Iniciativas aprimoram medidas socioeducativas para a ressocialização dos jovens

Diante do aumento de menores em conflito com a lei, projetos como o Partiu Aula na Justiça, no Rio Grande do Sul, apresentam alternativas para reduzir índices de reincidência

Andressa Morais
Redação Beta
8 min readJun 10, 2022

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Segundo documento que analisou a Sinase, o número de adolescentes que foram medicados em 2019 com ansiolíticos e sedativos foi de 2.361, e com antidepressivos, 1.969. (Foto: Gian Luca/Canva)

De acordo com a Pesquisa do Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), de 2017, o último ano em que o documento foi publicado, mais de 26 mil adolescentes foram atendidos em medidas socioeducativas naquele ano. Devido à defasagem dos dados, em 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) criou um diagnóstico de implementação para analisar as medidas e diretrizes que, de fato, se efetivaram, além da razão pela qual alguns parâmetros não se concretizaram.

A nova pesquisa mostra um aumento nos números. Conforme o levantamento, o Sinase atendeu mais de 46 mil adolescentes em conflito com a lei em 2019. Dentro desse número, a taxa de reincidência é de 17,4%. Mas esses não são os únicos dados preocupantes. O documento mostra que entre os locais que precisam de reforma nas unidades que recebem os jovens infratores, os dormitórios e banheiros se destacam, seguidos das quadras esportivas, espaços coletivos de lazer, muros e fachadas.

Doutor e mestre em Sociologia, jornalista, vice-diretor da Escola Superior de Gestão e Controle do Tribunal de Contas do Estado do RS e professor do mestrado em Direitos Humanos da UniRitter, Marcos Rolim propôs e coordenou o projeto das Caravanas Nacionais de Direitos Humanos que percorreu o Brasil quando foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, em 2000.

Marcos já foi vereador, deputado estadual e federal pelo PT, mas deixou a política em 2002 para se dedicar à sociologia. (Foto: Ramon Moser)

O projeto tinha como objetivo fiscalizar locais como hospitais psiquiátricos, presídios, instituições do sistema Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem), postos de polícia, asilos de idosos e abrigos de crianças e adolescentes. O sociólogo relembra que as instituições de jovens se assemelhavam a um presídio, mas com a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente e a tentativa de alterar a visão doutrinária sobre a questão do ato infracional, foram criadas iniciativas e esforços para adaptar essas estruturas, como a criação da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase) no Rio Grande do Sul.

Hoje, se um jovem, menor de idade, comete uma infração, ele pode receber advertência por um juiz, obrigação de reparar o dano (que é cabível nas lesões patrimoniais), prestação de serviços à comunidade, internação (mas com liberdade assistida), inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional.

Apesar dos avanços, a situação ainda é precária e semelhante ao que Rolim encontrou há 22 anos, pois, segundo ele, a cultura de aprisionamento e de exclusão continuam, o que implica na execução das medidas socioeducativas. “Nem sempre elas têm um conteúdo socioeducativo, é muito comum que elas tenham o objetivo de repressão. Há uma incapacidade de uma política que seja capaz de tirar os jovens dessa dinâmica criminal”, comenta.

Rolim explica que, para que se tenham medidas efetivas, é preciso mais do que as instituições mudarem, pois elas não farão isso sozinhas, é necessário apoio de outras frentes. Ele traz como exemplo o Programa de Oportunidades e Direitos (POD), uma parceria do governo do RS, através da Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS), e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

O programa socioeducativo oferece ao adolescente que sai da Fase, após o cumprimento da medida, uma remuneração de meio salário mínimo por mês, desde que ele frequente algum curso de formação profissional, que era executado pelo Pão dos Pobres, mas hoje é feito pelo Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE).

