Especial Abril Indígena: Beta Redação promove espaço de escuta
Mestranda da UFRGS e professor do NEABI Unisinos participaram de atividade especial motivada por ocupação estudantil em Porto Alegre
“Nossos ancestrais semearam esses lugares e nós somos essas sementes. E mesmo com essa invasão da cidade, das universidades e dos prédios, essas sementes têm potência de vida. Por isso, estamos aqui: para que nossa vida possa ser menos sofrida”, expressou Angélica Domingos, do povo Kaingang, sob a luz fraca do poste de iluminação pública, em transmissão de vídeo por celular enquanto seguia em vigília na ocupação dos estudantes indígenas do antigo prédio da Secretaria da Produção, Indústria e Comércio (SMIC), em Porto Alegre.
Para os alunos e alunas da Beta Geral, a mestranda em Política e Serviço Social da UFRGS denunciou o racismo estrutural praticado pela instituição e defendeu a urgência de uma residência estudantil exclusiva para os indígenas. O encontro remoto contou também com a participação do professor Walmir da Silva Pereira, integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) da Unisinos. A escuta ocorreu na noite de terça-feira, dia 15, como parte de atividade acadêmica de Laboratório de Jornalismo e preparação para o especial temático sobre o abril indígena e o Dia Mundial da Terra.
Na rua da Inovação, como aponta um placa próxima ao prédio da antiga SMIC, avista-se uma ruína em rápido processo de deterioração. Abandonado em 2017 com a promessa de revitalização por parte da Prefeitura, a estrutura vizinha ao túnel da Conceição estava com um futuro prometido, que não se concretizou. O prédio é tema de negociação desde janeiro de 2021: nele, a UFRGS instalaria o Parque Científico e Tecnológico Zenit, além de outros departamentos relacionados à inovação e empreendedorismo — incluindo a sede do Pacto Alegre, programa que envolve também o Executivo, a PUC-RS e a Unisinos. Mas, em fevereiro de 2022, após complicações burocráticas, a UFRGS anunciou o desinteresse em manter o processo de formalização de uso do prédio. A Prefeitura então, arrolou o espaço na lista de imóveis à venda.
Cerca de 15 dias depois, o terreno e a frágil estrutura passaram a ser palcos de mais uma disputa legítima dos povos indígenas, a partir das demandas dos estudantes universitários e de ensino médio de diversas etnias. Desde domingo, 6 de março de 2022, ecoam no local as rezas, os cantos e as discussões estratégicas — vozes dos ocupantes indígenas e apoiadores de uma causa que precisa ser ouvida.
Demanda já se arrasta há mais de uma década
Desde 2008, a pauta de uma residência estudantil indígena, que possibilite manter e cultivar as especificidades dos modos de vida dos povos, é uma demanda dos estudantes que passaram a frequentar a universidade federal. Atualmente, a situação dos moradores indígenas da Casa do Estudante Universitário (CEU) é marcada por uma forma de viver delimitada, reduzida, e condicionada às normas dos brancos. “Conseguimos acesso ao ensino superior, então por que a universidade não pergunta como queremos o ensino superior? Nós também somos a universidade”, pontuou Angélica.
Desde 2014 os estudantes vem organizando documentos para atender aos protocolos da UFRGS, sem grandes avanços. Em carta aberta, o Coletivo dos Estudantes Indígenas da UFRGS fundamenta e expõe o histórico de silêncio da reitoria frente às demandas. Em parágrafo grifado, explicita: “Com todo exposto, solicitamos que a UFRGS crie, URGENTEMENTE, condições para moradia indígena digna com a criação da Casa dos Estudantes Indígenas, possibilitando a moradia para as crianças e a convivência com seus familiares e lideranças comunitárias indígenas.”
