Interferência política no Enem gera retrocessos e culmina com apagão na educação

Consagrado como a principal porta de entrada ao Ensino Superior no Brasil, exame chega à 23ª edição entre avanços, recuos e desafios

Thariany Mendelski
Redação Beta
7 min readDec 2, 2021

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Demissões no Inep e debate político marcaram preparativos finais para o Enem 2021 (Foto: Mec / Divulgação)

Criado em 1998 para avaliar o desempenho dos estudantes no Ensino Médio, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), 23 anos depois, consagrou-se como o maior mecanismo de acesso ao ensino superior no país.

Ao longo do tempo, o Enem avançou em conceitos e padrões, mas tem ainda desafios pela frente. Após duas décadas , a prova mudou a vida de muita gente, e agora conduz a rotina dos estudantes que buscam acesso às instituições de Ensino Superior.

As notas do Enem são aceitas por todas as universidades, centros e institutos federais de educação, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) — que ainda oferece vagas em algumas universidades estaduais. O Enem é, ainda, critério para participação em programas como a Universidade para Todos (ProUni) e de Financiamento Estudantil (FIES), que ofertam, respectivamente, bolsas de estudo e financiamento, sem juros ou juros baixos, em instituições privadas.

Pandemia afetou a participação de alunos

Para a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, o Enem é um dos pilares do ciclo virtuoso da educação para redução das desigualdades e para o desenvolvimento do país.

“Com o surgimento do Enem, existem mais estudantes negros e de escolas públicas nas universidades. Isso é um grande avanço, em comparação a cerca de dez, doze anos atrás. Mas, costumo dizer que precisa de um ciclo virtuoso na educação: investir na formação dos docentes, em ciência e pesquisa, melhorar os salários, investir na educação básica, com o Fundeb sendo investido corretamente ”, afirma.

Com a pandemia, em 2021 o Enem registrou o menor número de inscritos desde 2007. Dessa queda no total absoluto de candidatos, houve também uma redução mais acentuada na participação de pretos, pardos e indígenas, em comparação com a última edição da prova, segundo o levantamento do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp).

“Tivemos dificuldade em conseguir a isenção da taxa para os estudantes ausentes da edição de 2020 do Enem. Na ocasião, entramos com uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) para reabrir inscrições pra esses estudantes e com possibilidade de isenção. Porém, apesar da ação ter sido vitoriosa nesse processo, é difícil resgatar aqueles estudantes que desistiram de participar. O MEC (Ministério da Educação) sequer fez campanha de reabertura de inscrição, somado a uma crise econômica e social que atravessamos”, conta Bruna.

Presidente da União Nacional dos Estudantes, Bruna Brelaz (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo ela, o atual governo não tem um projeto para a educação no país. “O Ministério da Educação tornou-se um órgão de aparelhamento ideológico do governo, e isto fica refletido na falta de investimento, na falta de condução na pandemia, na mensagem destoante sobre o Enem, na crise no INEP e nas respostas aos estudantes brasileiros”, afirma.

Em relação a perspectivas para as próximas edições, Bruna diz que será necessário continuar fiscalizando, sistematizando denúncias, com pressão nas ruas, redes e na Justiça para defender o Exame e o seu fortalecimento.

“O ENEM, para seguir sendo o principal meio de acesso à universidade, precisa estar integrado a um projeto. E isso, reitero, o governo Bolsonaro não tem”, pontua.

Interferência política e apagão na educação

A edição do Enem deste ano foi marcada por polêmicas que culminaram com a saída de 37 funcionários do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, responsável pelo processo), além de acusações de interferência ideológica do governo nas provas.

A presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, professora Dorinha (DEM-TO), afirmou que a crise no Inep é "gravíssima". Segundo a parlamentar federal, é preciso aprofundar mais os fatos que levaram aos pedidos de demissão dos servidores.

“É normal a saída de pessoas que não se identifiquem com a condução do órgão. Nossa maior preocupação foi a saída em massa, logicamente uma manifestação que indica uma relação à postura e a condução interna do órgão”, pondera.

Deputada professora Dorinha presidindo a comissão de educação, lado do Ministro da Educação, Milton Ribeiro (Foto: Divulgação)

Já a professora e também deputada federal Rosa Neide (PT-MT) protocolou, no Tribunal de Contas da União (TCU), representação para que a Corte adote medidas para avaliar a atuação do Ministério da Educação e do Inep referente às denúncias de interferência externa e quebra de sigilo da prova do Enem 2021. Ela ainda afirmou que 2021 é mais um ano de “apagão” na educação.

“Tivemos perda de 26% dos alunos durante os dois dias (de prova); o menor número de inscritos (3,1 milhões de alunos); é uma perda muito grande para a juventude brasileira, como se fosse um apagão na entrada da universidade em 2021. Já teve um apagão em 2020 e agora mais um apagão neste ano”, aponta a deputada.

