Murilo Dannenberg
Redação Beta
Published in
8 min readMay 8, 2019

--

(Arte: Murilo Dannenberg/Beta Redação)

Considerada uma das pautas centrais dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro, a regulamentação do homeschooling gera dúvidas no Brasil. O tema está em discussão há pelo menos quatro anos e já mobilizou todas as esferas do poder público. A modalidade, contudo, é pouco aplicada: apenas 7.500 famílias, ou 15 mil estudantes, aderem à prática, segundo dados da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned).

A Aned não especifica se essas crianças estudam exclusivamente em casa, pois a modalidade ainda não está regularizada. O número é pequeno se comparado ao universo de 48.5 milhões de matrículas nas escolas do País, conforme o Censo Escolar 2018. Ainda assim, no começo de abril, o presidente assinou um projeto de lei para regulamentar o ensino em casa. A proposta, que ainda depende de votação no Congresso, prevê a garantia de liberdade aos pais na escolha entre a educação escolar ou domiciliar.

Para compreender a situação e os possíveis desdobramentos da proposta é preciso, primeiro, entender o que de fato constitui o homeschooling. Trata-se da substituição ou complementação do aprendizado intelectual em ambiente escolar para o ambiente privado. No lugar de frequentar uma escola regular, as crianças e adolescentes realizam um plano de ensino formulado pelos pais ou por tutores contratados.

Atualmente, o consenso jurídico predominante é orientado pela decisão colegiada proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2018. O Judiciário entendeu que é dever dos pais manter as crianças matriculadas em escolas regulares até que o homeschooling seja regularizado.

Eis que entra o projeto assinado em abril. Nele, o governo determina o preenchimento de cadastro por parte dos pais no site do Ministério da Educação. O formulário deverá incluir documentação do estudante, comprovante de residência, termo de responsabilização pela escolha do homeschooling assinado pelos responsáveis, certidões criminais das justiças Federal e Estadual, vacinação atualizada e, por fim, o Plano Pedagógico Individual (PPI).

Implicações do ensino fora da escola

Conforme o doutor em Psicologia Rodrigo Lages, o homeschooling possui implicações que vão além da qualidade do ensino. “A escola é um espaço de socialização. A socialização primária é feita na família, e a escola é responsável pela socialização secundária”, explica. O psicólogo, que atua como professor e já coordenou a área de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação da UFRGS, destaca que o papel escolar é oferecer convívio em sociedade com elementos que fogem ao repertório familiar.

“A criança, na família, está acostumada a viver a experiência intelectual e cognitiva de uma maneira indissociável dos afetos. Isso é aceitável no âmbito familiar. Na adolescência, surge uma discordância que gera contestação aos pais, até como uma forma de atestar seu processo [dos filhos] de autonomização”, salienta.

Para Lages, socialização e atividades em grupo são importantes no aprendizado infantil (Foto: Prefeitura de Belo Horizonte/Flickr)

Segundo Lages, a escola é o local em que as pessoas aprendem a conviver com a diferença, com o ponto de vista do outro e com aquilo que é estranho. “É onde temos contato com o que foge ao nosso repertório. Em relação a isso, a família não dá conta. É necessário que haja outro espaço, e esse espaço é a escola”, enfatiza.

Ele aponta, também, que um ensino de qualidade, ministrado em casa, não é uma possibilidade para todos os brasileiros. “Eventualmente, até podem existir famílias muito abastadas e capazes de oferecer recursos pedagógicos superiores aos da escola”, explica. Ainda assim, para o pesquisador o desenvolvimento social e afetivo necessita da socialização secundária, que acontece em um espaço mais público e menos privado, possibilitando o contato da criança com diferentes e variados repertórios.

O psicólogo, que também atuou na área de cultura juvenil e tem experiência com a integração de jovens, frisa que a escola ajuda a discordar intelectualmente, “sem amar e sem odiar o outro”. “Ela nos ensina que cada posição é legítima. Podemos ter uma experiência menos contaminada pelo jogo binário da dialética de amor e ódio das relações familiares”, argumenta.

“É uma coisa que precisamos aprender hoje em dia: que a posição que discorda de nós não quer nos destruir. Um perigo de manter os jovens fora do espaço da escola é que eles não serão capazes de distinguir um julgamento intelectual e um julgamento moral”, conclui.

O que buscam as famílias que defendem o ensino domiciliar

No Brasil, a principal organização representativa do homeschooling é a Aned. Criada em 2010, defende que as famílias tenham autonomia para planejar e prover a educação dos filhos. No site da associação são apresentadas as motivações para a escolha do ensino em casa, que envolvem o desejo de preservar a moral da família e a discordância ao posicionamento ideológico dos professores.

(Arte: Adaptação de Murilo Dannenberg/Beta Redação)

Apesar da modalidade educacional ainda não estar regulamentada, a Aned defende que o direito dos pais de serem ou escolherem tutores para os filhos está amparado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, no artigo XXVI, a qual o Brasil é signatário, e também no Código Civil Brasileiro, artigo 1.634. É da associação, inclusive, a formulação do texto assinado por Bolsonaro.

Impressões sobre o projeto

O advogado Édison Prado de Andrade, gestor da Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF), considera o projeto um ponto de partida, ainda que insatisfatório. “Trata-se de um bom projeto de lei, mas precisará sofrer muitos ajustes no Congresso Nacional, de modo a reconhecer que a educação domiciliar não pode ser vista pelo Estado sob o paradigma da educação escolar”, aponta.