Projeto busca combater o ciclo de reincidência

O Partiu Aula foi criado em 2013 pelo rapper e militante Rafael Diogo dos Santos, mais conhecido como Rafa Rafuagi, e tem as medidas socioeducativas como objetivo, além de atuar em escolas públicas e projetos sociais. Ele explica que o projeto se baseia no “fortalecimento do pensamento crítico, baseado nas ecologias dos saberes, da ótica das epistemologias do sul e, principalmente, a base, o coração e a espinha dorsal, que é a cultura hip-hop”.

Rafa Rafuagi é a maior referência do hip-hop gaúcho em atividade. (Foto: Bernardo Giesel)

O coordenador do Projeto Justiça Instantânea (JIN), Charles Maciel Bittencourt, conheceu o projeto de Rafuagi quando era juiz do 3º Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, que é responsável pela execução das medidas socioeducativas. Ele atendia as unidades da Fase. Juntos, eles fizeram um projeto semelhante ao Partiu Aula na instituição, com os internos que estavam cumprindo medidas.

Posteriormente, após várias reuniões, eles se uniram ao Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), Tribunal de Justiça (TJRS) e Ministério Público (MPRS). A partir dessa união o nome da iniciativa passou a ser Partiu Aula na Justiça, voltada para jovens que cometeram o primeiro delito e, segundo Rafuagi, muitos deles oriundos do tráfico de drogas. A ação não está prevista na lei, como a advertência, internação, mas existem possibilidades de ampliação das medidas socioeducativas para que os menores tenham novas oportunidades e não apenas aquela que o Estado apresenta.

“Dentro dessa construção nós queríamos dar a oportunidade aos adolescentes que, no início do envolvimento de um ato infracional, ao invés de ele receber uma medida com caráter retributivo, ele pudesse ter, através de uma medida pedagógica, a oportunidade de desenvolver senso crítico, de responsabilização, e avaliar sua caminhada”, explica Charles.

Dj Abú, Rafa Rafuagi e o juiz Charles Bittencourt participam da formatura dos jovens que finalizaram a primeira turma do projeto. (Foto: Juliano Verardi/DICOM-TJRS)

A diferença entre os projetos atual e o de 2013 é que o Partiu Aula é uma ação pontual e ocorre em uma oficina, em um determinado turno. Já o Partiu Aula na Justiça é uma ação contínua, com cinco encontros que se complementam.

As aulas são realizadas no Centro Integrado de Atendimento à Criança e Adolescente (Ciaca) todas as quintas-feiras, das 14h às 17h. Na penúltima aula os jovens têm uma saída de campo: vão até a Casa do Hip Hop, em Esteio. Na última, eles têm a formatura e finalizam com a apresentação da gravação de música e clipe que realizaram nos encontros. “É um momento único porque tu vê o reestabelecimento de relações com a família”, conta Charles.

Entre as ações, os jovens participam de diferentes oficinas que trabalham a partir do QuilomBOX, que é um kit feito pela Anistia Internacional do Brasil com o título “Jovem Negro Vivo”. Rafuagi também comenta que eles pensam sobre o que falta dentro das suas comunidades e como, juntos, podem encontrar soluções para melhorias.

O projeto Partiu Aula na Justiça já concluiu duas turmas. (Foto: Juliano Verardi/DICOM-TJRS)

Os jovens são entrevistados pela equipe técnica da JIN e, caso queiram, podem participar do projeto e obter remissão, que é avaliada. Quando eles recebem a remissão e são inclusos no Partiu Aula na Justiça, o processo é suspenso e, se concluírem sua participação, é extinto. Na conversa, a equipe da JIN entendem a situação escolar do adolescente, as atividades que está desenvolvendo e o histórico familiar. “O projeto ajuda em muito mais do que as consequências jurídicas”, constata o juiz.

Charles conta exemplos positivos. No começo dos encontros, fazem uma avaliação e perguntam para os jovens sobre alguns temas, como machismo, questões de gênero, racismo, trabalho infantil e violência doméstica. Depois, no final, questionam novamente e, nas últimas duas turmas, as respostas surpreenderam. “Veio uma grande surpresa de qualidade de desenvolvimento de noções de cidadania, de empatia e de respeito ao próximo”, relata.

