Eventual mudança na lei que garante o direito ao aborto nos EUA pode acender discussão no Brasil

“Roe vs. Wade” foi aprovada em 1973 e permite a interrupção voluntária da gestação como direito constitucional da mulher

Luiza Soares
Redação Beta
10 min readMay 27, 2022

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Votação pela possível proibição do direito ao aborto está marcada para o fim de junho. (Foto: Gayatri Malhotra/ Unsplash)

Nas últimas semanas, os Estados Unidos têm vivido momentos de incerteza no âmbito das liberdades individuais. Isto porque a lei que autoriza o aborto em território estadunidense pode ser revogada após quase 50 anos em vigor.

A possibilidade da proibição do procedimento veio à tona depois que o site “Politico” vazou o rascunho do documento assinado pelo juiz conservador da Suprema Corte, Samuel Alito, no qual ele chamava a lei denominada “Roe vs. Wade” de “flagrantemente errada” e que deveria ser anulada.

De acordo com portal, o esboço foi distribuído em fevereiro de 2022 e ainda pode ter seu resultado alterado, já que o fim da votação está previsto para até o final de junho.

Os juízes Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barret (todos indicados por ex-presidentes republicanos), se juntam a Sam Alito e formam maioria no tribunal pela derrubada da legislação de 1973, sendo Alito considerado “um dos juízes mais conservadores da Suprema Corte”, de acordo com o jornal The New York Times.

Caso seja aprovada a revogação da lei, a decisão tornará o aborto ilegal imediatamente em 25 Estados — em outros 22 seria mantida a possibilidade de interrupção da gravidez, enquanto em outros quatro estados não haveria proibição, porém inexistiria legislação que garantisse o procedimento. E assim, cada governo estadual deve decidir individualmente se e quando os abortos seriam legais.

O aborto como instrumento do discurso conservador

A legalização do aborto e o direito a vida é uma temática presente em campanhas dos políticos conservadores. O Partido Republicano assume nos discursos o chamado “Pro-Life” (“Pró-Vida”, tradução livre), que mesmo nas primeiras semanas de vida, o feto tem o direito à vida, com base em argumentos religiosos. De acordo com o pesquisador do Núcleo de Estudos do Brics (NEBRICS) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos EUA (GEPEUA), Matheus Bianco:

“A discussão (sobre o aborto) ocorre em meio à uma extrema polarização da sociedade estadunidense. Há diversas razões que poderíamos apontar sobre a intensificação do debate neste momento, e varia de acordo com o analista e a perspectiva. Mas em um geral, aponta-se que ocorre por conta da contínua exploração do discurso conservador o qual o Partido Republicano vem empenhando-se nos últimos anos”, afirma Matheus.

Atualmente, alguns territórios estadunidenses já possuem suas próprias legislações por restrições mais rígidas sobre o aborto. Por exemplo, os Estados situados na região sul do país, considerados historicamente conservadores, como Mississippi, Arizona, Oklahoma e Louisiana, aplicam leis mais restritivas, sendo o Texas o mais intolerante.

O governo texano aprovou, em setembro de 2021, por exemplo, uma lei que proíbe o aborto após seis semanas de gestação, a “The Heartbeat Act” (“Lei do Batimento Cardíaco”, em tradução livre). O atual presidente Joe Biden tentou derrubar a decisão, porém o 5º Tribunal de Apelações do Circuito dos Estados Unidos optou por mantê-la.

Além disso, o governo oferece uma recompensa de US$ 10 mil para quem denunciar mulheres ou clínicas que realizam o procedimento do aborto após um mês e meio de gestação. No primeiro mês desde que a lei passou a vigorar, o Texas registou uma queda de 60% nos abortos.

Porém, essa não é a primeira vez que a “Roe vs. Wade” sofre tentativas de ser barrada do Senado. Desde que foi aprovada em 1973, políticos republicanos conservadores se empossaram do movimento “Pro-Life”, associado a vários grupos religiosos cristãos, especialmente a Igreja Católica.

O ex-presidente George W. Bush assinou várias leis antiaborto, quando assumiu a Casa Branca entre 2000 e 2008, incluindo a primeira proibição federal de um procedimento específico de aborto, de acordo com o pesquisador.

“Ele [Bush] também usou sua autoridade para limitar pesquisas financiadas pelo governo federal sobre células-tronco embrionárias. No entanto, evitava tomar medidas mais contundentes nesse sentido, dizendo em meados dos anos 2000 que era preciso, antes de tudo, ‘persuadir mais americanos a tomar nosso lado (antiaborto) antes de pressionar por restrições mais amplas’”, explica Bianco, que é mestre em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI/UFRGS).

No início do mês, logo após o vazamento do documento, Biden afirmou que seu governo estava pronto para responder e proteger o direito à escolha do aborto caso alguma decisão restritiva fosse emitida. O democrata reforçou que o direito de escolha feminina é fundamental e que caberia também à população estadunidense escolher parlamentares favoráveis a este direito, já que em novembro haverá eleições ao Congresso.

