“Se todo empresário colocar com clareza para os pais como funciona o futebol, eu tenho certeza que nem metade vai seguir na profissão”, declara Rogério Oliveira, agenciador de futebol. (Foto: Reprodução/Unsplash)

Fantasia F.C.: a desilusão no futebol da garotada

Pesquisadores e análise de dados revelam a realidade do estudante-atleta dentro e fora do Brasil

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Ser jogador profissional de futebol é um sonho que marca golaço na cabeça de milhares de jovens pelo mundo. Viver do esporte, jogar nos melhores clubes, ganhar dinheiro e fama e ver a torcida vibrando na hora do gol são imaginários que rondam a mente desses adolescentes. A ideia, por si só, é carregada de fascinação, e pode justificar a busca incessante por uma carreira dentro e fora do país.

Antônio Soares é professor doutor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador CNPq de temas como educação corporal, jovens atletas e contextos de escolarização. Ele resume a situação dos adolescentes que tentam a sorte no futebol do exterior da seguinte forma: “Esse é um mercado. O problema é que você cria uma possibilidade de vulnerabilidade, como o tráfico de pessoas e prostituição. Agora, em alguma medida, também pode ser uma janela de oportunidades, se for bem regulado. Não há dados porque não há controle disso, a não ser que seja intermediado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol)”, explica.

O problema dos dados, mencionado pelo professor, envolve a falta de registro por parte dos órgãos competentes, assim como brechas deixadas pela própria legislação brasileira. Pela lei da Fifa, chamada “Regulamento da FIFA sobre o Status e a Transferência de Jogadores”, são permitidas transferências de menores de idade em três casos específicos:

Artigo 19º — Proteção de Menores
a) os pais do jogador passam a residir, por razões não relacionadas com o futebol, no país do novo clube;

b) ou a transferência tem lugar dentro do território da União Européia (UE) ou do Espaço Econômico Europeu (EEE), e o jogador tem entre 16 e 18 anos;

c) ou o jogador reside a uma distância não superior a 50 quilômetros da fronteira nacional, e o clube em que o jogador se pretende inscrever na Federação vizinha também se situa a menos de 50 quilômetros da fronteira. A distância máxima entre o domicílio do jogador e o clube é de 100 quilômetros.

Sendo os dois últimos tópicos inviáveis para a realidade do país, as famílias brasileiras, quando dentro da legalidade, mantêm-se no primeiro caso, e, em situações de transferência, passam a viver em outro país e a auxiliar o jogador menor de idade no processo de adaptação ao novo clube, língua e cultura. Contudo, se os responsáveis estiverem motivados unicamente pelo futebol, estarão infringindo a lei. Quando nenhuma das opções é adotada, a CBF perde o controle sobre o registro, dificultando a obtenção de dados sobre quantas crianças jogam futebol fora do país.

Uma fonte extraoficial do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul comenta que uma das estratégias mais comuns para driblar a legislação é a contratação fictícia de um familiar por um patrocinador do clube, permitindo que a família passe a viver no exterior e receba o salário destinado ao filho, mesmo a lei impedindo que tal valor seja pago.

Em 2012, a Confederação Brasileira criou, via Lei Pelé (9.615/98), o Certificado de Clube Formador. Trata-se de um selo que atesta, via documentação, a qualidade da manutenção de categorias de base dos clubes brasileiros, o que oferece mais confiança no momento de escolha do clube pela família.

A reportagem da Beta Redação entrou em contato três vezes com a CBF solicitando dados sobre jogadores menores que vivem fora do país, mas até a publicação do texto, não obteve resposta.

