(Foto: Unaids)

Esperança de cura do HIV dá novo passo em 2020

Após dois relatos científicos de pacientes que se livraram do vírus, Brasil pode ter, até o fim do ano, seu primeiro caso de vitória sobre o agente causador da Aids

Natan Cauduro
Redação Beta
Published in
17 min readMay 20, 2020

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O ano de 2020 teve um novo marco na busca pela cura do HIV. Em março, o jornal The New York Times (EUA) publicou reportagem exclusiva com Adam Castillejo — codinome “London Patient” (paciente de Londres) — , a segunda pessoa no mundo a ser diagnosticada como livre do vírus. A partir dessa notícia, a Beta Redação fez um levantamento sobre pesquisas nacionais e internacionais que tentam vencer a infecção, e o resultado foi esperançoso: em alguns meses, o Brasil pode anunciar o primeiro caso nacional de cura do HIV.

Como age o vírus?

Antes de se falar em pesquisas e possíveis curas, é importante compreender o que é o HIV, e qual a diferença entre ele e a Aids — dois termos que comumente são usados como sinônimos, o que está errado.

HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) e Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) não são a mesma coisa.

Fita símbolo do combate à AIDS / Foto: Reprodução Freepik, Jannoon028

Como os nomes em extenso já indicam, o primeiro é o vírus que causa o segundo. O HIV é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) que ataca o sistema imunológico do corpo, sistema esse responsável por defender o ser humano de doenças. Existem dois tipos desse vírus — HIV-1 e HIV-2. A maioria dos pacientes do mundo são infectados pelo HIV-1. O segundo vírus está presente, em maior escala, no continente africano. Dentro dessa classificação, há 13 subtipos de HIV.

Neste documento, publicado pelo Ministério da Saúde, há ampla explicação sobre as classificações e categorizações do HIV.

No Brasil, há predominância do HIV-1, em especial do tipo B. Porém, a região Sul vem passando por uma mudança, em que o HIV-1 mais encontrado é do tipo C — situação semelhante à de países na África.

O que o HIV faz é penetrar células do corpo e, lá dentro, ele prolifera, contaminando o organismo. A infecção por esse vírus possui três estágios, sendo o terceiro (e mais grave) responsável pela AIDS. A AIDS, portanto, é a doença que surge da fase mais avançada dessa infecção. Nesse nível de contaminação, o sistema imunológico encontra-se tão enfraquecido que o corpo humano se torna alvo fácil para uma série de outras doenças — chamadas de “oportunistas” por se aproveitarem da fraqueza do organismo.

Uma das células mais atacadas pelo vírus é a TCD4, pois ela possui um tipo de receptor em sua superfície que facilita a conexão entre ela e o vírus. “As proteínas do vírus vão reconhecer o receptor da TCD4. A partir daí, o vírus vai utilizar da maquinaria da TCD4 para produzir células para ele”, explica Aline Zaparte, bolsista de pós-doutorado no Instituto do Cérebro (Inscer) da PUCRS.

O Brasil está domando o vírus

Ricardo Sobhie Diaz é diretor do Laboratório de Retrovirologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina (EPM/ Unifesp). Ele encabeça uma pesquisa nacional que busca pela cura do HIV. Há um ano e meio, o professor relata ter erradicado o vírus de três pacientes. Do trio, dois apresentam sintomas que indicam a retomada do HIV, enquanto um continua livre da infecção. Até o final de 2020, caso a situação mantenha-se estável, esse paciente poderá ser considerado o primeiro brasileiro curado do HIV.

Professor Ricardo Diaz em laboratório. (Foto: Sergio Dazzi)

A pesquisa do professor Diaz consiste em três partes que atuam em conjunto para derrubar o que ele chama de “três barreiras do vírus”. A primeira delas trata da capacidade de resistir aos medicamentos antirretrovirais. Segundo o professor, em média, 80% das pessoas em tratamento ainda têm o vírus se multiplicando — isso significa que os remédios conseguem retardar e até prevenir a Aids, mas não conseguem neutralizar o HIV.

Diaz, portanto, optou por utilizar medicamentos mais potentes. Em sua pesquisa, são dois: o dolutegravir (considerado pelo pesquisador como a droga mais potente no mundo contra o HIV) e o maraviroc (responsável por interromper a latência da célula).

