualmente, quem procura essa modalidade de ensino são famílias compostas por jovens com casos de exclusão escolar, deficiências, portadores de necessidades especiais e que foram convidados a se retirar da escola, além de famílias com crenças religiosas e valores que divergem da instituição.

Educação domiciliar e significado social

Em um ano marcado pela reinserção escolar, após dois anos de pandemia de Covid-19, o debate trazido à tona pela agenda do presidente Jair Bolsonaro (PL) deixa claro que o ensino domiciliar não é para todos.

Para o professor do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Educação da Unisinos Rodrigo Manoel Dias da Silva, a educação domiciliar reforçará as desigualdades. Ele explica que apenas cerca de 10% da população brasileira tem ensino superior e, neste caso, poucas famílias teriam condições para educar os filhos em casa.

“Tendo a pensar que a educação domiciliar se restringe a um pequeno grupo de interesse, não chega a pensar a educação para a sociedade inteira”, complementa o professor.

Ana Hens aponta que não é crime realizar o ensino doméstico. Para ela, o delito é o “abandono intelectual”. No caso do ensino domiciliar, existe um grande envolvimento com a aprendizagem — desde a preparação de planos pedagógicos, das aulas temáticas e da participação ativa da família. “É um ensino que completa a mais do que aquilo que é exigido pelo MEC, respeita o ritmo do aluno e desperta desejo de aprender”, aponta a pedagoga.

Ela complementa que as famílias devem ter o direito de buscar esse tipo de aprendizagem quando não estão satisfeitas com a qualidade que o ensino regular oferece. “A gente sabe que é um projeto que vai contemplar poucas famílias”, afirma a pedagoga.

Desde 2019 a Associação de Mães e Pais pela Democracia faz um trabalho contínuo para agregar no debate sobre educação no país. A vereadora suplente pelo PSOL de Porto Alegre e presidenta licenciada da Associação, Aline Kerber, enfatiza que a organização é contrária ao projeto.

Associação estava presente em 2021, quando havia um projeto de lei que visava regulamentar o ensino domiciliar no Rio Grande do Sul. O projeto acabou vetado pelo governador Eduardo Leite (Foto: Reprodução/Facebook da Associação Mães e Pais pela Democracia)

“Acaba agudizando ainda mais a problemática das desigualdades sociais e educacionais, que expõe as crianças vítimas de violência. Entendemos que é preciso fortalecer a educação pública, e não drenar recursos que já estão escassos”, argumenta Aline.

O resumo do Art. 205 da Constituição Federal de 1998 aponta: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. No inciso I, complementa: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. A regulamentação é o que fez o STF decidir, em 2018, pela inconstitucionalidade do ensino domiciliar.

Pandemia e seus aprendizados — ou não

Para Rodrigo, a pandemia evidenciou muito do que seria o ensino domiciliar em âmbito nacional. “Nós temos uma história de educação muito excludente e seletiva no Brasil, e a pandemia de Covid-19 fez com que a gente tivesse a educação domiciliar durante dois anos. Praticamente todas as famílias tiveram que instruir os seus filhos de casa, porque teve a pandemia, o isolamento social e o risco da doença (que ainda existe)”, comenta.

Ele ainda aponta que a aprendizagem durante esses anos foi precária, pois as dificuldades de acesso e a exclusão digital permeiam este tipo de educação. A visão de Rodrigo é ilustrada pela pesquisa do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve). O estudo aponta que 43% dos jovens brasileiros pensaram em desistir dos estudos durante a pandemia. Para Aline Kerber, a pandemia mostrou como é difícil sustentar a ideia de educação domiciliar.

Gráfico demonstra alguns aspectos que afetaram o aprendizado de jovens durante a pandemia de Covid-19. (Imagem: Conjuve/Reprodução).

É importante ressaltar que há algumas diferenças entre o ensino a distância (EAD), praticado durante a pandemia, e o ensino domiciliar. Na pandemia, todas as pessoas tiveram um certo grau de distanciamento social. Enquanto, segundo a pedagoga Ana, o ensino domiciliar, com o plano pedagógico, prevê momentos de socialização também.

O que mais preocupa especialistas e pedagogos é a falta de socialização que a criança ou adolescente pode sofrer com o ensino domiciliar, além de possíveis violências que os jovens possam sofrer dentro de casa. De acordo com os dados de 2021 do Disque 100, as denúncias de violência contra crianças e adolescentes representam 30% do total de queixas recebidas pelos canais.

Rodrigo explica que uma sociedade justa e democrática se faz a partir do convívio com pessoas diferentes e, em grupos familiares, as pessoas costumam ter ideias e identidades semelhantes. Neste caso, o ensino domiciliar sairia perdendo.

Para Ana, acontece o contrário. “Não existe família de ensino doméstico que vai botar uma criança em cárcere, é uma grande mentira. O ensino doméstico quer que a criança socialize, mas dentro daquilo que é a sua necessidade”, explica a diretora da Homeschool Annabel.

De quem é o direito à educação

O professor do PPG da Unisinos traz outro ponto para a discussão: de quem, afinal, é o direito à educação?

“Na história da educação no Brasil, e mesmo no mundo ocidental como um todo, até um século atrás se tinha a ideia de que os filhos eram propriedades dos pais”, explica Rodrigo.

A ideia de que os filhos deveriam acatar com obediência e rigor ao desejo dos responsáveis foi transformada no sentido de família e relações humanas com o passar dos anos. O professor cita a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, de 1924, como o início de uma legislação que se desdobra até hoje. No caso do Brasil, foi criado em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente, que cita a educação como um direito da criança.

Para Rodrigo, o projeto de lei do ensino domiciliar tem algumas contradições, como a reivindicação do direito de educar os filhos em casa — quando em tese o direito é da criança, e não dos genitores.

Além desse ponto, Rodrigo explica outra incoerência. “Ao reivindicar o direito de educar os filhos em casa, os pais contestam a educação institucionalizada no sentido amplo. O contraditório é que eles vão precisar educar em casa com os mesmos conteúdos que a escola e vão precisar ir à escola prestar uma avaliação”, afirma.

Ensino doméstico tem antecedentes no Brasil

Diversos outros projetos de ensino domiciliar tramitam em diferentes estados e municípios do país. No Rio Grande do Sul, o projeto foi vetado em 2021 pelo então governador Eduardo Leite (PSDB).

Em Porto Alegre, a Câmara Municipal promulgou em março de 2022 a lei que autoriza a educação domiciliar na Capital. Porém, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS) fez uma ação direta de inconstitucionalidade em maio deste mesmo ano. Isso faz com que a legislação aprovada na Câmara não possa ser posta em prática até o julgamento final, mas o pedido foi negado pela Justiça. Agora a lei fica no aguardo para ser implementada.

Ana Hens aponta que esta é uma questão que vai além da política. Ela explica que o ensino doméstico tem projetos desde 1995, de partidos de esquerda e de direita. “O fato de Bolsonaro apoiar o ensino doméstico não quer dizer que ele seja o responsável pelo ensino doméstico”, comenta.

Sobre o projeto da Câmara, Aline Kerber explica que é parecido com o projeto de homeschooling português: “Os especialistas falam que é praticamente um copia e cola, o que também assusta, porque não teve um debate, foi votado por urgência”. Ela acredita que o projeto deve ficar no Senado, “porque não há interesse político de movimentar isso no período eleitoral”. “Mas foi uma sinalização do tipo de Congresso que temos e de como as coisas se dão na véspera de um período eleitoral”, finaliza.

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