Em 2016, a reivindicação dos indígenas pela casa estudantil passou por abaixo-assinado e a abertura de um processo administrativo na UFRGS, sem respaldo da instituição. Em 2017, um novo documento foi protocolado, expressando a urgência de medidas, devido a situação das mães indígenas, pedindo, ao menos, um espaço temporário enquanto não houvesse prédio próprio para isso. “Até que esse ano, através de nossas mobilizações, estando de corpo e rosto presente, fomos recebidos pela vice-reitora”, conta Angélica. Seis anos após o abaixo-assinado e somente depois do envolvimento da polícia, do conselho tutelar, do ministério público e da sociedade civil, o coletivo foi recebido pela Reitoria da UFRGS.
Sem um acordo satisfatório, a sala da Reitoria foi ocupada. Demorou apenas uma hora até a vice-reitora assinar um documento em que se comprometia a dialogar com a Prefeitura de Porto Alegre na busca de uma doação de prédio municipal para a construção da CEU Indígena. A Prefeitura já havia dado abertura para essa solução. Mas, de parte da universidade, “falta uma vontade política e ética”, criticou a mestranda.
A atual CEU não permite que mães mantenham juntos de si seus filhos e filhas, ainda que isso aconteça de forma irregular e com alguma vista grossa por parte da instituição — uma situação indigna, como salientou Angélica. Além disso, a assistente social ensina que "o aprender a ser e o aprender a se relacionar indígena se dão de forma coletiva, ou seja, envolvem todas as gerações, os anciões, líderes espirituais e crianças, inclusive outros parentes de outros povos, que não precisam ser sanguíneos", relatou.
Tais costumes não são bem vistos por outros moradores da CEU, sendo motivo de reclamações administrativas contra os indígenas, além dos diversos casos de racismo. De forma recorrente, estudantes indígenas encontram lixo jogado nas portas de seus quartos e, recentemente, após o início da ocupação, um cacho de banana já apodrecido foi pendurado na maçaneta da porta de uma estudante indígena.
Por essas razões, a criação de uma CEU exclusiva, pelo menos para as mães indígenas, já é vista como um bom passo em direção a uma maior integração dos povos originários nos espaços de formação e conhecimento universitário. Angélica celebra a conquista das vagas específicas ainda em 2007 e 2008, e a lei das cotas em 2012, mas as considera insuficientes.
“A gente quer deixar um espaço mais digno, mais respeitoso, para que nossas crianças possam ser quem elas são, para que não venham a ter esse sofrimento que acabamos vivendo dentro da universidade, que é, muitas vezes, um espaço de opressão. Então estamos dando nossa cara, mostrando quem nós somos, para que as pessoas possam nos respeitar”, explica a mestranda.
Com as atuações mais combativas do movimento, a expectativa do grupo é ter atendidas as suas demandas. Há um pedido de reintegração de posse do espaço da antiga SMIC em aberto, mas a Procuradoria do Ministério Público Federal estaria disposta a aguardar os prazos máximos para dar andamento no processo para que avancem as negociações em benefício da causa indígena.
Entrar na universidade é uma coisa, permanecer é outra
O sociólogo Walmir da Silva Pereira, mestre em Antropologia e doutor em História, lembrou que há muito tempo as universidades entram nas aldeias para aprender o que os indígenas sabem, e levam conhecimentos ancestrais para a sociedade branca. No entanto, o inverso não ocorre, e muito pouco — ou praticamente nada — retorna para as aldeias. Por isso o especialista afirmou que “não é só estar dentro da universidade, é preciso reconhecer, acolher, ter espaços indígenas dentro da universidade”.
Os convidados concordaram que a presença indígena nos ambientes acadêmicos— a indigenação, como chamada por Angélica — seria uma vitória da diversidade, da pluralidade e do reconhecimento de diferentes formas de viver, que impactaria positivamente a visão de mundo ocidental e branca. Porém, as regras iguais, aplicadas à grupos de contextos desiguais, acabam impedindo que isso ocorra.
Ao se despedir dos estudantes da Beta Redação para acolher uma pajé, vinda do Nordeste, que iniciara uma roda de reza e cura na ocupação, Angélica deixou uma promessa e um convite aos alunos e alunas: “Vamos seguir indigenizando e territorializando esses lugares nos quais a gente circula”, finalizou.