A segunda barreira está justamente na latência. “O segundo motivo pra não conseguir curar as pessoas é que você desencadeia uma coisa chamada latência — que é o vírus dormir. Dessa forma, o vírus não se multiplica, mas não sai dali (célula). Você não cura”, relata o professor.

O grande problema da latência é que ao colocar o vírus num ambiente seguro contra os medicamentos e invisível ao sistema imunológico, “na hora que você tira o tratamento de uma pessoa, alguns desses vírus vão acordar. Demora um tempo médio, mas na hora que acorda, a infecção começa de novo”, conta Diaz.

Professor Diaz identifica três grandes dificuldades na busca pela cura do HIV (/ )Foto: Cottonbro/Pexels)

Nesse segundo estágio, ainda é acrescentada uma outra droga: a nicotinamida (vitamina), que se provou eficaz na eliminação da latência da célula. O professor também usa uma segunda droga, chamada auranofina, mas é carinhosamente apelidada de “Sal de Ouro”. A função dela é interromper a latência.

A terceira e última barreira identificada são os chamados “santuários”, locais de difícil acesso no corpo. O vírus, ao penetrar essas áreas, consegue se proteger tanto do medicamento quanto do sistema imunológico. Alguns exemplos de “santuários” são: cérebro, testículos, ovário e partes do intestino. Para superar esse obstáculo, Diaz desenvolveu uma vacina (feita de células dendríticas), conseguindo direcionar os antirretrovirais nos locais específicos.

Essa, então, é uma pesquisa que ocorre em três partes: ataca a latência da célula, reforça os antirretrovirais e usa uma vacina para invadir os santuários do HIV.

A equipe que atua nessa pesquisa envolve “praticamente toda a escola paulista. Tem algumas pessoas do Hospital das Clínicas e mais de 30 pesquisadores envolvidos”, diz o professor. Diaz deu início à pesquisa com 30 homens, que foram divididos em grupos para aplicação de diferentes métodos de cura. Depois de conseguir resultados positivos, a ideia é expandir a pesquisa para um grupo de 50 pacientes, e desta vez mais diversos.

Não há mulheres na primeira versão das testagens, com os 30 pacientes. O motivo, segundo o professor, é que alguns dos medicamentos (Sal de Ouro e dolutegravir) são perigosos especialmente para gestantes. Essa ressalva, portanto, acabou afastando candidatas do teste.

O trabalho do professor Diaz conta com a participação de mais de 30 pesquisadores (Foto: Darko Stojanovic/Pixabay)

Sobre os resultados positivos da primeira avaliação da pesquisa:

“Têm três pessoas que, depois de tirar o tratamento, o vírus não voltou. Em duas delas, a gente começou a ver que ele pode estar lá ainda. Mas em uma delas, a gente não acha o vírus. Ele está que nem o paciente de Londres. Ele poderia doar sangue hoje que ninguém ia detectar ele. O teste daria negativo. Então esse é o cara que a gente imagina que pode ter realmente curado”.

A média de observação de um paciente nessas condições é de dois anos. Passado o tempo necessário, ele pode ser dado como curado do HIV — da mesma forma que o paciente de Londres foi. Até julho, o “Paciente do Brasil” completa um ano e meio sem qualquer resquício do HIV. Ao final do ano, o Brasil pode ter seu primeiro caso de cura do vírus.

Uma ressalva aqui se faz importante. O próprio professor pontua que, assim como o paciente de Londres, o anúncio de cura se dá sobre o indivíduo. Não há, ainda, previsão de uma cura para a população, afinal, os medicamentos e métodos utilizados funcionaram em um indivíduo dentre os vários testados e ainda milhões a receberem uma chance.

O “Paciente do Brasil” poderia doar sangue, pois não se detecta qualquer resquício de HIV em seu corpo (Foto: Karolina Grabowska, Pexels)

Um dos próximos passos da pesquisa será automatizar o processo de criação da vacina, para que seja aumentada a escala de produção. Segundo o professor, já há um orçamento na casa dos milhões de reais pra dar início à ideia. Um ponto também levantado é o custo de uma possível cura, afinal, num processo de três etapas com medicamentos caros e cuja fabricação é complexa, a tendência é ver os gastos aumentarem. “Você pode encarecer o processo, mas eu acho que isso é uma coisa contornável. A gente passou por isso em outras situações da medicina. A gente já faz isso para o câncer”, comenta Diaz.

