Mbya Guaranis iniciaram a retomada da área denominada Mato do Júlio respondendo a um chamado de seu Deus Nhanderu. (Foto: Veronica Machado Nani)

Indígenas reivindicam território ancestral em Cachoeirinha

Grupo de Mbya Guarani retomou área conhecida como Mato do Júlio, ponto de especulação imobiliária

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Por Paola De Bettio Tôrres e Carolina Santos

Já se somam duas semanas desde que um grupo de indígenas Mbya Guarani iniciou a retomada do Mato do Júlio, no município de Cachoeirinha. A área de 124 hectares está localizada entre a avenida Flores da Cunha e a Freeway, um ponto cobiçado pelo mercado imobiliário. Para os Mbya, a área tem ligação com sua ancestralidade e espiritualidade.

O Coletivo Sementes promoveu uma live no Facebook, no dia 29 de setembro, para abordar a retomada. O evento contou com a presença de lideranças indígenas, como Luiz Palácio Karai e Santiago Franco Karai. Esteve presente, também, o etnoarqueólogo José Otávio Catafesto. A deputada federal Fernanda Melchionna (Psol) fez a abertura da mesa. Ela ressaltou a importância da ocupação da área. “Há muito tempo os movimentos sociais lutavam para garantir a preservação do ecossistema e da diversidade do Mato do Júlio. Essa é uma área muito visada pela especulação imobiliária, que quer destruir toda a biodiversidade”, relatou a parlamentar.

Live do Coletivo Sementes reuniu lideranças indígenas no dia 29 de setembro. (Imagem: Reprodução/Facebook)

“Rio Grande do Sul é território Guarani”

Santiago, uma das maiores lideranças Guaranis no Rio Grande do Sul, mencionou a necessidade de sobrevivência do seu povo a partir da mata. “Todo mundo sabe, juruá [não-indígena, na linguagem Mbya Guarani] sabe, conhece muito bem, que o Guarani precisa a mata, precisa o lugar da mata, que tem material, matéria-prima, tem o arroio, tem medicina tradicional e fruta nativa”, disse o indígena. Ele lembra que os Guaranis já andavam pelas terras brasileiras muito antes de qualquer um. “Muito juruá conhece esse lugar que é um território Guarani. O Rio Grande do Sul é território Guarani”, destacou.

O chamado recebido pelos Mbya Guarani para a retomada do Mato do Júlio foi percebido pelo líder-espiritual Alexandre Kuaray. (Foto: Veronica Machado Nani)

Em sua intervenção, o também historiador Catafesto reiterou a afirmação do indígena. “Os nomes como Guaíba, Jacuí, Caí, são todos topônimos derivados do conhecimento indígena do passado que ficou como registro”. Ele ainda relatou a dificuldade de encontrar provas concretas que apontem o legado histórico dos indígenas no Estado. “Muitos sítios arqueológicos foram destruídos porque onde tinha uma aldeia Guarani se tornou um roçado arado pelo branco”, afirmou.

Catafesto, que atua como professor da UFRGS, relembrou outros movimentos de reapropriação de terras indígenas, a exemplo do caso do Morro do Osso, em Porto Alegre, ocupado por Kaingangs em 2004. Após dois anos de luta, os indígenas conseguiram a regularização para ocupar a área. “Não fosse os Kaingangs terem feito aquele movimento, muito provavelmente aquela área tinha se transformado em um condomínio privado de luxo, inacessível aos demais habitantes da cidade”, reforçou o professor.

Conforme publicação da Comissão de Cidadania e Direito Humanos da Assembleia Legislativa do RS (ALRS), intitulada “Coletivos Guarani no Rio Grande do Sul — Territorialidade, Interetnicidade, Sobreposições e Direitos Específicos”, a maior concentração populacional Guarani (Mbyá, Ava-Katu-Eté ou Nhandeva-Xiripa) ocorre em cidades ou região próximas de Porto Alegre, Missões e Litoral. Porém, Catafesto explica que a noção de cidadania não é algo que os indígenas almejam, pois remete ao conceito de cidade. O que os indígenas realmente almejam, explicou, é a “florestania” — conceito criado pelo historiador. A neologia apresenta uma relação com a terra e a sua “tekoá” (aldeia na linguagem Mbya Guarani). Ela passa longe do ideal de urbanização.