“Sobre os impactos dessa possível revogação, um colunista da New York Times registrou que ‘a morte desta lei irá dividir a América definitivamente’, compreendendo que gerará um aprofundamento das tensões e das divisões sociais que já ocorrem no país (entre democratas x republicanos; liberais x conservadores)”, aponta.

Caso a votação seja a favor de tornar o aborto ilegal, Joe Biden não poderá reverter o resultado, porém pode incentivar um movimento contrário via emenda constitucional no Congresso. De acordo com Bianco, o presidente afirma que buscará novos meios para proteger a decisão “Roe vs. Wade”, contudo sem deixar claro quais meio seriam estes.

“Por exemplo, houve recentemente uma tentativa dos congressistas democratas de transformar o direito ao aborto em lei, mas não passou pelo Senado dos Estados Unidos, sendo bloqueada pelos Republicanos, já que a proposta recebeu 51 votos contra e 49 a favor, sendo que eram necessários 60 votos para ser aprovada”, conta o pesquisador.

Marcha conservadora no 'verão da raiva'

Manifestantes e organizações a favor do aborto afirmam que o país irá viver um “verão de raiva”, como uma resposta a possibilidade de proibição do procedimento até a data final da votação.

Em 14 de maio, a Planned Parenthood (organização sem fins lucrativos que visa cuidados de saúde reprodutiva), a Women’s March e outros grupos organizaram mais de 400 protestos ao redor dos Estados Unidos, denominados “Bans Off Our Bodies” (“Proíbe nossos corpos”, em tradução livre), tendo a mobilização de Washington marchado até a sede da Suprema Corte.

O movimento do conservadorismo ganhou representantes muito fortes no cenário político mundial nos últimos anos, como o ex-presidente Donald Trump e o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

A campanha de Bolsonaro, na época em que foi eleito, se espelhou muito na de Trump, trazendo as pautas armamentistas, valores da família tradicional e, justamente, a proibição do aborto. Para Matheus Bianco, o movimento conservador brasileiro tem cada vez mais se aproximando do movimento estadunidense, o chamado “trumpismo”.

“Neste sentido, vem sendo desenvolvida uma profunda rede entre as partes, e, certamente, o ganho de uma pauta conservadora nos EUA é um estímulo a mais para a replicação de suas estratégias no Brasil, seja no discurso (através, sobretudo, das mídias sociais), seja na prática. Então, é de se esperar que, nos próximos meses, esse tema torne-se mais presente e debatido no cenário público político brasileiro” ressalta Bianco.

O Texas é o único estado que possui leis mais rígidas a interrupção voluntária ao aborto (Foto: Many Becerra/Unsplah)

Debate sobre o aborto inexiste no Brasil

No Brasil, o direito ao aborto é permitido somente em três situações: quando houver risco de vida na gestante; se a gestação for fruto de um estupro; ou se o feto for anencéfalo (quando o cérebro é subdesenvolvido e o crânio incompleto). Em qualquer das situações, o procedimento é autorizado a ser realizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Fora desses casos, o país considera crime a interrupção voluntária da gravidez, conforme os artigos 124 a 126 do Código Penal, de 1940, podendo uma mulher pegar de um a quatro anos de prisão.

Uma pesquisa do Datafolha de janeiro de 2019, mostrou que 41% dos brasileiros acreditam que o aborto deveria ser totalmente proibido, enquanto 34% afirmam que a lei deve permanecer igual, e apenas 16% gostariam que o procedimento deveria ser permitido em mais situações.

“O debate no Brasil sobre o aborto não existe, porque é um tema tabu e nem se consegue ter maturidade política suficiente para discutir esse tema de uma forma menos passional. Essa é uma questão de saúde pública. Mulheres morrem em função de cometer e de praticar o aborto de uma forma inadequada”, critica Maria Lúcia Rodrigues de Freitas, professora no departamento e no PPG em Ciência Política da UFRGS.

Apesar de países na América Latina como Argentina, Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa e o Chile terem aprovado leis menos restritas para a realização do aborto, no Brasil não devemos ter uma legislação que legalize a interrupção voluntária da gravidez tão cedo. Para Maria Lúcia, isso se reflete na atual presidência e os políticos que compõem o Congresso Nacional, que são majoritariamente homens conservadores.

“Eu tenho uma visão um tanto pessimista sobre isso. Eu acho que, como nós elegemos em 2018 um dos Congressos mais conservadores dos últimos tempos, não vejo condições políticas da gente discutir a descriminalização do aborto e muito menos aprová-la. Bom que se diga que boa parte desses projetos são proposições de deputados federais, homens que estão propondo esse retrocesso”, conta a professora.

Movimento feminista e o “Pró-Escolha”

Ativistas feministas foram peças-chave no cenário das leis a favor do aborto em outros países, confrontando o movimento conservador, carregando a bandeira do “Pro-Choice” (“Pró-Escolha”, tradução livre) enquanto do outro lado há a defesa da vida. Nos protestos do dia 14 de maio de 2022, manifestantes levaram as ruas cartazes com as mensagens como “Mantenha o aborto legal”, “Somos maioria” e “Aborto é saúde”.