O advogado relata que a proposta gerou desagrado às famílias praticantes da educação domiciliar, já que as exigências foram consideradas exageradas por quem pratica o ensino em casa.

Lages, por outro lado, critica o projeto de regularização do homeschooling como uma forma de enfraquecer as escolas tradicionais. O professor, que também é membro da Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça, vincula o avanço da educação domiciliar a iniciativas como a Escola Sem Partido e, também, à criação de modelos de ensino médio a distância.

Uma das críticas ao avanço do ensino domiciliar é o possível esvaziamento do ensino tradicional (Foto: Dênio Simões/Agência Brasília)

Para o pesquisador, a redução do papel escolar se deve ao lobby de empresas que produzem materiais didáticos e a componentes religiosos. “Existe um núcleo que rejeita a laicidade do ensino, pois estudos científicos contrariam crenças de algumas religiões e famílias. Há interesse dessas famílias de ensinar seus filhos de acordo com suas crenças, e, com certeza, há empresas dispostas a vender material didático para essas pessoas”, finaliza.

Inspiração que vem de fora

Assim como no Brasil, a educação domiciliar envolve muita discussão nos Estados Unidos. Diferente do que se propõe aqui, porém, ela não é regulada em nível federal. Apesar de ser legalizada, possui diferentes exigências em cada um dos 50 estados norte-americanos. Há mais de 160 anos, a pauta é debatida nos tribunais.

Suprema Corte dos EUA garante autonomia aos estados americanos para legislar sobre o homeschooling (Foto: Richard Gillin/Flickr)

Nos Estados Unidos, existem, hoje, cerca de 2 milhões de estudantes educados em casa. De acordo com a National Home Education Research Institute (Nheri), a população que pratica o homeschooling cresce entre 2% e 8% ao ano no país.

No que se refere ao aspecto comparativo, porém, Andrade julga que não se pode fazer uma aplicação direta do modelo norte-americano para o Brasil. “Entendo ser necessário criarmos uma variação brasileira do modelo, levando em conta o quadro amplo das famílias e da sociedade em geral, modificando drasticamente o espaço físico e cultural do saber e do fazer escolar”, defende.

Afinal, o Brasil está preparado para adotar o ensino domiciliar?

Conforme Andrade, até o início do século XX a modalidade de ensino de crianças mais praticada no Brasil foi a educação em casa. Cabe destacar, porém, que, nessa época, cerca de 65% da população brasileira acima dos 15 anos era analfabeta, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Após esse período, a educação pública escolar passou a se desenvolver no Brasil, trazendo obrigações e disposições constitucionais e legais. Em artigo publicado em 2004, a PhD Maria Eulina Pessoa de Carvalho, se debruça sobre a evolução e relação das famílias brasileiras com a educação. A pesquisa indica que a classe econômico-social está diretamente ligada à participação dos pais no ensino escolar dos filhos.

Maria Eulina observa que famílias de classe média ou abastadas se envolvem mais com a educação dos filhos. Nas classes com menos recursos, explica, as obrigações laborais ou até mesmo a vulnerabilidade social reduzem o tempo que essas famílias dedicam ao ensino e educação.

Entenda o PPI

O Plano Pedagógico Individual (PPI) se assemelha ao Plano Político Pedagógico (PPP), mas sem a abrangência coletiva. Ele será formulado pela família, especialmente para crianças e jovens que praticam o ensino em casa. O plano individual já existe e se aplica, sobretudo, para casos de pessoas com deficiência (PCDs), que, por motivos de saúde, não podem ou não conseguem frequentar uma escola regular.

O instrumento deve estar de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e considerar conteúdos adequados para cada faixa-etária. O plano ainda precisa ser atualizado anualmente, e os pais ou responsáveis devem detalhar de que forma a grade de disciplinas será dividida e como serão aplicadas as avaliações.

Complexidade jurídica

Em 2016, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, suspendeu decisões judiciais acerca do tema até que o principal tribunal do país decidisse, em conjunto, a possibilidade de os pais educarem os filhos em casa. O resguardo jurídico permitiu que o número de alunos que não frequentam escolas crescesse. De 10 mil passou para os 15 mil atuais, conforme estimativas da Aned. Em setembro de 2018, porém, em decisão colegiada, o STF proibiu a prática da educação domiciliar sem a matrícula em escola regular, seja ela pública ou privada. Ainda assim, apesar da ilegalidade, há praticantes.

Consenso do STF é orientação ao Judiciário até que haja norma reguladora do ensino domiciliar (Foto: Leandro Neumann Ciuffo/Flickr)

Para Andrade, a sentença foi um erro. “Equívoco do mais importante tribunal da República, na qual, como de costume, confunde-se educação com escolarização”, critica.

“Representa mais uma decisão no quadro que vem se afirmando há décadas nos tribunais brasileiros e no Sistema de Garantia, Proteção e Promoção dos Direitos Humanos e Sociais, de desprestígio do poder natural e constitucional que os pais possuem com primazia sobre seus próprios filhos frente ao Estado, inclusive no sentido de dirigir a educação destas crianças e adolescentes”, justifica.

Andrade acrescenta que, enquanto não houver lei específica que regulamente a educação domiciliar no Brasil, prevalecerá o entendimento do STF. O advogado defende que as famílias tenham o direito de planejar e prover diretamente o ensino intelectual dos filhos, desde que em conformidade às normas penais, sobretudo às prescritas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

--

--

Murilo Dannenberg
Redação Beta

Jornalista. Curioso sobre como as coisas funcionam, com ideias de porque vemos o mundo tal como o percebemos e o que o futuro nos reserva.