No áudio a seguir, os pesquisadores Hugo Rocha (professor no Instituto Federal Colégio Pedro II) e Daniel Machado (doutorando da Universidade Federal de Santa Catarina) analisam a situação do menor que tenta carreira fora do país:

Entrevista com professores Hugo Rocha e Daniel Machado. Tempo de duração: 4min38s. (Beta Redação/Soundcloud)

Responsabilidades do Estado

Mesmo existindo regulamentações por parte da CBF e da Fifa, casos envolvendo transações ilegais, assim como tráfico de jogadores, não são incomuns. Um caso recente foi do menino Manu, no Rio Grande do Sul. Casos de abuso sexual também foram relatados pelos veículo de comunicação Vice, e o jornal El País tem publicações acerca dos embates políticos sobre mudanças na legislação vigente.

É dever do Estado, assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), proteger menores de idade de qualquer forma de abuso ou irregularidade. A reportagem entrou em contato com o Itamaraty e com a Coordenadoria Nacional de Erradicação e Combate ao Trabalho Escravo (Conaete).

De acordo com Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, representante do Paraná no Conaete, não há controle sobre os atletas que estão fora do país. “A CBF tem todos os números relativos a transferências oficiais. Porém, transferências oficiais são aquelas feitas clube a clube. Caso o atleta não tenha passagem por um clube brasileiro (que tenha certificado de clube formador) e for para o exterior, aí desconheço que a CBF tenha acesso aos números”, releva.

A lei Pelé e o Estatuto da Criança e do Adolescente são as principais leis de proteção ao jovem estudante-jogador. (Foto: Reprodução/Unsplash)

Cristiane levanta outros problemas decorrentes da falta de controle sobre a saída de brasileiros do país em busca de uma oportunidade no futebol. “Os adolescentes podem viajar como turistas ou estudantes e podem tramitar um visto a posteriori. Pelo que tenho conhecimento, esses dados não são “tabulados” nem pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), nem pela Polícia Federal. Se estes órgãos não efetuam o controle, o Ministério Público do Trabalho (MPT) não tem como controlar, pois não somos órgão do poder executivo”, explica.

Ela também comenta sobre a dificuldade processual no momento de autuar um culpado pela ilegalidade. “Seria possível processar um traficante de pessoas por explorar o trabalho desportivo de um atleta, mas na prática, o traficante entrega o atleta para um clube e é este clube que o “explora”. Então, não há processo trabalhista contra agenciadores ou familiares. Quando o “explorador” é a família, a competência se desloca para o Ministério Público Estadual, já que aí a questão é sobre abuso no exercício do poder familiar e as consequências estariam relacionadas ao direito de família”, esclarece.

O Itamaraty informa que a Divisão de Assistência Consular (DAC) é a unidade responsável do MRE para supervisionar e orientar o trabalho da rede de Consulados e Embaixadas brasileiras no exterior. Segundo o órgão do Governo Federal, a presença de atletas no exterior pode resultar em situações que exigem algum tipo de assistência e proteção, normalmente em virtude de descumprimento de contratos.

Outro caso recente de latinos vítimas de tráfico no esporte ocorreu em 2019, quando o governo de Portugal devolveu ao Brasil 20 dos 21 jogadores envolvidos e prendeu dois agenciadores do processo. A procuradora Cristiane lembra que, na época, o MPT pediu mais informações à polícia federal, mas o trâmite era burocrático e o então ministro Sérgio Moro entendeu que não havia evidências de tráfico de pessoas no caso e não deferiu o pleito. Ela também informa que o objetivo do MPT com o caso era efetuar um levantamento e tentar descobrir provas para iniciar investigações contra os traficantes.

Fragilidades da Lei Pelé

A divisão de base dos clubes que recebem menores de idade, dentro do esporte, segue a seguinte formatação, no Brasil, segundo pesquisa de 2014 da UNICEF, intitulada “A infância entra em campo”: fraldinha (7 a 9 anos); dente de leite (10 a 11 anos); pré-mirim (11 a 12 anos); mirim (12 a 13 anos); infantil (14 a 15 anos); infanto-juvenil (15 a 16 anos); juvenil (17 a 18 anos) e júnior (17 a 20 anos). O estudo, contudo, reforça que não existe uma padronização entre os clubes.