Os movimentos sociais são fundamentais na história dos Estados Unidos, de acordo com Ana Regina Simão, professora de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-RS). “Os EUA são um país que tem uma força em movimentos sociais e abre caminhos historicamente, nesse sentido, ele é um país muito importante com grandes conquistas sociais que vem dos anos 1960”.

Foi também a partir da pressão das manifestações que a Argentina e o Chile decretaram a favor do direito do aborto. Após dois anos de reivindicações feministas, como a campanha “Ni Una a Menos” (que reuniu milhares de mulheres nas ruas da capital Buenos Aires), foi somente em 2020 que o Senado argentino aprovou a legalização do aborto.

O presidente argentino, Alberto Fernández, fez a seguinte declaração nas redes sociais após o resultado da votação:

Já em setembro de 2021, a Câmara dos Deputados do Chile votou a favor da descriminalização do aborto nas primeiras 14 semanas de gestação, seguindo os mesmos passos do país argentino. As manifestações na capital chilena foram um marco na história do país, o que foi chamado de “maré verde” por conta das milhares de mulheres que se concentraram nas ruas vestindo bandanas verdes, símbolo do movimento “Pró-Escolha”.

As ativistas argentinas marcaram o movimento “Ni Una a Menos” pelo forte uso da bandana verde, se tornando símbolo da marcha. (Foto: Malvestida/Unsplash)

“Por pressão dos movimentos feministas, que são muito atuantes, as feministas chilenas conseguiram então que essa convenção colocasse esse projeto fosse aprovado e isso vai ser discutido quando a Constituição vier a ser elaborada e daí substituir a Constituição existente, que ainda é da época do Pinochet”, explica a professora Maria Lúcia.

Reflexos na Europa

Na última semana, Portugal anunciou novas medidas na legislação do aborto. Uma proposta de novos critérios de avaliação da Administração Central do Sistema de Saúde, direcionada para médicos de família do Sistema Nacional de Saúde, visa oferecer um bônus aos profissionais se a paciente não realizar a interrupção da gestação.

A equipe médica receberá boas avaliações nos casos em que a paciente não fez um aborto ou não contraiu Doença Sexualmente Transmissível (DST). Os novos critérios já foram apresentados para a Direção Geral da Saúde (DGS) e aguardam a análise do Ministério da Saúde.

Caso seja aprovado, as equipes ganharão o bônus adicionado ao valor do salário, apenas se cumprirem as metas desenvolvidas pela Administração Central do Sistema de Saúde. Em Portugal, o aborto é legal e pode ser realizado sob qualquer circunstância até as dez primeiras semanas de gestação.

Para a professora Ana Simão, não somente os Estados Unidos, mas todos os países, estão sob uma agenda conservadora vigente, o que se reflete nas legislações sobre o aborto.

“Europa sempre teve traços conservadores e isso, dependendo, aumenta ou fica menos presente, menos evidente. O continente tem a França como protagonista e é um país que, pela segunda vez, Marine Le Pen chega no segundo turno, então isso já é um sinal”.

Outro país que divide o protagonismo com a França no continente europeu é a Alemanha. Em setembro de 2021, os alemães elegeram o Partido Social-Democrata (SPD), de Olaf Scholz, para substituir Angela Merkel, da União Democrata-Cristão (CDU), marcando a vitória da centro-esquerda sobre o movimento conservador.

“Outro sinal é a Alemanha. O parlamento alemão, as eleições legislativas já colocaram nove cadeiras, se eu não me engano, na última eleição de um partido nazista. Quando tu pensa na sobrinha da Le Pen (Marion Marechal Le Pen), ela está no partido mais extremo do que a tia, que de fato é um partido nazista. Então isso já são sinais. E os Estados Unidos também está sob essa agenda”, explica.

Seguindo o caminho contrário, a Espanha apresentou um projeto de lei que visa permitir a interrupção voluntária da gravidez para jovens de 16 anos sem necessitar da autorização dos pais, além de propor uma licença para menstruações incapacitantes.

A proposta já foi aprovada no Conselho de Ministros, mas falta ainda passar pelo Parlamento. Caso entre em vigor, a educação sexual passará a ser obrigatória nas escolas e também será facilitado o acesso a contraceptivos.

Apesar de ser um país majoritariamente católico, a Espanha possui o aborto gratuito voluntário até a 14ª semana de gestação e depois até a 21ª semana por motivos médicos.

“A gente está num momento bastante de recrudescimento de algumas conquistas sociais, de revisão, vamos dizer assim, mas por outro lado também tem avanços”, ressalva Ana Simão.

Para quem se interessar pela história da lei “Roe vs. Wade”, a plataforma de streaming Netflix lançou, em 2018, o documentário “Roe x Wade: Direitos das Mulheres nos EUA”. O filme entrevista pessoas a favor e contra o direito da interrupção voluntária da gravidez, políticos que estiveram envolvidos no desenvolvimento da lei, além de revelar a campanha do Partido Republicano para fechar as clínicas de aborto ao redor do país.

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