Competitividade de jogos virtuais pode afetar crianças e familiares

Garoto de 11 anos chegou a gastar 21 mil reais em microtransações no contexto do jogo Clash of Clans

Murilo Dannenberg
Redação Beta
7 min readNov 30, 2020

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Smartphones e games free-to-play possibilitam que crianças tenham acesso a lojas de itens e apostas dentro dos jogos. (Imagem: Reprodução/Pikrepo)

Nos últimos 10 anos, o cenário competitivo dos jogos virtuais evoluiu drasticamente através de franquias como FIFA, League of Legends, DOTA, Counter Strike, os games de formato battle royale e de estratégia, como o muito popular no Brasil e no mundo, Clash of Clans. A popularização destes títulos, alguns gratuitos, permitiu que um público cada vez mais jovem tivesse contato com esse universo.

Os games movimentam uma indústria milionária. Clash of Clans, por exemplo, teve uma arrecadação de 727 milhões de dólares em 2019. Mas, como as desenvolvedoras ganham dinheiro? Essa é a questão que permeia o imaginário ao se pensar nos jogos free-to-play (gratuitos para jogar, em tradução literal). A resposta é: através de itens customizáveis, loot boxes e microtransações. No caso do jogo desenvolvido pela SuperCell, essa receita bilionária, quando cifrada em reais, é fruto da venda de vantagens no game.

No formato mobile, esses games fazem parte do dia a dia de crianças através da jogatina nos smartphones dos pais ou dos seus próprios. Como esses aparelhos são utilizados para diversas funções, como pagar contas, por exemplo, é comum que eles armazenem dados de cartões de crédito, por exemplo.

Enquanto se realizava a final do mundial de Clash of Clans no domingo, 29 de novembro, assistida por milhares de pessoas fascinadas pelo desempenho dos jogadores e pelo sonho do prêmio de 1 milhão de dólares, a realidade para os jogadores comuns é outra. O cenário que se cria é o de crianças e adolescentes inseridas em um ambiente competitivo, munidas da possibilidade de comprar diversos tipos de itens através dos meios de pagamento salvos nos celulares.

Para alertar sobre os riscos dessas condições, a Beta Redação ouviu um pai — que preferiu manter seu nome e o do filho em anonimato — para contar a experiência de comprometimento financeiro que teve com o filho de 11 anos. A Beta Redação conversou também com duas especialistas em psicologia infantil para explicar como as famílias podem se prevenir e evitar esse tipo de prejuízo.

“Um carro popular jogado fora”

Vinte e quatro mil reais em dois meses. Esse foi o valor dispensado pela família de um empreendedor gaúcho por consequência das jogatinas online do filho de 11 anos. Confira a entrevista realizada com o pai:

Beta Redação: Como era a relação do seu filho com aparelhos eletrônicos?

Pai: Ele teve iPad desde pequeno e sempre teve aplicativos para desenvolver a leitura, a parte criativa, como a pintura, justamente para usar como estímulo pra ele. Nós deixávamos porque víamos que era uma tecnologia que iria durar, mas não imaginávamos os problemas que viriam ali na frente. Ele usava muito computador e tinha outros aparelhos sempre disponíveis. No decorrer do tempo que ele foi tendo mais privilégios.

Beta Redação: O cartão de crédito da família já estava vinculado ao aparelho ou foi uma iniciativa dele?

Pai: Com o cartão de crédito foi assim: até uma certa idade nós dávamos algumas coisinhas para ele, algum joguinho, alguma coisinha em uma data como aniversário, Dia da Criança. Aí lá pelos 11 anos, como ele tinha alguns amigos mais velhos e eles já tinham algumas coisas a mais nos jogos, às vezes eu comprava ou a vó dele comprava. No entanto, sempre que a gente colocava o cartão de crédito, a gente tirava depois. Nunca deixava gravado, por motivo de segurança.

Beta Redação: Como eram essas compras?

Pai: Não eram valores altos. Eram de 10 reais ou 20 reais, no máximo uns 80 reais quando a gente queria fazer um agrado pra ele. Nós fazíamos alguns agrados pra ele sim, porque era uma compensação pelo esforço dele em outras áreas. Ele sempre gostou muito de jogar futebol. Quando ele se empenhava, a gente compensava com outra coisa que ele gostava, que eram os jogos.

Beta Redação: Como aconteceu o problema com as microtransações?

Pai: Teve um episódio que ele pegou o cartão da vó dele na bolsa. Ele preencheu o cartão no aplicativo e ele precisava comprar gemas para fazer upgrades nos jogos. No primeiro mês que ele fez isso gastou uns 4 mil reais. Foi dado um castigo pra ele. Tiramos celular e beleza, passou.

Poucos dias depois, mesmo depois do castigo, ele fez a mesma coisa. Pegou o cartão da vó dele e gastou em torno de 21 mil reais entre uma e duas semanas. Tudo isso em compras dentro do Clash of Clans.

O cartão da vó dele era corporativo, então tinha esse limite altíssimo. Aí quando chegou a fatura tivemos que despender de um valor que estávamos guardando para um investimento no futuro dele, como uma faculdade, por exemplo. Tínhamos um valor em torno de 22 mil reais.

Beta Redação: Como lidaram com a situação?

Pai: O meu filho é impulsivo, ele tem Transtorno Opositor Desafiante, ele desafia limites. Ele foi diagnosticado com esse tipo de distúrbio. Ele também foi diagnosticado com hiperatividade. O que motivou ele foi muito a questão da ansiedade. Ele agia por impulso. Ele sofria depois, ele se arrependia. Mas como ele tinha o impulso, ele foi fazendo e a adrenalina subia. Ele não teve consciência do alto valor que ele investiu naquilo ali.

