“Foi o projeto da minha vida”, diz Mirian Fichtner sobre filme Cavalo de Santo

No documentário, a fotojornalista gaúcha retrata em detalhes ritos e práticas das religiões afro presentes no Rio Grande do Sul

Tainara Pietrobelli
Redação Beta
15 min readJun 8, 2021

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Em meio à práticas de violência e racismo religioso, as religiões de matrizes africanas vem resistindo no Brasil. A intolerância não permite que a cultura e os rituais dessas crenças sejam melhor reconhecidos. Por isso, a jornalista Mirian Fichtner, gaúcha, de Porto Alegre, vem dedicando a sua vida a dar voz a essas religiões que fazem parte das raízes do país.

Formada pela PUC/RS, Mirian trabalhou nos principais jornais e revistas do Brasil, entre eles: jornal Zero Hora , O Globo, O Dia, Jornal do Brasil e revistas Isto É, Veja e Época. Ganhou mais de 13 prêmios nacionais e internacionais. É autora dos livros: Cavalo de Santo — Religiões afro-gaúchas (2011), “A vida que corre nos ônibus” (2011) e Rio — um olhar viajante (2015).

Neste ano, a jornalista estreia seu primeiro trabalho na direção de um documentário. Com o mesmo nome do livro lançado em 2011, Cavalo de Santo traz detalhes e registros sobre as religiões afro no Rio Grande do Sul, um projeto que já existe a longa data. Umbanda, Quimbanda e Batuque foram os temas centrais do longa.

O filme é resultado de vários anos de pesquisa e visitas aos terreiros e casas de religião, e motivo de vários enfrentamentos ao preconceito, presente desde o início do projeto, quando o objetivo era conseguir patrocínio para o lançamento.

Mirian Fichtner já trabalhou nos principais jornais e revistas do país. (Foto: Roberto Witter)

Suas fotos já foram expostas em espaços nacionais e internacionais, e muitos trabalhos fazem parte do Portfólio sobre Religiosidade na América Latina, organizado pelo Conselho Nacional de Cultura da Venezuela/1999. Recentemente, a Revista ZUM, do Instituto Moreira Salles (IMS), selecionou o livro Cavalo de Santo entre os dez fotolivros mais relevantes sobre a cultura afro-brasileira.

Apesar de um período conturbado, foi durante a pandemia que, através da lei Aldir Blanc, Mirian conseguiu verbas para fazer o fechamento do longa, e agora espera o momento para lançar o trabalho, que foi gravado com todas as tecnologias necessárias para ser exibido no cinema.

Nesta entrevista à Beta Redação, realizada por ligação telefônica, Mirian conta sua trajetória e relata como foi a construção do filme Cavalo de Santo.

De onde surgiu a vontade de estudar Jornalismo? Por que, e de que forma as suas intenções profissionais migraram para a fotografia?

Antes de fazer jornalismo eu pensava em fazer antropologia. O jornalismo acabou me seduzindo por ter essa questão de te permitir estar sempre em movimento, sempre em contato com vários assuntos, e disso, eu sempre gostei. Foi assim que comecei a pensar no jornalismo. Aí eu fiz o vestibular, e mesmo decidida a fazer antropologia, na hora eu me inscrevi no Jornalismo. Passei, comecei o curso e acabei me apaixonando.

Sobre a fotografia, acho que foi por minhas características pessoais. Eu me identificava com a linguagem da fotografia. Nunca gostei de falar, tenho uma certa timidez. A fotografia foi o espaço onde eu me senti mais confortável e onde eu consegui encontrar minha forma de expressão.

Dentro do jornalismo eu experimentei tudo, mas foi na fotografia que eu consegui me comunicar, me senti mais confortável. Esse processo de definir a trajetória foi durante a faculdade, lá eu já comecei a fazer alguns trabalhos fotográficos. Quando eu estava me formando surgiu uma oportunidade de estagiar em TV. Eu passei no estágio, mas não fiz, pois vi que não era minha praia. Eu mais sofri do que vibrei por ter passado. E desde então eu fui indo para a fotografia. Durante a faculdade eu sempre andava com a câmera pra lá e pra cá, fazíamos jornal da faculdade e eu comecei a fotografar os movimentos estudantis.

O jornalismo foi sempre uma descoberta, e quanto mais eu me envolvia, mais eu me apaixonava pela fotografia. E dentro disso eu sempre tive naturalidade com a questão da história e antropologia. Eu estava sempre pensando nessas questões ao contar uma história através das imagens.

Como foram as suas primeiras experiências profissionais após se formar?