Sobre a interferência de Jair Bolsonaro (PL) na escolha das questões da prova, Rosa Neide ressalta que a estrutura da prova não mudou, mas que as declarações do presidente — de que o Enem passou a ter a cara de seu governo — trouxe prejuízos aos estudantes . “O governo falou mais do que a necessidade. As falas de Bolsonaro provocaram uma insegurança dos estudantes”, sugere.

Já o deputado federal professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Educação, o Enem se transformou na principal porta de acesso dos jovens para o Ensino Superior.

“Muito me preocupam crises que possam interferir na aplicação do Enem, como temos vivenciado atualmente no Inep, responsável pelo programa da elaboração da prova à divulgação dos resultados finais. Em pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas, mais de 90% dos servidores do Inep relataram interferências do governo e se sentem constantemente ameaçados e esgotados emocionalmente”, explica.

Segundo ele, é um retrocesso muito grande o diagnóstico de este ano tivemos o Enem mais branco e elitista em mais de uma década, o que rompe toda a trajetória de inclusão de estudantes em situação de vulnerabilidade, sobretudo pobres e negros.

“Para ter uma noção melhor do tamanho do retrocesso, em números absolutos, a prova chegou a ter mais de 1,1 milhão de inscritos pretos em 2016. Em 2021, eles foram apenas 362,3 mil”, sinaliza.

Exame foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo

A primeira edição do Enem contou com 115.575 participantes. A nota só podia ser usada em duas instituições de educação superior. No primeiro momento, a prova serviu mais como uma espécie de auto-avaliação do aluno.

A partir de 2000, a nota do Enem passa a ser usada como complemento das notas dos vestibulares. Como a avaliação no exame era somada ao desempenho no vestibular, a nota final do estudante tinha um aumento.

Em 2001, apesar de não ter sido alterada a estrutura do Enem, o governo implantou uma mudança no exame — concedendo isenção da taxa de inscrição aos estudantes da rede pública. Um reflexo dessa mudança foi o aumento no número de inscritos, que subiu de 390 mil participantes no ano 2000 para mais de 1,6 milhão em 2001. Um crescimento de mais de 400% de um ano para o outro.

Em 2009, com a criação do Sisu, o Enem muda para o formato usado até hoje (180 questões e uma redação), com objetivo de substituir o vestibular das universidades federais. Mas a edição acaba sendo marcada pelo vazamento da prova — que precisou ser cancelada e remarcada para dois meses depois do previsto.

No ano seguinte (2010), os resultados do Enem passam a ser adotados pelo Fies. Além disso, nesse ano o Inep começou a coletar dados sobre deficiência ou condição especial dos inscritos.

A partir de 2015, visto que as notas do Enem passaram a ter uma nova função, o Fies passa a exigir uma média mínima de 450 pontos no Exame e nota acima de zero na redação, em edições a partir de 2010.

No ano em que completou duas décadas de existência, novas modificações no Enem foram anunciadas. Uma delas envolveu o processo de isenção da taxa, que passou a ser anterior ao prazo de inscrição. Além dos pedidos de isenção, os candidatos isentos e ausentes na edição anterior tiveram que justificar a falta para solicitar novo benefício.

Outra novidade do Enem 2018 é em relação ao tempo de prova do segundo dia. A partir desta edição, os participantes passaram 30 minutos a mais para responder às questões de Ciências da Natureza e Matemática e suas Tecnologias, passando de quatro horas e meia para cinco horas.

No ano passado, ocorreu a primeira edição da modalidade digital da prova. O exame-piloto teve 96 mil candidatos inscritos, mas a abstenção chegou a 68%. O MEC prevê que a aplicação do Enem se torne 100% digital até 2026.

Total de inscritos nas últimas edições do Enem

O Enem de 2021 registrou queda acentuada no número de participantes. Na edição de 2020, eram aproximadamente 2,7 milhões de estudantes pardos — neste ano, foram 1,3 milhão (redução de 51,7%). A queda também ficou acima de 50% entre pretos (53,1%) e indígenas (54,8%). Por outro lado, considerando os candidatos brancos, a diminuição foi mais sutil: de 35,8%.

O levantamento também analisa a porcentagens de candidatos inscritos a cada ano, por raça. Em 2020, 63,2% dos estudantes eram pretos, pardos, indigentes ou indígenas. Neste ano, eles representam uma fatia menor do total: 56,4%. Os brancos, por outro lado, passaram a ter maior representatividade: saltaram de 34,7% em 2020 para 41,5% em 2021.

A classificação é feita com base na autodeclaração opcional dos alunos, no momento da inscrição.

De acordo com a Semesp, a queda representa um retrocesso em relação à inclusão e à diversidade de alunos na educação superior, já que o Enem é a maior porta de entrada para a universidade pública no país.

Uma das razões para a queda de inscritos foi a decisão do ministro da Educação, Milton Ribeiro, de não isentar os jovens da taxa de R$ 85 de quem faltou a prova em 2020 por causa da pandemia do novo coronavírus.

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