Permanecendo no encontro, o professor Walmir amarrou as discussões trazendo dados importantes a serem pautados pelos jornalistas — como a diversidade indígena ainda resistente no Brasil, citando dados do censo do IBGE de 2010, que aponta 305 grupos étnicos indígenas existentes em território nacional. "O Rio Grande do Sul é o estado mais plural da nação”, afirmou Walmir, contrariando o senso comum de que nosso território é predominantemente branco.
Está no RS, por exemplo, o único território Charrua reconhecido mundialmente. Símbolo local, transformado em marca por algumas empresas gaúchas, os Charruas são um grupo étnico que até alguns anos era considerado extinto devido ao assassinato sistemático promovido pelas populações colonizadoras.
Walmir mencionou também o impacto da pandemia nas populações originárias e a postura do governo federal, que classificou como “genocídio escancarado, para além da necropolítica estatal”. Para o sociólogo, a ocupação dos estudantes indígenas em Porto Alegre está atrelada a um movimento maior, de resistência ao racismo estrutural e sistêmico que atravessa todas as instituições.
“No Brasil todos temos sangue indígena. Alguns nas veias, alguns na alma. Mas, infelizmente, alguns tem sangue indígena nas mãos. Não são muitos, mas eles tem muita grana e muito poder político”, provocou.
Neste cenário, ter indígenas ativos no ensino superior é uma oportunidade de mudar lógicas que estão levando a sociedade a globalizada a cruzar os limites da capacidade de regeneração do planeta. Mas enquanto os indígenas estiverem isolados, em cursos diferentes, sem amparo e desterritorializados de suas aldeias, será difícil colher essas transformações.
“É muito necessário ampliar o número de vagas”, defendeu Walmir, enquanto lembrava de uma experiência na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na qual 120 indígenas entraram ao mesmo tempo no ensino superior e puderam vivenciar a universidade enquanto coletivo. Após esta mobilização, conquistaram lá uma CEU Indígena.
“Não há ‘questão indígena’, há ‘questões’, uma temática indígena, que precisa ser pensada de forma interdisciplinar. E acho essencial o papel da comunicação, ainda mais na universidade”, apontou. “Esses povos sempre tiveram e têm voz. O que acontece é que a universidade, o setor público e a sociedade, em geral, não dão ouvidos. Essa escuta é importante, a escuta qualificada. Para que, então, a gente construa e consolide um diálogo”, finalizou.
O fim da caminhada, já no horizonte
Na tarde de 24 de março, uma audiência de reconciliação na 9ª Vara Federal de Porto Alegre deu esperança ao movimento. Nela, o Procurador-chefe da UFRGS, Eduardo Fernandes de Oliveira, afirmou que havia destino para a CEU Indígena. Segundo ele, não seria necessário uma segunda audiência, marcada pela juíza para 7 de abril.
Na manhã de segunda-feira, 28 de março, o local foi revelado. Em reunião com o coletivo, a Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS anunciou que a antiga creche da Universidade, desativada na pandemia, passará a abrigar os estudantes indígenas.
O local é arborizado, bem localizado, e fica junto ao Campus Saúde e com bonita área comum, conforme descrito por Alass, jornalista que cobriu a mobilização desde o início. O coletivo alerta para o dever da instituição de reabrir a creche para as mães não-indígenas em novo local, de modo a não criar mal-estar entre as partes. A visitação do coletivo ao local da futura Casa do Estudante Indígena está prevista para dia 30 de março.
AJUDE A MOBILIZAÇÃO INDÍGENA
Para ajudar a causa, doe materiais de limpeza, alimentos, água e frutas na ocupação do antigo prédio da SMIC. Você pode participar presencialmente das vigílias e também contribuir com qualquer valor via Pix para o celular 51 996 265 542 (Viviane Belini Lopes). Mais informações no perfil @suljuventudeindigena no Instagram.
Atualização em 12 de abril de 2022
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