Futebol feminino retrata a bravura e a resistência esportiva

Nessa primeira reportagem especial, apresentamos o caminho invisível do esporte no Brasil até a Copa do Mundo de 2019

Amanda Büneker
Redação Beta
6 min readMay 21, 2019

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Por Amanda Büneker e Maria Carolina de Melo

O ano de 2019 marcou o futebol feminino no país, que demonstra avanços na prática. (Foto: Lucas Figueiredo/CBF)

“As mulheres sempre estiveram presentes no futebol e, se não reconhecemos essa presença, é porque foi invisibilizada”. A observação da coordenadora do Centro de Memória do Esporte (CEME), da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Silvana Goellner, acontece no ano em que a Seleção Feminina Brasileira fará a sua sétima participação numa Copa do Mundo, desta vez na França. Contudo, essa será a primeira vez que as partidas serão transmitidas, ao vivo, pela televisão aberta, na Rede Globo, da mesma forma que as competições masculinas.

Muito além de fatores técnicos e comemorativos, o evento marca o avanço do esporte no Brasil. Em comparação à temporada passada, em 2019 houve a ampliação do calendário de eventos em 71%, segundo a CBF. Esse percentual indica a participação de novos times nos campeonatos nacionais e mais espaço para o futebol feminino na mídia tradicional.

“O desafio é tentar perceber se depois da Copa do Mundo também haverá esse mesmo interesse em torno da presença das mulheres no contexto futebolístico”, destaca Silvana.

Entretanto, o caminho foi longo até aqui. Para entender esse processo, a Beta Redação apresenta a primeira parte de uma reportagem especial sobre o futebol feminino no Brasil, percorrendo uma linha do tempo até 2019.

“Conhecer o futebol feminino é necessário para reconhecer sua importância nacional”

Já imaginou se as mulheres fossem proibidas de praticar esportes? Pois bem, há 40 anos isso era uma realidade no Brasil. “Entre 1941 e 1979 houve uma proibição, trazendo uma série de restrições para a presença feminina”, contextualiza a historiadora da UFRGS. Segundo Silvana, as atletas criaram estratégias para burlar a restrição, realizando partidas beneficentes que não eram consideradas competitivas.

O decreto em questão foi determinado na Era Vargas, por meio do Conselho Nacional de Desportos (CND). Conforme o artigo 54, do Decreto-Lei Nº 3.199, “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Mais de duas décadas depois, durante a Ditadura Militar, mais um decreto foi expedido pelo CND. Desta vez, especificando as práticas esportivas proibidas para mulheres. “Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball”, destacava a deliberação Nº 7 do Conselho.

Mas em 1979, devido à pressão popular de movimentos como a Democracia Corinthiana e o Levante Feminista, a Lei foi revogada e, assim, as mulheres puderam driblar, tanto a bola nos pés profissionalmente, como todo o machismo instaurado na sociedade.

“O futebol feminino se faz pela resistência das mulheres dentro e fora de campo”

Desde então 40 anos se passaram e a coordenadora do CEME compreende que a luta é para e por todas aquelas que estão vinculadas à área esportiva. “Jogadoras, técnicas, árbitras, torcedoras, gestoras e jornalistas”, elenca Silvana. Nesse espectro está incluso o envolvimento do público e o incentivo da mídia. “Eu tenho percebido grande movimento, no sentido de visibilizar a presença da mulher, pois o futebol feminino foi comprado pelo mercado em função dos vários movimentos feministas e da luta pelo protagonismo em várias áreas, incluindo o esporte”, completa.

Esse engajamento crescente é visível em números. Segundo dados do Kantar Ibope Media, a partida de futebol feminino entre Brasil e Austrália pelas quartas de final da Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016, representou o quarto evento mais assistido pela TV brasileira, totalizando 22.5 milhões de espectadores. A presença dos torcedores nas partidas também demonstra uma mudança positiva. Conforme dados divulgados pela Think Olga, na semifinal do Campeonato Brasileiro Feminino de 2017, disputada entre Iranduba FC (do Amazonas) e o Santos FC (popularmente conhecido como Sereias da Vila), foram contabilizadas 25.371 pessoas na Arena da Amazônia, público que superou a média masculina de 15.975.

Dados do estudo “O crescimento do esporte feminino”, realizado pela Nielsen em 2018. (Arte: Amanda Büneker/Beta Redação)

Na publicidade, as marcas adotam a luta pela visibilidade do futebol feminino em resposta ao incentivo do público. Assim, em ano de Copa do Mundo, período de forte presença do marketing esportivo, campanhas como a da Guaraná Antartica chegam para cobrar da área que mais jogadoras apareçam nos comerciais estrelados pelos atletas homens. “Vemos campanhas de produtos, por exemplo, que não existiam há muito tempo. Finalmente as jogadoras integram a publicidade nacional”, pontua Silvana.

Contudo, no caso da mídia, ainda é recente o movimento de cobertura da modalidade, o que torna seu impacto insignificante no grande quadro.