Um pouco antes de me formar eu já comecei a trabalhar com fotografia. Depois de formada eu fui trabalhar na Zero Hora, que foi meu primeiro trabalho institucional com carteira assinada, e sempre com a fotografia. Quase não tínhamos cadeiras de foto na faculdade, então eu aprendi trabalhando. Me lembro que nos primeiros anos eu tinha uma certa dificuldade de entender várias coisas, e aí eu fui me formando fotógrafa.

Eu tive muita sorte e também muita dedicação, porque comecei a trabalhar cedo. Minha experiência em Porto Alegre foi pouco mais de um ano e logo fui para São Paulo.

Eu fiz minha vida profissional no Rio de Janeiro e em São Paulo. Saindo de Porto Alegre eu fui morar em São Paulo e trabalhei em um jornal alternativo chamado Retrato do Brasil, feito por grandes jornalistas, pessoas que na década de 70 fizeram jornais alternativos muito importantes. Então eu fui pra lá e comecei a trabalhar nesse projeto. De lá fui para o Rio de Janeiro e trabalhei no jornal O Globo, que foi meu primeiro trabalho nacional de carteira assinada em um grande veículo. Depois disso eu não parei mais, e o jornalismo é uma profissão muito envolvente.

Eu tive muita sorte em poder trabalhar com grandes jornalistas, como a Eliane Brum, e trabalhei em praticamente todos os grandes jornais do Brasil. No jornal O Globo, Jornal do Brasil, Revista de Domingo e aí fui pro jornal O Dia, que era local do Rio de Janeiro, mas principal concorrente do O Globo.

Eu trabalhei na imprensa em quase todos os veículos nacionais, e depois da fase dos jornais eu me especializei em revistas. Trabalhei na Isto é, do Rio de Janeiro, e aí surgiu a revista Época. Isso foi em 1998, e eu fui chamada para formar a equipe. Foi um momento muito especial porque era um projeto novo, a gente viajava o Brasil, o mundo inteiro. O que sempre me fascinou foi contar histórias e viajar, conhecendo lugares e pessoas, entrando e saindo de vários ambientes. Muitas vezes, em um dia eu fazia matéria em um lixão e no mesmo dia eu ia fotografar o presidente chegando no RJ. Na imprensa sempre se trabalhou muito, mas era algo muito prazeroso.

Qual foi o principal gatilho que te motivou a iniciar projetos ligados a Umbanda e outras religiões afro?

Em 2005 eu comecei a ter problemas, porque quando eu entrei na revista eram mais de 20 fotógrafos no Brasil inteiro e quando eu saí eram só quatro — e eu era uma das quatro. Eu editava a revista Época, pautava os freelas, editava os freelas, fotografava e ficava com as matérias das capas. Então comecei a ficar enlouquecida porque não tinha mais tempo de vida, era um momento em que a quantidade de matérias que se produzia era mais importante do que a qualidade.

Chegou em um momento que eu disse: “não quero mais isso pra minha vida!’’. Eu ganhava muito bem, hoje nem isso se ganha. Então eu decidi que queria fazer algo que me desse prazer, porque nesse período nós paramos de viajar porque começou uma repressão, a chegada da internet abalando as redações, foi uma sacudida, e eu decidi que não queria mais aquilo. Eu cheguei a pegar o tempo em que a gente podia fazer uma grande matéria e ficar um mês fora da redação, em pauta, e hoje é inviável. Hoje não existe isso mais, parece conto de vários anos atrás e não faz tanto tempo para ter mudado desta forma.

A minha escola sempre foi muito baseada na revista O Cruzeiro, nas grandes reportagens. Quando eu vi isso diminuindo drasticamente, e eu tendo que fazer matérias em 2 ou três dia, que antes eu fazia em 15, isso me gerou muita insatisfação, muito desgaste. Eu decidi me dedicar a um projeto que eu pudesse conhecer em profundidade, estabelecer uma outra programação. Eu me sentia mal de entrar e sair da vida das pessoas de forma muito rápida, sem conseguir mais ter uma troca. Aí saí da revista, pedi demissão. Eu estava catando um assunto que me motivasse, então eu descubro que o Rio Grande do Sul, por dados do IBGE, era o estado com maior número de adeptos das religiões de matriz africana. Aí eu pensei: “Opa, aí tem uma matéria interessante”.

Você já havia tido contato com as religiões de terreiro antes do projeto, ou na infância?

Eu conhecia muito pouco, mas tinha uma memória afetiva muito legal, porque a minha mãe preta, que era uma senhora que foi trabalhar na minha casa, era de religião, e eu ainda criança me dava muito bem com ela. Ela era muito envolvida com a religião, éramos muito próximas, ela me contava das coisas de religião e eu sempre tive muita curiosidade, então é uma memória afetiva.