Resumo da história, ele gastou mais de 24 mil em dois meses, por impulso, ansiedade e descontrole emocional. Pra mim ficou uma dor muito grande, porque eu botei um valor de um carro popular no lixo. Ele tem um irmão, e uma coisa que era pra ser deles, deixou de existir.

As origens dos riscos

A neuropsicóloga Thalita Diniz é especializada no atendimento do público infantojuvenil. (Foto: Arquivo pessoal/Thalita Diniz)

A neuropsicóloga Thalita Diniz indica os aspectos que explicam a vulnerabilidade do público infantil. Para a profissional, a junção do acesso fácil à tecnologia e games cria um ambiente que prende os mais jovens. Segundo ela, as crianças passaram a perder o interesse pelo convívio social, brincadeiras ao ar livre entre outras atividades. “O baixo engajamento em tais ações sociais e brincadeiras alteram o desenvolvimento desta criança, podendo afetar até níveis de inteligência”, reflete.

Outro ponto explorado pela profissional foi os padrões de consumo da sociedade atual. “A criança participa ativamente nessa sociedade consumista através da cópia de comportamentos e dos reforçadores sociais consumistas, bem como através dos modelos que ela segue. Sabe-se que a exposição e o acesso muito fácil à publicidade e a jogos virtuais vêm transformando os hábitos de relacionamento social e as práticas de convívio”, pontua.

Ela ainda explica que o consumo se torna parte da identidade do público jovem, o que leva a um estágio de busca por um prazer imediato que não satisfaz, no longo prazo, as necessidades das crianças. Desse modo, transtornos como ansiedade e depressão aumentam de forma significativa.

Logo após concluir a instalação de “Clash of Clans”, o usuário recebe um aviso de que pode acelerar seu progresso com compras no jogo. (Imagem: Reprodução/SuperCell)

De que forma os pais podem se prevenir?

· Controle o tempo que seu filho permanece diante de aparelhos eletrônicos.

· Brinque com ele de atividades em família, como jogos coletivos e de tabuleiros.

· Incentive seu filho a sair e conversar com outras pessoas (ação fundamental para desenvolvimento de habilidades sociais).

· Incentive seu filho a ler (ação protetiva para prevenir depressão, ansiedade e doenças neurodegenerativas).

· Monte uma rotina que possa guiar seu filho a realizar outras tarefas em casa.

· Nesta rotina acrescente atividades de auxílio para organizar a casa (importante para o desenvolvimento de responsabilidade).

· Limite o valor mensal que seu filho pode gastar com jogos eletrônicos e vincule esse valor às tarefas a serem realizadas (assim ele compreenderá o valor real do dinheiro).

Como funcionam as microtransações?

Apesar de jogos como Clash of Clans serem gratuitos para jogar em qualquer smartphone, a quantidade de ofertas que ele faz aos jogadores é imensa. São itens de defasa, recursos, armas e armadilhas. Como forma de atrair o público, a SuperCell, desenvolvedora do game, aposta na estruturação do game como um esport através de premiações milionárias nos seus campeonatos, que tiveram a primeira edição realizada em 2019.

Quanto maiores os benefícios dos itens, mais gemas o jogador precisa comprar. É comum que os conteúdos produzidos para redes como YouTube e Twitch mostrem “aldeias” — os locais que os jogadores precisam desenvolver e proteger durante o jogo — bem desenvolvidas, com itens avançados e com alto custo in-game. Um exemplo é o canal “ClashLand”, que conta com 263 mil inscritos.

O canal brasileiro “ClashLand” posta vídeos quase diariamente e já soma mais de 25 milhões de visualizações. (Imagem: Reprodução/YouTube)

Tanto o game quanto os conteúdos disponíveis livremente em redes como o YouTube estimulam o público a tentar diferenciar seus personagens. Dentro do jogo, a loja oferece diversas vantagens ao custo de gemas. Estas são a moeda principal em Clash of Clans. Para ganhá-las em grande quantidade, o jogador precisa jogar por muitas horas e atingir desafios propostos. Ou, se tiver pressa, pode comprá-las com dinheiro real.

As compras no jogo são feitas através do uso de gemas. Estes, por sua vez, podem ser comprados com dinheiro real (Crédito da foto: Reprodução/SuperCell)

As gemas são vendidas em quantidades que variam entre 80 e 14 mil. Neste último caso, cada caixa custa 549,90 reais, ou seja, mais de 50% do salário mínimo brasileiro. Segundo a Dra. Vera Ramires, especializada em psicologia infantil e docente na Unisinos, as empresas têm responsabilidade social na construção dos games. “Há uma questão ética importante que o desenvolvedor dos jogos deveria levar em consideração quando os jogos são voltados ao público infantil, de forma a não manipular as crianças indevidamente”, aponta.

Baseado-se nisso, Vera conclui como os responsáveis podem evitar imprevistos nas faturas familiares: “​acompanhando os jogos utilizados pelos filhos, colocando barreiras de segurança na utilização do cartão de crédito, conversando com as crianças e conhecendo mais de perto os jogos que as crianças estão utilizando”, indica.

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Murilo Dannenberg
Redação Beta

Jornalista. Curioso sobre como as coisas funcionam, com ideias de porque vemos o mundo tal como o percebemos e o que o futuro nos reserva.