Regularização e motivações da retomada

O chamado recebido pelos Mbya Guarani para a retomada do Mato do Júlio foi percebido pelo líder-espiritual Alexandre Kuaray. Sendo a pessoa de mais idade na aldeia, ele já era conhecedor da terra e de sua importância para a comunidade.

Embaixo de lonas os Mbya Guarani começam a construção de sua aldeia, que chamam de “Tekoá Karanda Ty”. (Foto: Luiz Karai/Arquivo Pessoal)

A ocupação no Mato do Júlio é precária. Alexandre e a família de Luiz Karai acampam debaixo de uma lona com utensílios básicos, como panelas e pequenas mobílias, necessárias para a subsistência em um primeiro momento. Porém, eles seguem otimistas quanto à retomada. Alexandre já deu até nome à aldeia que estão construindo: “Tekoá Karanda ty”, inspirado em uma espécie de planta presente na vegetação local.

Durante a live, Luiz Karai comentou a motivação do grupo. “Retomamos porque aqui é o nosso lugar. A gente sabe que hoje é o capitalista que manda. Quanto maior o capital tem, se adona da maior parte da terra e isso não é bom para todo mundo”. Karai ainda fez referência às motivações religiosas por trás do movimento. “Nosso Deus, Nhanderu, não está se agradando disso, mas muita gente não sabe”, disse o indígena.

Em entrevista, Luiz apontou que ainda não há advogados envolvidos na retomada, para fins de legalização e regulamentação da área. Apesar de, oficialmente, não ter um advogado auxiliando a população indígena, órgãos como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Coletivo Salve o Mato do Júlio têm se pronunciado em defesa da legitimidade da ocupação. Há, também, um manifesto em apoio à retomada, organizado pelo Coletivo Sementes. Assinado por mais de 100 civis e pelo Curso Popular Emancipa, o documento circula nas redes e em grupos. Além disso, estão sendo arrecadadas doações de roupas, alimentos e utensílios de higiene.

Pulmão de Cachoeirinha

A área que circunscreve o Mato do Júlio possui uma quantidade enorme de vegetação intocada. Por isso, se estima que seja de mata nativa, de espécies da Mata Atlântica. Há anos existem mobilizações de diversos setores, tanto de movimentos voluntários, quanto de instituições, para preservar esse território. Esse é o caso da Associação de Preservação da Natureza — Vale do Gravataí (APN-VG), que define o local como uma reserva ecológica, sendo fundamental para a qualidade do ar da cidade, como recurso hídrico e também para o controle de espécies animais.

Além da vegetação intocada, o local é formado por um açude, muitas espécies animais e uma casa, estimada como uma das primeiras construções do Rio Grande do Sul. O imóvel foi construído em 1815 e a propriedade foi “presente” do Estado à João Baptista Soares da Silveira e Souza, nativo da Ilha dos Açores. O “terreno”, na época, correspondia a praticamente todo o território de Cachoeirinha.

Os herdeiros do Mato do Júlio, familiares de Baptista, possuem uma dívida com a Prefeitura, que propôs arrecadar parte do terreno em troca da quitação do débito. Desde 2019, existem conflitos entre os Poderes, os herdeiros e a sociedade, uma vez que a prefeitura gostaria de usufruir de parte do terreno para construir um acesso à Freeway. A outra parte se tornaria um parque de preservação. Os herdeiros poderiam vender o restante para a construção de um condomínio ou edifício.

A casa está em processo para ser tombada, mas precisaria de investimentos para não desabar. Há também uma senzala no local. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se manifestou inúmeras vezes sobre a importância histórica de manter o local preservado. Mas, muito além da casa, é necessário manter esse “pulmão” intocado na região metropolitana.

Orgãos como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Coletivo Salve o Mato do Júlio têm se pronunciado em defesa da legitimidade da ocupação. (Foto: Veronica Machado Nani)

Cachoeirinha se tornou município apenas em 1966. Antes fazia parte de Gravataí, que muito antes era conhecida como “Aldeia dos Anjos”, território habitado por inúmeras populações indígenas desde as guerras guaraníticas, segundo historiadores.

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