85% das notícias esportivas são voltadas ao esporte masculino, enquanto 9% abordam o esporte feminino e 6% se abstêm de gênero. (Arte: Amanda Büneker/Beta Redação)

O mesmo se repete na televisão brasileira. Ao longo de 24 horas de programação esportiva, apenas 12% desse tempo (2 horas e 55 minutos) é dedicado a atletas mulheres, segundo levantamento da Gênero e Número. Mas, conforme relação feita pela Think Olga, com base na pesquisa da Women’s Sports Foundation, esse número seria ainda menor: apenas 3% do horário dos noticiários esportivos é destinado a atletas mulheres e ao esporte feminino.

Contudo, esse ano é marcado por grandes mudanças nas transmissões televisivas dos jogos. O Campeonato Brasileiro Feminino retorna aos lares brasileiros ao ser transmitido na televisão aberta pela TV Bandeirantes, após pausa de um ano. Nas partidas da Copa do Mundo, os espectadores poderão acompanhar todos os jogos na Rede Globo, diferentemente da última edição, em 2015, quando apenas alguns jogos foram transmitidos pela Band, sob a justificativa de coincidirem com horários de pico de audiência da emissora.

Cifras definem desempenho das atletas

Com uma maior participação publicitária, os investimentos no futebol feminino tendem a crescer. Todavia, a margem entre as equipes femininas e masculinas e seus atletas ainda é grande. Em divulgação da revista Time, as receitas de patrocínio durante a última Copa do Mundo masculina foram de US$ 529 milhões. Já a competição feminina recebeu US$ 17 milhões, o que representa 3% desse total.

No Brasileirão, a mesma discrepância é verificada no valor premiado pela CBF. Enquanto o time campeão masculino embolsa R$30 milhões, o campeão feminino recebe R$ 120 mil — ou seja, 0.4% do valor ganho pelos homens.

Isso atinge também a profissionalização das atletas femininas. Mesmo grandes nomes do futebol mundial não compartilham do mesmo investimento e condição profissional que os jogadores masculinos. Por exemplo, a relação feita pela revista francesa France Football, de acordo com a Carta Capital, descobriu que a jogadora mais bem paga mundialmente no futebol feminino (também eleita a melhor do mundo em 2018), a norueguesa Ada Hegerberg, possui um salário menor que jogadores da Série A do Brasileirão.

Para entender melhor essa diferença, podemos também comparar os valores e históricos das duas camisas 10 da seleção brasileira (time feminino e masculino):

Dados do Think Olga e Forbes. (Arte: Amanda Büneker/Beta Redação)

No caso das atletas de nível nacional e estadual o problema da profissionalização das atletas é ainda maior. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, das 52 equipes que concorrem no Campeonato Brasileiro na série A1 e A2, apenas 8 tem 100% de suas jogadoras com carteira assinada, entre elas a dupla Gre-Nal. Os clubes que não contratam as atletas em regime CLT buscam ressarcir esse valor através do pagamento de benefícios e custeio de gastos com a universidade. Isso faz com que muitas atletas tenham que conciliar uma vida entre o esporte e um emprego secundário.

Quando se trata de salário, a média dos times da competição A1 é de 5 mil reais mensal. Porém, no restante dos times as atletas recebem uma média de um a dois salários mínimos, conforme estudo divulgado no UOL Esportes em 2017, relembrado em abril deste ano pela Carta Capital.

A Beta Redação entrou em contato a Assessoria de Imprensa de Grêmio e Internacional para questionar sobre valores de investimento nos times femininos. O time colorado não especificou valores, mas respondeu que o investimento financeiro segue a média dos times da divisão A1 (elite do futebol feminino). Já o tricolor, que está na A2, não respondeu ao contato, mas, segundo divulgado pela Folha de S. Paulo, os planos de investimento ao longo da temporada são de aproximadamente R$ 2 milhões.

“A expectativa é continuar resistindo”

Quando falamos em expectativas sobre o futebol feminino, a historiadora da UFRGS elenca uma série de melhorias. “Esperamos financiamento, que a CBF mantenha os campeonatos, mas que amplie eles e que as entidades estaduais promovam essas mulheres, com estrutura e condições”.

“A expectativa é que elas possam ter condições de fazer aquilo que desejam fazer”.

Silvana ainda percebe que as mulheres, na verdade, nunca desistiram do futebol. Porém, alerta a sociedade ao dizer que as atletas não jogam somente por amor ou desejo. Afinal, para muitas, a bola nos pés é sinônimo de sustento familiar.

“Essa é a grande perspectiva até a próxima Copa do Mundo, em 2023, e para além dela. Não podemos confundir a Seleção Brasileira com a modalidade, que só tem visibilidade de quatro em quatro anos. A Seleção Brasileira é apenas uma das dimensões”, finaliza a coordenadora do CEME.

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Amanda Büneker
Redação Beta

Jornalista, produtora de conteúdo e criadora do @playlistando_