A pesquisa pelo mundo

No site Labiotech.eu (especializado em cobrir a indústria europeia de biotecnologia), o artigo de Evelyn Warner publicado em 2016, e atualizado em 2018, traz um resumo sobre os avanços da área na busca pela cura do HIV.

Em sua maioria, as empresas citadas pesquisam tratamentos que atacam o vírus nas áreas do corpo humano que atuam como reservatórios (o termo mais utilizado é reservoir). Reservatórios são áreas em que o vírus se isola e permanece inativo.

De acordo com Aline, os reservatórios “são um conjunto de células que vão abrigar transcritos inativados ou em latência — que são partículas consideradas pró-vírus. Esses fragmentos não estão ativos, mas são competentes para retomar a replicação assim que o momento esteja favorável, gerando mais cópias virais”.

O motivo do sistema imune não reconhecer a partícula vem justamente “dessa capacidade do vírus de se fingir de morto, de ficar nessa forma latente. Ele fica escondido tanto da terapia antirretroviral (que não consegue entrar em algumas células específicas) quanto do sistema imune (que não percebe que existem partículas contaminado células ou tecidos)”, explica Aline.

São considerados reservatórios do HIV no corpo humano: células TCD4, monócitos (células de defesa presentes no sangue), macrófagos e células dendríticas, tecidos do sistema nervoso central e tecidos linfóides (associados ao sistema digestivo).

“Então, devido a isso, mesmo após 40 anos da descoberta, o HIV ainda é considerado uma infecção viral sem cura”, diz Aline Zaparte.

Outro problema gerado pelos reservatórios se dá quando o tratamento é interrompido. O vírus, por óbvio, sai do estado de latência e vai voltar a se replicar, gerando mais cópias e, se não tratado, causando a doença da Aids.

No texto do site Labiotech, são citadas empresas que atuam na pesquisa científica para encontrar a cura do vírus. São elas: Abivax (francesa), Zion Medical (israelita), Gilead (americana) e AELIX Therapeutics (espanhola), Bionor (norueguesa), InnaVirVax (francesa) e Sangamo Therapeutics (sede nos EUA, entre outros países).

Site da empresa Abivax / Foto: reprodução

A empresa Abivax desenvolve uma droga capaz de atacar os reservatórios de HIV. A droga se conecta a um pedaço específico do RNA viral, assim impedindo a replicação do mesmo. As empresas Gilead e AELIX utilizam de um método chamado “shock and kill’ (consiste em reativar os vírus escondidos nos reservatórios, tornando-os alvos do sistema imunológico), enquanto a Bionor foca na criação e aplicação de uma vacina dupla. Há também tratamentos de imunoterapia — são responsáveis por aumentar a capacidade e a potência do sistema imunológico, assim dando a possibilidade do próprio organismo combater o vírus.

Um dos métodos mais inusitados, e que parece ter saído de um filme de ficção científica, é utilizado pela Sangamo. Trata-se da edição de genes. Significa que, através de um aparato tecnológico, a empresa consegue modificar o DNA do paciente, dando a ele a capacidade de resistir ao HIV. Existem pessoas que nascem com mutações que as fazem resistentes ao vírus, por isso, teoricamente, é possível replicar a ação através da edição de genes.

Todas as empresas mencionadas continuam trabalhando em pesquisas de combate ao HIV, mas ainda não há resultados conclusivos sobre uma droga ou método que consiga eliminar por completo e permanentemente os reservatórios do vírus. Sobre a edição ou engenharia genética, mesmo não sendo proibida, há fortes debates éticos sobre seu uso — o que pode inviabilizá-la.

Empresa Sangamo, responsável pela engenharia genética (Reprodução)

Segundo o professor Diaz, a engenharia genética levanta esses questionamentos quando utilizada de uma forma eugênica (referente a eugenia), mas ele acha que “o debate fica mais aceitável na hora que você está tratando uma pessoa e você tenta combater um câncer ou uma infecção crônica mudando alguma coisa geneticamente do hospedeiro”.