Mas aqui no Rio Grande do Sul, como eu saí, eu só descobri essa lembrança no Rio de Janeiro, porque no jornal O Globo era uma tradição a gente cobrir a virada do ano, e em todas as viradas de ano era muito comum, na década de 90, as pessoas levarem flores pra Iemanjá.

Eu muito fotografei terreiros fazendo suas oferendas na beira da praia, e aquilo sempre me instigou e me fascinou. Eu fiz muitas matérias no Rio sobre algumas Ialorixás, visitei terreiros. Primeiro, muito influenciada pela Bahia, por como os terreiros e a cultura dos Orixás eram apresentados, sempre foi algo muito rico da identidade brasileira. Mas eu não tinha muito conhecimento, eu tinha fascínio.

Quando eu descubro o RS era um estado que proporcionalmente tinha muitos terreiros, eu pensei: “Como assim?”. A gente aqui não via muito disso, não havia presença. O bairro onde eu nasci era muito forte de terreiros, e eu não sabia, fui descobrir só depois.

Imagens da festa de Oxum, captadas no bairro Ipanema, zona sul de Porto Alegre (Foto: Mirian Fichtner)

Como foi a construção do livro e do filme Cavalo de Santo?

Foi uma coisa intuitiva. Eu queria descobrir um assunto que me despertasse interesse, que me motivasse a fotografar, aí eu me deparo com essa nota no jornal, vejo que era algo desconhecido mesmo no Sul, ninguém falava. Então eu começo a trabalhar esse assunto, eu e meu companheiro Carlos Caramez, que também é jornalista e que também dirigiu comigo. Peguei todo o meu fundo de garantia de anos de trabalho para investir no projeto.

Fazer cinema é um sacrifício maior do que o jornalismo, porque no cinema tudo é muito demorado. Eu amo fazer reportagem, o jornalismo é uma profissão maravilhosa porque te dá uma experiência de vida, de conhecimento, mesmo que não seja aprofundado. Dá uma bagagem, mas também desgasta muito e hoje o jornalismo está demonizado. Eu gostava muito de contar histórias e não podia mais fazer isso.

Minhas melhores matérias foram em lugares de profundas tristezas porque era aquela coisa de dar voz a quem precisa. Então, primeiro investimos com o fundo de garantia até estruturar o projeto, definir o que queríamos mostrar, conhecer as casas, conhecer quem eram os personagens relevantes… Aí pensamos “como que a gente vai conseguir viabilizar esse projeto?”

Passamos dois anos bancando tudo, na verdade, levou quatro anos até a materializarmos tudo, porque fomos descobrindo que tinha muito preconceito e uma invisibilidade muito grande. Foi o projeto da minha vida começar a trabalhar esse assunto. Eu não vim para o Sul e fiquei, eu vim para o Sul pela ponte aérea. Dava um tempo, fotografava e voltava para o Rio. Lá eu continuei trabalhando, porque eu migrei pros relatórios anuais e trabalhos institucionais .

Religiões afro, em “Cavalo de santo”: Pai Cleon de Oxalá e os orixás (Foto: Mirian Fichtner)

O jornalismo e a fotografia me viabilizaram. Está tudo muito ligado, mas no fundo a gente escolhe esse caminho, não é um caminho para ficar rico e ganhar dinheiro. Escolher ser jornalista e fotógrafa que prioriza assuntos culturais e sociais é uma militância hoje em dia. O nosso livro esgotou logo depois do lançamento. Ele era clássico, capa dura, grande, melhor papel e foi um sucesso. Quando o livro acabou, tentamos imprimir uma segunda edição, só que naquela época só a tiragem do livro, pagando os profissionais envolvidos e a gráfica era mais de 100 mil reais. Ficou inviável fazer uma segunda edição.

O que te motivou a dirigir o filme Cavalo de Santo?

O filme surge muito nessa perspectiva de aprofundar todas as questões do livro, e também pelo compromisso que tivemos. Era a forma que tínhamos de retribuir a todo o povo de religião que nos impulsionou e que se viu representado pelo nosso trabalho. Percebemos que era necessário dar voz a esses personagens para que eles dessem voz à religião.

Era nossa vontade mostrar o somatório de todas essas questões que já falávamos. A cultura que baseia a religião afro é muito bonita, faz entender o papel de cada cidadão dentro da sociedade. A cada entrevista ganhamos uma nova consciência, assistimos muitos rituais e a cada um nos sentíamos mais fortalecidos.

