Entrevista: Naira Hofmeister e a investigação jornalística sobre a China Tobacco
Repórter independente conta os bastidores de uma reportagem internacional que investigou o maior companhia de tabaco do mundo;
O dia a dia de um repórter costuma ser atribulado. Brincamos que jornalista não tem feriado, férias são artigos de luxo (e entenda-se: não são “um luxo” como viajar para as Ilhas do Caribe, mas que ter uma folga já é, de fato, este luxo), e que se trabalha muito. Então o papo com a jornalista Naira Hofmeister ocorreu através das facilidades dos aplicativos de comunicação, a mais de 13 mil quilômetros de distância e em meio a mais uma das rotinas intensas de uma renomada repórter.
Direto de Dubai, aproximadamente 3h30 da madrugada no horário local e aguardando o voo para o Egito, onde estava indo para cobrir a COP 27 (a 27ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas), Naira falou sobre como foi o processo de investigação sobre a China Tobacco, por trás da reportagem veiculada em 22 de junho de 2021 no The Intercept Brasil: “‘É QUASE ESCRAVO’ Dívidas e doenças: é assim que o Brasil produz o fumo da China Tabacos, maior fabricante de cigarros do mundo”.
Graduada em jornalismo em 2006 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seu trabalho já foi reconhecido com Prêmios de Direitos Humanos de Jornalismo, o Prêmio ARI, da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), e o Prêmio de Jornalismo da Justiça Eleitoral do Rio Grande do Sul. Fluente em inglês e espanhol, escreveu para veículos como El País (sucursal brasileira), Agência Pública, Piauí, Yahoo e, no Uruguai, comentou sobre o Brasil para a Rádio Océano FM, entre muitas outras.
Leonardo Oberherr (LO): Em suma, uma reportagem costuma ser feita por interesse público, seja ele com qualquer critério de valor-notícia que paute a equipe. Mas uma pauta investigativa não costuma ficar evidente até que se tenha uma hipótese e tenha mínima apuração que dê indícios da hipótese estar correta. Como foi o “insight” que deu início à reportagem em questão? Houve alguma denúncia em especial?
Naira Hofmeister (NH): Essa reportagem especificamente foi um trabalho bem diferente das que eu fiz. Ao mesmo tempo que ela era uma reportagem individual, como eu costumava fazer, ela era também parte de um trabalho maior, uma grande investigação internacional realizada pela Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), que é uma organização de repórteres investigativos que se dedicam a basicamente investigar grandes corporações, corrupção, fazem investigações bastante pesadas, lidando com temas bastante complexos, num nível de investigação bem — realmente — difícil. A OCCRP contatou o The Intercept Brasil (TIB), pois era uma investigação transnacional, com repórteres de muitos lugares no mundo investigando a China Tobacco, a maior produtora de cigarros do mundo, mas é uma empresa bem desconhecida quando falamos de cigarros, fumo. Pouco se sabe sobre a empresa, e a pauta era basicamente essa: investigar a China Tabacos (nome em português) em várias partes do mundo e por isso chamaram o TIB para fazer parte, porque o Brasil é um produtor de fumo muito relevante. Então o The Intercept me chamou para fazer a reportagem. Eu precisava entregar uma reportagem para o TIB, em texto, e com algum vídeo e ela faria parte da reportagem internacional, que também me demandava outros conteúdos relacionados, em um processo colaborativo. A reportagem nacional foi focada nos produtores de fumo que trabalhavam para esta empresa, mas acabei levantando muitas informações sobre essa empresa no Brasil, que, enfim, essa coisa de uma joint venture com uma outra empresa americana foi uma novidades para eles, e isso era um dado relevante do ponto de vista internacional. Foram várias contribuições que eu fiz, junto do outro repórter no Brasil, Luiz Fernando Toledo, que era o editor no Brasil da OCCRP. Fizemos alguns levantamentos sobre o lobby do tabaco no Brasil, coisas que na matéria brasileira não entraram tanto, mas que dentro do conjunto de reportagens da OCCRP internacional foi bem importante. Foi um processo muito enriquecedor poder contribuir com uma reportagem investigativa em um nível internacional, com reuniões de discussões semanais, com gente de todos os lugares do planeta, a coordenadora do projeto estava na Itália, havia um repórter colombiano, editor da América Latina. Tinha um repórter de um país africano que não falava português, de Hong Kong, a Romênia… enfim, tinha gente de todos os lugares, era muito legal. Esse grande projeto de investigação que contou a história dos produtores gaúchos que trabalhavam para a China Tobacco, rastreou um caminhão fantasma que fazia uma rota — se não me engano - entre a Romênia e a Itália que contrabandeava cigarro dessa companhia. Foi uma investigação com métodos inclusive bem complexos de se executarem, como neste rastreio do caminhão, foi usado, de fato, um rastreador. Na Colômbia, os repórteres compraram cigarro contrabandeado, foram muitas pontas que essa reportagem amarrou. Por um lado foi muito legal, mas por outro foi um processo muito complexo de apuração, foi também muito tempo de apuração por conta dessa demanda de informações que precisava ser levantada.
LO: Quanto tempo e quantas pessoas foram envolvidas em todo processo de criação da matéria? Desde a produção, consultas jurídicas e finalização de artes e ilustrações?