O sistema de contratos de trabalho e profissionalização no Brasil são baseados nas leis Pelé (9.615/98) e Lei da Aprendizagem (10.097/00), além das normativas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Convenção dos Direitos da Criança (CDC). A CBF exemplifica questões contratuais da seguinte forma:

Gráfico da CBF sobre contratação de adolescentes de acordo com a idade. (Foto: Reprodução/CBF)

No áudio a seguir, Hugo Rocha, Antônio Soares e Daniel Machado analisam as fragilidades da Lei Pelé:

Entrevista com professores Hugo Rocha, Antônio Soares e Daniel Machado. Tempo de duração: 3min59s. (Beta Redação/Soundcloud)

Um sonho em números

Em dezembro de 2019, a CBF publicou a pesquisa “Impacto do Futebol Brasileiro”. O esporte impactou o Produto Interno Bruto do país em 0,72%, e sozinho, movimentou, em sua totalidade, quase 53 bilhões de reais. Em 2018, havia um total de 360 mil atletas registrados no país — e é aqui, depois de calçar a chuteira e pisar no campo, que a realidade entra em conflito com o desejo pela vida fascinante do futebol. E a matemática não é favorável ao sonho.

O que significam 360 mil atletas? A imagem abaixo explicita:

Gráfico da CBF mostra, em números, a realidade dos jogadores de futebol brasileiros em 2018. (Foto: Reprodução/CBF)

Em 2018, o valor total somado dos salários de todos os atletas profissionais gerou a cifra de R$ 1 bilhão de reais. Essa divisão salarial se deu da seguinte forma: 55% dos atletas profissionais receberam até um salário mínimo; 33% de 1 a 5 mil reais; 5% de 5 a 10 mil reais; e apenas 13 atletas (menos de 1%) ganharam mais de 500 mil reais. Outra especificidade está na geografia do dado: 64% do total dos salários dos atletas concentra-se no Sudeste do país. O Brasil também possui disparidade na questão gênero, registrando 12.804 mulheres atletas, em comparação aos 360.291 homens.

“O futebol é um mercado que rende muito dinheiro para poucos, mas rende, e é um mercado que mexe com sonho, com desejo”, — Hugo Rocha.

O site Universidade do futebol fez, em 2019, um levantamento de dados sobre futebol e contabilizou estimativas que aprofundam os números já expostos pela CBF. Segundo o veículo, que atuou em conjunto com a Indústria de Base (outro veículo de imprensa), existem no Brasil os seguintes dígitos:

40 mil jogadores de base;
35 mil em clubes sem CCF (Certificado de Clube Formador);
10 mil alojados;
13 mil perambulantes;

Os números oferecem uma perspectiva de quantos menores de idade atuavam no país há um ano. Todos eles disputam, com nomes já consagrados no mercado do futebol, um total de 2.7 mil vagas, tanto no Brasil quanto no exterior. Ainda segundo pesquisa da CBF apresentada anteriormente, 37% dos atletas profissionais entre 17 e 20 anos não possuíam contratos ativos com clubes em 2018;

No áudio a seguir, os pesquisadores Hugo Rocha e Daniel Machado falam sobre o adolescente, a família e o agenciador como fomentadores do sonho de ser jogador de futebol no Brasil:

Entrevista com professores Hugo Rocha e Daniel Machado. Tempo de duração: 5min25s. (Beta Redação/Soundcloud)

O pesquisador Antônio Soares também comenta sobre o futebol como um projeto de nação:

Entrevista com professores Hugo Rocha e Daniel Machado. Tempo de duração: 3min28s. (Beta Redação/Soundcloud)

O papel de um agenciador

Rogério Oliveira é agenciador e atua há mais de 10 anos na área. Ele faz parte de um grupo seleto de profissionais cujo objetivo é empresariar um atleta, neste caso um jogador de futebol, auxiliando com as necessidades burocráticas, legais, geográficas e até financeiras, quando tentam carreira fora do país. Ele reforça que o agenciador pode ser olheiro, mas que o segundo tem foco em encontrar meninos com possibilidade de carreira promissora. “É quem tem olho bom para ver quem joga bem”, explica.