Sempre foi uma descoberta e essa é a essência do jornalismo, estar sempre descobrindo alguma coisa. Fomos construindo o trabalho desta forma, que não se faz sozinho. É preciso construir uma rede, ter pessoas que ajudem a materializar, porque é muito difícil fazer tudo. Eu sempre pude contar com esse apoio, essa divisão. Meu companheiro foi muito importante, porque ele é jornalista, mas sempre trabalhou com produção cultural. Ele foi um pilar fundamental, porque estar sozinha e sem perspectiva é muito difícil. Um trabalho desses não é só lindo, mas cheio de história por trás, uma história de vida.

Carlos Caramez é jornalista com várias experiências em produção cultural, e esteve na direção do longa com Mirian (Foto: Making of Cavalo de Santo)

O preconceito interferiu no projeto? De que forma isso aconteceu?

Tentamos conseguir apoio com mais de dez empresas que apoiavam a cultura no Estado. Ninguém dizia não, todos elogiavam, mas chegava na hora e adiavam as reuniões, depois nunca mais conseguíamos falar. Inscrevemos o projeto na Lei Rouanet, porque as empresas não iam gastar, elas iam deixar de pagar para o governo e investir em pesquisa, mas também não conseguimos.

Nesse meio tempo, bancamos uma exposição em 2008 no Santander para dar visibilidade ao projeto e causar interesse, porque quando apresentávamos o projeto era como se fosse uma coisa horrorosa, pegajosa. Elogiavam as fotos, mas diziam “não tem outro tema pra fotografar, não?”

Quando lançamos o livro foi uma loucura, porque era a primeira vez que se mostrava isso de uma forma mais consistente. Procuramos antropólogos e fomos costurando tudo, mas nada foi fácil e ainda não é. Entendemos que não estávamos conseguindo patrocínio, mas por quê? A revista Época deu seis páginas para o projeto e a exposição teve muita visibilidade.

Bancamos uma exposição também no Rio de Janeiro e começamos a ter um portfólio grande do projeto, matérias em todos os veículos, mesmo assim não facilitou a conseguir os apoios. Descobrimos a fundação Palmares, o presidente era o Zulu Araújo, que está no filme, e eu conversei com ele por telefone. Ele não entendeu direito, então eu comprei uma passagem e fui duas vezes até Brasília. Cheguei lá e disse: “eu vim aqui porque é a última alternativa que temos para publicar o livro”. Ele ficou impactado — ele até fala sobre isso em uma das apresentações do livro — e a gente conseguiu um apoio que viabilizou a impressão.

Eu sempre acreditei que a fotografia tinha poder de comunicação e conscientização, então quando eu me direciono a esse assunto, a cada não que a gente recebia, foi despertando a questão do quanto era preconceituoso e invisível, quando essas pessoas estavam lá construindo sua fé e tinham dificuldade pra viver tranquilamente, isso instigou meu lado jornalista, e aí surge o filme.

Nos últimos anos, o trabalho em torno das religiões de matriz africana esteve muito presente na sua carreira, e, consequentemente, mesclou-se a sua vida pessoal além da profissional. Imagino que haja uma relação especial, de identificação com essas crenças. Como você lida com isso?

Com o pessoal da religião foi uma ligação muito estreita, próxima. Tudo o que fazíamos era autorizado, sempre foi com muito respeito. Nós prospectamos umas 100 casas aqui, dessas 100, visitamos umas 30, e das 30, escolhemos 13, com o critério da ancestralidade, quem tinha mais história. Visitávamos, participávamos e eles nos convidavam sempre que tinha alguma comemoração ou festa para os seus Orixás.

Começamos a ficar muito próximos deles e fomos nos descobrindo. Isso foi muito prazeroso. Você começa a sentir o movimento, a energia do Orixá, do tambor, dos Pretos Velhos, é muito interessante, é fantástico. Eu vinha de uma realidade que era muito material. Com a correria do jornalismo, eu tinha pouco tempo para sentir as coisas me transformarem e sentir o que me enriquecia. Era como um trabalho quase que braçal.

Quando busquei o documentário foi uma busca para entender espiritualidade, me entender, o que eu queria fazer, foi tudo muito ligado. Foi uma forma de conhecer meu estado de outro jeito. Eu sempre tive essa ligação, sempre gostei da energia da natureza e encontrei essas energias ali. Claro que não é fácil a vida de um povo de religião, porque manter os rituais dentro de uma casa é uma coisa muito séria, que se deve ter muita responsabilidade, é uma opção de vida. Eu não gostaria de ter passado por essa vivência e ter esquecido dela rapidamente, porque a gente se transforma.