The London Patient

Com 40 anos, nascido na Venezuela, mas vivendo na Inglaterra, LP (Adam Castillejo prefere ser chamado pelas iniciais do codinome London Patient) trabalha com gastronomia e, agora, faz aparições públicas com o objetivo de alertar a comunidade internacional sobre a possibilidade da cura. “Esta é uma posição única para se estar. Eu quero ser um embaixador da esperança” — disse em entrevista ao NYT.

Adam, o “Paciente de Londres” (Foto: Jon Attenborough)

Em tratamento contra o HIV há mais de uma década (foi diagnosticado em 2003), LP foi um dos dígitos que compunham um grande número a nível internacional. Segundo estatísticas da UNAIDS (um braço das Nações Unidas com foco na divulgação de informações sobre o HIV), em 2018, é estimado que 37.9 milhões de pessoas viviam com HIV. Apenas em 2018, foi estimado um total de 1.7 milhão de novos casos e por volta de 770 mil mortes causadas pela AIDS e as consequências dessa síndrome.

A cura de LP em muito se assemelha com o primeiro caso registrado no mundo. O primeiro paciente a vencer o HIV chama-se Timothy Ray Brown. Na época, em 2008, ele era conhecido como “The Berlin Patient” (o paciente de Berlim). O motivo da cura foi o mesmo de Adam: transplante de medula óssea doada por um indivíduo com natural resistência ao vírus.

“LP” foi o segundo caso de cura do HIV no mundo (Foto: Reprodução Instagram)

O médico cirurgião responsável pela operação de LP, Ian Gabriel, é especializado em cirurgias de transplante de medula óssea não só em pacientes diagnosticados com HIV. Ian faz questão de afirmar em suas entrevistas que a cirurgia de medula não é um método de cura do vírus, especialmente por ser um procedimento extremamente arriscado e sem comprovação científica de efetividade na eliminação do HIV.

LP se submeteu ao procedimento por ter sido diagnosticado com linfoma — um tipo de câncer que se inicia nas células do sistema linfático. O transplante é um dos últimos recursos na tentativa de combater o câncer.

O dono original da medula implantada em LP possuía uma mutação genética, chamada “Delta 32”, que impede o HIV de se fixar nas células do corpo. Após a cirurgia, em 2016, a medula óssea deu a LP um novo sistema imunológico, tornando-o resistente ao vírus. LP foi observado pelos médicos durante os anos seguintes e, com o desaparecimento do vírus e sem nenhum sinal de possível retorno, Adam foi considerado a segunda pessoa curada do HIV.

Para o professor Diaz, o caso do paciente de Londres não foi muito divulgado, e o pouco que se comentou sobre ele foi tardiamente. Ele crê que a falta de repercussão vem da pouca originalidade do fenômeno, já que trata-se de um outro caso de transplante de medula óssea. Perguntado sobre a viabilidade da medula óssea como um possível tratamento, Diaz responde:

“Eu duvido pelo seguinte: não é nem ético. O transplante de medula vem com uma mortalidade que é de 30% a 50%, então por que você vai submeter uma pessoa que está bem, que tem uma expectativa de vida igual ou maior de quem não tem HIV, a um procedimento que vai levar ao risco de morte?”

O tratamento atual

A famosa frase “Não existe cura para o HIV” é dita desde 1982, quando descoberto o primeiro caso do vírus no Brasil, e se mantém verdade em 2020. Só em 2018, o vírus infectou mais de 43 mil pessoas no Brasil, deixando o país com um total de casos que ultrapassam 280 mil.

O uso de preservativos durante o sexo é a melhor forma de prevenir o contato com o HIV (Foto: Unsplash, Reproductive Health Supplies Coalition)

Mesmo não havendo uma cura para o vírus, já existem, desde a década de 80, tratamentos antirretrovirais (ARVs), também chamado de TARV — Terapia Antirretroviral. Popularmente, são conhecidos como “coquetel anti-Aids”. Esses medicamentos impedem o vírus de replicar seu material genético — a consequência disso é a não proliferação do invasor pelo corpo. A vantagem do tratamento é impedir que o paciente torne-se mais uma vítima da Aids. No site do governo federal, existe uma tabela com 21 medicamentos usados nesse tratamento.