Segundo Rogério, não existe nenhum tipo de preparação ou curso específico para se tornar um agenciador (ele também usa os termos agente e empresário para referir-se a si mesmo). Ele comenta que é comum o agenciador ter um histórico com o futebol. No caso dele, foi apresentado ao esporte através do pai, Nei Oliveira, cabeleireiro aposentado e coordenador do Trianon — um time conhecido de Porto Alegre que se reunia poucas vezes ao ano para jogar. Craques do esporte frequentaram eventos do time, como Ronaldinho Gaúcho, Zico e Ronaldo Fenômeno. Em 2008, o Trianon teve fim.

No Brasil, ser agenciador requer uma documentação específica. Se o profissional optar por ser regulamentado, ele deve ser sócio da CBF e também pode ser agente Fifa. Desse modo, ele se cadastra e inscreve os jogadores que agencia, atualizando as informações anualmente junto aos órgãos competentes. Contudo, segundo Rogério, o agenciador pode optar por não se regularizar, permanecendo limitado a intermediar negociações, encontrar jogadores e fazer indicações aos clubes e ganhando comissão pelo ato. Rogério afirma ser regularizado.

O agenciador também analisa o futebol brasileiro, observando que o país tem boa fama no exterior, mas que nos últimos anos sofreu um abalo. Ele considera que a alta presença de brasileiros no exterior, somado à baixa porcentagem de sucesso na carreira, tenha influenciado tal percepção. “O Brasil é um celeiro de jogadores muito bons”, afirma.

Ter conexões também é algo fundamental. Segundo o próprio agenciador, elas aumentam as chances de sucesso no momento de assinatura de contratos. Rogério tem conexões em cidades como Miami e São Francisco (ambas localizadas nos Estados Unidos), e em países como Polônia, Emirados Árabes, Irlanda, Portugal e Eslovênia, intermediando transações entre clubes e jogadores brasileiros.

Sobre a vontade de ser jogador de futebol, sonho de muitos adolescentes, Rogério é objetivo. “Eu tenho bastante cuidado com isso. Faço questão de chamá-lo (adolescente) junto da família para conversar. A profissão do futebol é muito difícil. Não é aquele sonho que o menino tem de jogar bola com os amigos, de ser um Ronaldinho e ficar rico. O jogador tem que sair cedo de casa, a porcentagem de profissionais que dão certo é pequena e ele só tem 15 anos para fazer carreira e perde um pedaço da juventude. Eu coloco isso nessa reunião para ele ter certeza se quer, ou não, encarar. Não é pessimismo, é realismo. E deixo claro que não é sonho, é profissão. Eu não ajudo jogador, eu trabalho para jogador. A gente faz um contrato, assina, e é uma troca de trabalho. Eu presto um atendimento e ele faz a parte dele, que é jogar futebol. Essa ideia de sonho, de ajudar menino, é muito folclore. Se todo empresário colocar com clareza para os pais como funciona o futebol, eu tenho certeza que nem metade vai seguir na profissão”, desabafa.

Caso o negócio entre jogadores e clube for fechado, Rogério ganha 10% dos rendimentos do atleta.

Documentos úteis

A apuração da reportagem identificou uma série de documentos que oferecem dados e informações sobre o mundo do futebol e suas especificidades, todas voltadas à infância e adolescência, além de manuais que oferecem dicas sobre trabalho em nível internacional e acesso às legislações vigentes que protegem o adolescente contra possíveis violações.

Órgãos como o Ministério Público da União; Ministério das Relações Exteriores; Unicef e Cedeca; e CBF disponibilizam, online, tais informações.

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Natan Cauduro
Redação Beta

Jornalista e estudante de Relações Internacionais.