Fotos de Mirian Fichtner presentes no livro Cavalo de Santo (Imagem: Revista Época/Mirian Fichtner)

Para o documentário, você precisou visitar um grande número de casas de religião e terreiros. Como foi a recepção?

Durante esse processo você é muito testado, não é fácil entrar num terreiro, tem que ter uma troca, como é o princípio da fotografia. Não existe fotografia sem a troca. Mas foi compreensível porque já é uma religião tão atacada, discriminada… Na imprensa só apareciam negros e pessoas de religião para falar de coisas horríveis, nunca mostravam o lado positivo, o que se fazia dentro dos terreiros.

Se criou uma mística, porque era uma religião que vinha de negros escravizados, pessoas pobres, e de repente se percebe que muita gente branca e rica frequenta terreiro. Então se vê que o terreiro, o pai de santo e os Orixás não são discriminatórios. Foi e está sendo uma experiência de muito crescimento.

Nos centros que você passou a frequentar, houve necessidade de pedir autorização para os Orixás para que pudesse fazer as gravações?

Claro, mas isso era compreensível, porque os terreiros tem uma história de muitos ataques. Primeiro, eu sabia que precisava conhecer e entender o que eu queria lá. Só na fala não era suficiente, eles tinham que conhecer um pouco da gente, éramos muito observados para ter o consentimento. A gente precisava ter não só o consentimento dos pais e mães de santo, mas também ter a autorização dos Orixás, e foi aí que começou o trabalho mais bonito, porque eles perceberam a energia que foi fluindo, então permitiram que fizéssemos esse trabalho.

Isso foi muito emocionante e ao mesmo tempo uma grande responsabilidade, porque não se brinca com um Orixá, né? Você tem que ter humildade e aprender com o que você está vendo e vivendo. Esse foi o princípio, o respeito que nos possibilitou adentrar. Mas eles nos testaram, porque precisavam fazer isso.

Quais foram os impactos da pandemia na produção do documentário?

Ao mesmo tempo que a pandemia atrapalhou, foi a partir da lei Aldir Blanc que conseguimos fechar o filme. O setor cultural está sendo acabado, e aí vem a importância da lei Aldir Blanc, porque só conseguimos fazer esse fechamento por causa dessa lei. Entramos em vários editais e não tivemos nenhum retorno.

Muitas vezes achamos que conseguiríamos lançar e aí não dava certo. Então quando estávamos pensando em engavetar, surgiu a lei Aldir Blanc. Este filme começou a ser construído há muitos anos. Para chegarmos nesse momento vem muito da filosofia dos Orixás: “O tempo dos Orixás é um, e o nosso tempo é outro”.

Quando fizemos o livro a intolerância existia, era forte, mas não era falada. Em menos de dez anos mudou muito a conjuntura, acirrou com o crescimento dos neopentecostais. No Rio de Janeiro tem milícias, traficantes de Jesus que buscam os terreiros. Teve na Bahia um caso recente de traficantes que obrigaram uma Ialorixá a quebrar todas as imagens sagradas. Começaram a aparecer na sociedade preconceitos que já aconteciam, mas que se tornaram ainda mais brutais.

Percebemos que era necessário dar voz a esses personagens para que eles dessem voz à religião. (Foto: Making of Cavalo de Santo)

Quais são os seus próximos passos de trabalho com a finalização do documentário?

Eu sou jornalista! É evidente que neste ano que vai entrar o filme, ainda não pode ser lançado porque não teremos como fazer isso presencialmente. Esse filme é um longa, tivemos todo o esmero técnico para que ele pudesse passar em cinema, em televisão. Então ainda temos um caminho dos festivais, dos lançamentos, de ver se vai ser online. Ainda temos muitos passos para trabalhar no filme. Isso vai continuar, o filme é uma outra batalha para que ele consiga abrir outros espaços no Brasil e lá fora.

Os festivais também dão muito trabalho, nada é fácil no campo do cinema porque também o setor do audiovisual no Brasil foi destroçado. Pretendo continuar nesse caminho do filme, percorrer a trilha desse novo mercado que é o mundo audiovisual. Paralelo a isso não se pode parar de trabalhar, e a gente vive de projetos, temos outros já planejados e essa é a vida de um jornalista, em especial de quem vive de cultura, vai estar sempre tendo que criar, e hoje, em condições adversas.

Quando se está começando, tudo é lucro. Mas ao perceber que mesmo depois de trilhar tantos caminhos você precisa continuar a lutar sempre, aí é um aprendizado para a vida.

Assista o teaser do filme Cavalo de Santo

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