A pesquisadora Aline afirma que não são utilizados todos esses medicamentos de uma só vez quando se cria o coquetel. “São feitas combinações de dois ou três antirretrovirais, e essas combinações podem ser apresentadas em apenas um comprimido”, reforça. Ela também diz que a escolha do coquetel se dá a partir das características do paciente e da adequada avaliação médica. As drogas podem ser alteradas dependendo da reação do vírus no paciente. Segundo Aline, “se o paciente começa a não responder à primeira linha de tratamento estabelecida, ele começa a apresentar uma elevação no número de cópias (do vírus). Acima de mil por três meses consecutivos, é um alerta para que seja substituído o coquetel”.

A quantidade de medicamentos antirretrovirais em um coquetel varia de paciente para paciente (Foto: Karolina Grabowska/Pexels)

É importante ressaltar que os ARVs são utilizados após a infecção do HIV, por isso, a prevenção é de suma importância. O método mais indicado é o sexo seguro — usando camisinha. Também existem outros métodos de prevenção, como a Profilaxia Pré-Exposição (Prep) e a Profilaxia Pós-Exposição (Pep). Tratam-se de medicamentos de uso diário que ajudam a prevenir a infecção do organismo pelo vírus, seja antes ou depois de uma relação sexual desprotegida (o que nunca é recomendado), após abuso sexual, uso de seringas infectadas ou quando um indivíduo tem contato com o sangue de alguém já contaminado.

Para Aline, “as estratégias de profilaxia devem servir como uma prevenção combinada. Devem ser utilizadas para reforçar o uso do preservativo na relação sexual”. A Prep também é utilizada quando há relação entre parceiros que são “soro discordantes”. Significa que uma das pessoas é HIV positivo enquanto a outra é negativo. “A Prep não vai impedir com que o vírus entre no organismo. Com ela, o indivíduo soronegativo vai ter o contato, ele vai receber o vírus no seu organismo, mas essa medicação vai impedir que os vírus se multipliquem dentro das células TCD4”, afirma Aline.

Tomada diariamente, a Prep vai funcionar como um “anticoncepcional viral”, ilustra a pesquisadora. O medicamento vai bloquear uma enzima que atua na replicação do vírus, enzima essa chamada Transcriptase Reversa. É importante ressaltar que essa medicação tem um tempo para agir — em torno de 7 dias de antecedência. Após o contato com o vírus, deve ser mantida uma regularidade de consumo de quatro semanas para garantir o efeito da droga.

Já a Pep é utilizada como uma medida de urgência médica, de acordo com Aline. Deve ser iniciada com o menor intervalo possível entre o contato com o vírus e a ingestão da droga, sendo esse tempo de no máximo 72 horas, e tem um período de consumo de 28 dias. A Pep é composta por 3 antirretrovirais. Uma das funções do trio de medicamentos é impedir a transferência de material genético do vírus para dentro da célula.

A psicologia do vírus

O HIV continua sendo um vírus que propaga preconceito. Desde o primeiro caso detectado no Brasil, a infecção foi caracterizada como uma doença de gays e travestis. A homofobia faz parte diária da vida de alguém que convive com o HIV, vestígio de um passado que não poupou esforços para culpabilizar uma minoria.

Matéria dos anos 80 sobre Aids (Foto: Reprodução)

Em 2019, uma pesquisa intitulada Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS foi publicada com o intuito de observar a aceitação da sociedade para com o indivíduo infectado pelo HIV.

Na pergunta sobre discriminação, do total de 1.613 votos, 46% afirmaram já ter sofrido preconceito por serem portadores de HIV. Essa foi a pergunta com maior porcentagem de indivíduos dizendo sim. A menor, cujo total de respostas foi 1.645, fala sobre sofrer agressão física pela condição sorológica: 6%. Na pesquisa, caso sejam somados todos os índices de violência, chega-se a 1.784, e desse total, 1.144 (64,1%) já passaram por algum tipo de abuso, seja mental ou físico.

Os dados observados na pesquisa podem indicar uma melhora, mas o estigma de ser portador de HIV parece ter nascido junto do vírus.