NH: No TIB a equipe era basicamente eu, a videomaker que teve um trabalho bem restrito ao campo e depois na finalização do vídeo, a editora de vídeos e as duas editoras da matéria. O Editor Executivo do The Intercept, os advogados e mais algumas pessoas, além do administrativo. no TIB não tinha 10 pessoas. Mas internacionalmente tinham muitas pessoas. Nossas reuniões de pauta costumavam ter umas oito ou nove repórteres, que também tinham seus editores. Então, era uma equipe enorme.
LO: Não é regra, mas costumeiramente uma reportagem escrita no âmbito investigativo costuma ser longa e ter muitas informações. nomes, personagens, ações e reações. Neste caso específico houve uma preocupação para que o fio-condutor tivesse uma linha de raciocínio, temporal, para que o leitor conseguisse entender o que estava acontecendo? Existe alguma técnica, semelhante às de jornalismo literário, ou somente a prática leva à coesão textual? Houve alguma dificuldade em escrever o texto uma vez que os principais personagens (que mais são citados) são empresas e não necessariamente pessoas?
NH:
LO: Na reportagem em questão foram escolhidas ilustrações personalizadas para o texto, isso se deu por característica editorial, ou foi opção sua? Sendo uma escolha da repórter, poderia explicar o que lhe motivou essa decisão?
NH: Isso foi uma decisão do The Intercept. Até tínhamos fotos, mas decidiram fazer ilustrações, e a investigação internacional, da OCCRP também foi toda ilustrada com ilustrações diferentes, e foi uma casualidade, tanto a reportagem nacional quanto a internacional tinham como principais imagens as ilustrações e não as fotos.
LO: O contato com a China Tabacos e a Alliance One foram complicados, tanto que no texto você dialoga com o leitor e explica: “Precisei procurar diretamente um dos gestores da companhia chinesa para pedir esclarecimentos […]”. Esta atitude por parte das empresas “investigadas” é costumeira? No momento de construção de pauta, já se pressupõe a dificuldade de resposta e se pensa em alternativas, ou foste “pega de surpresa”?
NH: Bom, não podemos generalizar, tem casos mais fáceis que outros. A maioria das grandes empresas têm assessorias de imprensa, inclusive esta empresa também tinha, mas na última hora ele disse que não poderia responder pela China Tabacos, e que foi desautorizado pela empresa. Normalmente não é assim, não é difícil contatar a empresa, é mais complicado fazerem com que respondam exatamente aquilo que a gente pergunta. Muitos casos as empresas mandam notas, não esclarecem os pontos que estamos pedindo para esclarecer, e saem pela tangente. Na maior parte das vezes as empresas respondem. Neste caso específico já tínhamos esta perspectiva de que seria bem complicado contatar a empresa no Brasil e internacionalmente, porque essa empresa tem essa característica. Ela é bastante fechada, não é muito conhecida. Não dá muita satisfação, não gosta muito de publicidade. No fim das contas, pelos diversos caminhos, até acredito que fomos bem sucedidos. Conseguimos a palavra da assessoria de imprensa, da empresa que é sócia da China Tabacos no Brasil - que era importante ter - e também da própria China Tabacos através de um dos sócios. Creio que tivemos bastante vozes da empresa falando na matéria e nos apoiamos também em bastante documentos falando, que acabam sendo a voz da empresa, como os contratos.
LO: Analisando o jornalismo investigativo no macroambiente, não somente esta reportagem: Quais os principais desafios a serem combatidos pelos jornalistas?
NH:
LO: Há em textos acadêmicos a ideia de que um jornalista investigativo “sonha em ser policial”. A grosso modo, a referência se dá pelo fato de que em algumas oportunidades se trabalha “disfarçado”, e faz papel de investigador criminal. Como você identificou alguma característica em você que lhe colocasse junto ao Jornalismo Investigativo?
NH: Quando comecei a trabalhar essa forma de se identificar não era tão comum. Eu me lembro de colocar no meu currículo que eu fazia ‘reportagens de fôlego’, de profundidade. Era nesse sentido, eu gostava de ir muito afundo nos assuntos que trabalhava, sempre gostei de fazer assim. A profundidade nos tira um pouco dessa cilada que às vezes o jornalismo mais rápido cai, que é ‘um cara diz uma coisa, outro cara diz outra’. Essa oposição que é normal na sociedade, tudo que se discute as pessoas possuem um ponto de vista. esse jornalismo que hoje nós chamamos de investigativo, mas que quando comecei eu chamava de ‘profundidade’ permitia que eu pudesse ir aprofundando. Você começa a matéria partindo destes pontos de vistas diferentes, mas tu tens espaço para ir aprofundando estes pontos de vista, mostrando as fragilidades, ou mostrando os pontos que torna um destes lados mais crível do que a contrária. Quando descobri que fazia jornalismo investigativo eu notei que já fazia isso há muito tempo. Eu comecei a ir nos Congressos da ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e falei: ‘pô, isso que eles estão falando que é jornalismo investigativo, na verdade eu já faço!’ Daí em diante eu pude ter mais ferramentas e me aperfeiçoar cada vez mais na área.
LO: Considerando os jornalistas investigativos em atividade no Brasil, grande parte possui “carreira” na área. Você diria que trabalhar seja uma “vocação’’? Aos que possuem interesse em seguir carreira no jornalismo investigativo, qual sugestão você poderia dar para que o interessado decida de vez se quer ou não seguir nesta carreira? Quais as vantagens e desvantagens?
NH:
Esta entrevista foi produzida pelo aluno Leonardo Oberherr, da graduação em jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com supervisão da professora Luciana Kraemer.