Até a finalização desta matéria, o Partiu Aula na Justiça realizou as atividades com 20 jovens e teve 17 formandos. Há uma previsão de atender 120 adolescentes em 24 meses. É possível participar desde os 12 anos completos até os 21 anos incompletos, mas a média dos participantes varia entre 15 e 17 anos. A terceira turma iniciou dia 9 de junho.

Entraves para as melhorias

Rafuagi tem uma proposta para alterar a atual legislação sobre as medidas socioeducativas e explica que o custo de um jovem dentro do sistema socioeducativo é de R$ 24 mil por mês, ou seja, R$ 288 mil por ano. O custo de dois jovens por ano daria R$ 578 mil e, de acordo com o ativista, esse valor custearia uma Casa do Hip Hop como a de Esteio, onde eles atendem 4.000 jovens por ano.

“São R$ 4.896.000 a menos do Estado, que deveriam ir para o fomento de projetos no território de onde estes jovens vêm, pois o grande argumento de serem captados pelo crime é a falta de oportunidade e o que fazer no contraturno escolar, bem como dificuldades financeiras. O custo da Fase RS de hoje seria suficiente para manter 497 Casas do Hip Hop”, complementa.

Rafuagi apresentou a proposta em bancadas de debates para deputados e secretários estaduais, mas diz que nada foi feito.

Para Charles, os fatores que dificultam a existência de mais projetos como o Partiu Aula na Justiça são a questão financeira, o preconceito e a falta de articulação intersetorial. Ele também compartilha da mesma ideia de Rafuagi, pois acredita que economicamente se teria um custo menor, mas conseguiriam atender mais jovens, de forma efetiva, e complementa explicando que diminuiria a criminalidade. “A gente tem o sonho de tornar isso, de uma certa forma, uma política pública preventiva”, relata.

Em sua tese de dourado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), chamada A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema, Marcos Rolim estudou o perfil de jovens com mais de um homicídio, que estavam na Fase em Porto Alegre e algumas regiões do interior. Ele conversou com 17 adolescentes e, no final das entrevistas, pediu para cada um indicar um amigo de infância que tivesse certeza que não se envolveu com o crime, mas encontrou apenas 11 das indicações. Ambos os grupos eram de origem pobre.

Por ser uma pesquisa qualitativa, Rolim notou que tinha informações sugestivas, mas nada afirmativo com as evidências necessárias para estabelecer relações causais e, por isso, precisou ampliar para um método quantitativo. O sociólogo conversou com dois grupos de presos dentro do Presídio Central de Porto Alegre, um com pessoas condenadas por crime com violência e outro sem.

A partir dos resultados, o pesquisador concluiu que os jovens com maior disposição para a violência eram aqueles que tinham saído da escola no início da adolescência, entre 11 e 12 anos, e acabavam se socializando no grupo de traficantes, o que ele chama de “socialização perversa”.

Sobre o tratamento que os jovens recebiam, Rolim explica que não chegou a se aprofundar, mas diz que todos eles têm uma experiência de repressão, por parte da polícia, e dentro da prisão nunca tiveram oportunidade de ressocialização. “Acho que em boa parte deles haveria plena condição de recuperá-los com um programa mais efetivo”, reforça.

Ele também ressalta que a atual desigualdade social afeta, principalmente, os jovens das periferias.

“Em que país do mundo uma polícia, que é um órgão do Estado, faz uma operação policial em uma favela e desce com 25 cadáveres? Em que lugar do mundo isso acontece sem que haja uma crise? Mas por que não tem escândalo? Porque o perfil dos jovens é sempre o mesmo: jovens muito pobres, negros e que moram na periferia”, finaliza.

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