Existe amor embaixo do viaduto
Entre um corte de cabelo e outro, conheça as histórias de superação e de vidas marcadas pela solidariedade
Passava das nove da manhã. Era um frio domingo de agosto, e a fila já se formava embaixo do viaduto Tiradentes, na capital gaúcha. O primeiro passo era pegar o café da manhã — pão com queijo e mortadela e café preto — doado por um ex-morador em situação de rua que prefere ficar no anonimato. Após cada membro da fila ter feito o desjejum, chega a hora de uma nova linha ser formada — desta vez, para os cortes de cabelo.
Muitas pessoas passam pelo local. Algumas param só por curiosidade, outras para parabenizar o grupo que oferece os serviços ou para trazer doações. O projeto voluntário Barbeiros na Rua, que existe há quase dois anos, surgiu da vontade de ampliar o direito à autoestima para todas as pessoas. Antes do início dos cortes de cabelos, os voluntários servem um café da manhã, que é sempre doado. E durante toda a manhã de trabalho, são distribuídas roupas, cobertores e kits de higiene pessoal.
Um dos primeiros a chegar é Marco Antônio, mas no dia em que a Beta Redação acompanhou a ação voluntária, ele não veio para o corte, mas sim para agradecer. “Consegui o emprego porque eu cortei o cabelo aqui!”, ele conta sorridente. Marco lembra que estava há mais de quatro anos desempregado, e que fazia alguns “bicos” para sobreviver. Morador do bairro Restinga, na zona sul de Porto Alegre, recorda ainda que recebeu ajuda de vizinhos para que pudesse comprar passagens de ônibus enquanto esteve entregando currículos. Hoje, além de agradecer por ter conseguido trabalho, comenta o quanto o apoio fez diferença em sua vida. “Assim que eu estiver estabilizado, quero poder ajudar o próximo assim como fui ajudado”, planeja.
Segundo a psicóloga Marina Pozzer o conceito de autoestima significa, para além de ter estima por si mesmo, sentir-se motivado a cuidar de si. “Ao falarmos de pessoas em situação de vulnerabilidade, se torna imprescindível valorizar a autoimagem, que provavelmente já está prejudicada pela situação social em que a pessoa se encontra. Ter a oportunidade de receber o olhar do outro, o cuidado e a preocupação de outras pessoas, certamente interfere na autoestima dessas pessoas, e pode levá-las a se perceberem de uma maneira mais positiva”, explica.
A situação explicada por Marina é sentida na pele por Juliano Batista, de 41 anos, já conhecido de toda a equipe de voluntários da Barbeiros na Rua. Naquele domingo, ele também trouxe boas notícias para os participantes do projeto: começaria a trabalhar na segunda-feira, na montagem dos piquetes para a semana Farroupilha. “Pode fazer qualquer corte”, ele dizia enquanto segurava duas camisetas que ganhou para trabalhar. Juliano é morador do bairro Humaitá, zona norte de Porto Alegre e pai de duas meninas, de três e oito anos.
Os cortes não param e a fila continua se movendo, desta vez, para a escolha de até três peças de roupas disponíveis para doação. “A gente tem que estipular um limite de peças. Infelizmente muitos se perderam no vício e podem acabar trocando as roupas por drogas”, conta a voluntária Iara Marchiori, de 71 anos.
Aos sábados e domingos, os voluntários trabalham embaixo de viadutos de Porto Alegre. Durante a semana, a cabeleireira e idealizadora do projeto, Karina Valandro, visita hospitais, clínicas psiquiátricas, albergues e asilos. Nessas ações, ela corta cabelos e faz a manicure de quem precisa. “Sempre fui voluntária de outras áreas, até que descobri que poderia fazer algo com meu trabalho. Quando o projeto surgiu, fomos convidados a estar nos viadutos e deles nunca mais saímos”, conta ela.
Para a realização das ações, cada voluntário leva o seu material, mas as doações possibilitam manter um estoque de itens, além de roupas e alimentos servidos no café da manhã. Os produtos de higiene que são distribuídos para os beneficiados são comprados pelos próprios voluntários. Além de Karina, profissionais de outras áreas aproveitam o tempo livre do final de semana para ajudar.
Esse é o caso da advogada Paula Fernanda Alves Souto, que conheceu o projeto através de uma tia que já era voluntária. Ela começou realizando doações e hoje também faz cortes de cabelo. “Eu atendo mais aqueles que querem passar a máquina, porque ainda estou aprendendo”, conta. Como advogada, Paula também fala sobre a importância da imagem para as pessoas que desejam se inserir novamente no mercado de trabalho. “A aparência conta muito dentro do mercado competitivo da busca por emprego”, afirma.
Enquanto Paula explica que trabalha de segunda a sábado com menores da FASE, e aos domingos, ajuda quem necessita, a fila para os cortes de cabelo não para de crescer. “É muito gratificante. Faz bem para o coração”, comenta a voluntária.
Para conhecer mais o projeto e ajudar também, confere a página no Facebook: Barbeiros na Rua.