João Paulo Ottolia Niederauer é aluno de mestrado da PUCRS. Ele atua dentro do Grupo de Pesquisa em Neurociência Cognitiva do Desenvolvimento, um trabalho coordenado pelo professor Rodrigo Grassi Oliveira. A pesquisa de João envolve entender a participação de marcadores biológicos, chamados miRNAs, na associação entre drogas, como cocaína e crack, com o HIV. Acompanhado disso, estão pesquisas sobre consequências psicológicas no usuário de drogas. Um aumento da presença e níveis de depressão parece ser uma constante.

Segundo João, para entender o preconceito por trás do HIV, é preciso compreender a história desse vírus no Brasil. “Ele surge na década de 80, é associado ao homem homossexual, e cria-se esse estigma de que era uma doença de gays. Isso foi passando de geração em geração e até hoje a gente ouve isso”, comenta. Para ele, a falta de acesso à informação é um grande causador e propagador desse pensamento.

Matéria publicada no jornal “Notícias Populares” em 1983 (Reprodução)

“O que a gente sabe é que o vírus vai afetar qualquer pessoa da mesma forma, mas vai ter, sim, grupos de risco. Se a gente pensar em profissionais do sexo, eles vão ter um risco muito maior de contrair o vírus.”

João também reforça que o HIV tem consequências psicológicas em quem é contaminado. “A gente sabe que a grande maioria, 8 a cada 10 pessoas, tem dificuldade em revelar que vive com o vírus. É uma proporção gigante. Uma dificuldade de contar mesmo que para pessoas íntimas, que você espera que te acolham, que te deem apoio”, afirma.

Para além do preconceito com pessoas LGBTQI+, outro fator que agrava o debate sobre HIV está em uma das formas de transmissão do vírus: através do sexo. “Falar com a família sobre sexo, sobre sexualidade ou até sobre um parceiro(a) é difícil. E quando uma doença (Aids) ou um vírus (HIV) está associado a isso, que é um elemento carregado de estigma por já ser um tabu, é ainda mais grave”, opina.

O apoio familiar também é de suma importância para alguém que vive com o HIV. Contudo, ainda não são comuns os casos de famílias que aceitam o indivíduo que foi infectado. João, que pesquisa a relação de drogas com o HIV e tem contato com a população de moradores de rua de Porto Alegre, observa que o abandono familiar pode anteceder o próprio vírus.

“Talvez o principal fator seja esse. Eles (moradores de rua) têm uma história de vida, traumas precoces, que precedem o HIV. E quando a pessoa contrai o vírus, não vai ter família para dar apoio”, diz o pesquisador.

Outra iniciativa, em termos de pesquisa, parte da Unisinos. De acordo com Maria Leticia Rodrigues Ikeda, professora da Escola de Saúde da Unisinos, existe uma parceria entre a universidade, a Secretaria de Saúde do RS e Aids Healthcare Foundation (AHF) para a implementação de um projeto.

Nessa parceria, serão implementados ambulatórios de retenção de pacientes com HIV ou AIDS. O objetivo será reduzir o impacto da mortalidade em Porto Alegre e região metropolitana. Nesse local, o indivíduo, assim que diagnosticado, já recebe encaminhamento para começar o tratamento antirretroviral. Além disso, o ambulatório prepara um sistema que indica os locais mais próximos da casa do morador, como postos de saúde e farmácias, para que ele retire os medicamentos e não abandone o tratamento já de início.

Segundo a professora, estão envolvidos nesse projeto cinco professores do PPG de Saúde Coletiva da Unisinos. O projeto deve durar por quatro anos. Para o primeiro ano, foram estabelecidas quatro equipes de retenção: três na Capital e uma em Viamão. Cada equipe será composta por um médico, duas enfermeiras e um agente vinculador.

Para saber mais

A Beta Redação compilou alguns links para quem quiser se aprofundar na pesquisa do tema HIV:

Documentário sobre a história do HIV e da AIDS no Brasil / Foto: Reprodução, Adorocinema

Informações básicas sobre HIV

A História da AIDS no Brasil

Linha do Tempo do HIV e da AIDS no mundo (em inglês)

Estatísticas globais sobre HIV e AIDS (em inglês)

Boletim epidemiológico HIV/AIDS 2018 do RS

Manual de terminologia para escrever matérias sobre HIV

Boletim Epidemiológico 2019 no Brasil

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Natan Cauduro
Redação Beta

Jornalista e estudante de Relações Internacionais.