Julgamento do marco temporal é suspenso outra vez no Supremo

Processo que determinará política de demarcação de terras dos povos originários está empatado no STF em 1 a 1. Entenda mais

Mariana Necchi
Redação Beta
8 min readJun 9, 2022

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Manifestação indígena em frente ao STF, em agosto de 2021. (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado)

Por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, o julgamento do processo envolvendo o marco temporal de demarcação das terras indígenas foi retirado da pauta da Corte. O recurso estava previsto para ser discutido no plenário no dia 23 de junho, mas foi suspenso por “consenso entre os ministros”. Não há previsão de uma nova data.

Em 2021, o caso não foi julgado em outras duas ocasiões. A primeira, também em junho, quando o ministro Alexandre de Moraes retirou a discussão do plenário virtual e a enviou para o plenário físico. A segunda, em setembro, quando o mesmo Moraes pediu mais tempo de análise para o caso. Em outros momentos, foi adiada por falta de tempo para a leitura da pauta.

A Beta Redação relembra as principais etapas do julgamento e analisa as perspectivas de como a votação pode impactar e alterar as políticas territoriais para os povos originários.

Entenda o que está em discussão

O marco temporal é uma tese jurídica que defende uma alteração na política de demarcação do território indígena no Brasil. Segundo o argumento proposto, só poderia reivindicar direito sobre uma terra o povo indígena que já a estivesse ocupando no momento da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Prém, o texto do artigo 231 da Carta Magna, além de não determinar nenhuma data, afirma que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A discussão teve início em 2009, com um conflito entre indígenas e agricultores de arroz em Roraima no julgamento que ficou conhecido popularmente como o caso Raposa da Serra. Na época, os ministros do STF argumentaram a favor da causa indigenista com a alegação que eles já estavam ocupando a terra quando foi promulgada a Constituição.

Entretanto, se naquele caso a tese era favorável aos povos originários, o precedente ficou aberto para a argumentação ao contrário: indígenas que não pudessem reivindicar como suas as terras que não estivessem ocupando em 1988 perderiam o direito à demarcação do território.

No centro da discussão, a Advocacia Geral da União (AGU) entendeu, em 2017, que seria pertinente a tese do marco temporal. Nesse contexto, o caso dos indígenas Xokleng, Guarani e Kaingang da Terra Ibirama La-Laklãnõ, de Santa Catarina, ganhou notoriedade nacional: historicamente perseguidos por colonizadores, os remanescentes das etnias foram afastados de suas terras originais na primeira metade do século 20. Em 1996, finalmente, conseguiram a demarcação de 15 mil hectares— que, posteriormente, se expandiria para 37 mil hectares em 2003.

Porém, com o argumento do marco temporal, a área é reivindicada pela extinta Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma) e atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). Em 2019, o caso foi parar no STF — com o entendimento e o status de “repercussão geral” ao processo.

O que isso representa? Uma decisão do Supremo servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios de terras indígenas.

Em paralelo, tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 490, de 2007, que pretende tornar mais difícil a demarcação de terras indígenas — inclusive utilizando o argumento do marco temporal.

A linha do tempo do julgamento

O caso começou a ser julgado em plenário virtual do STF em 11 de junho de 2021, e contou com a mobilização nacional e a presença de mais de 6 mil indígenas na Esplanada dos Ministérios. O julgamento foi interrompido após o pedido de destaque feito pelo ministro Alexandre de Moraes, que transferiu a votação para o modelo presencial. Na ocasião, os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos.

Sessão plenária que discute direito de demarcação das terras indígenas é marcada por adiamentos. (Foto: Felippe Sampaio/STF)

No dia 30 de junho do mesmo ano, a sessão foi encerrada sem que o caso fosse julgado. Os ministros da Suprema Corte não conseguiram terminar de analisar os itens da pauta, e o presidente do STF, ministro Luiz Fux, remarcou o julgamento para 25 de agosto.

No dia anterior à continuação do julgamento, indígenas acampados em Brasília fizeram uma marcha até o Supremo para entregar simbolicamente uma carta aberta assinada por mais de 160 mil pessoas que são contrárias a tese do marco temporal.

O documento inicialmente contou com 301 assinaturas, entre artistas, juristas, acadêmicos e diversas personalidades nacionais e, depois de protocolada no STF, o manifesto ficou aberto para a coleta virtual de apoiadores. Apesar da mobilização, o STF adiou o julgamento após a leitura do relatório inicial.

A retomada se deu no dia 1 de setembro. Em um voto considerado histórico, o relator do processo, ministro Edson Fachin, se posicionou contra o marco temporal —onde declara que os direitos dos povos indígenas são fundamentais.

“Estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos, uma vez consistem em compromissos firmados pelo constituinte originário”, afirmou Fachin em seu voto.

Além disso, em uma extensa argumentação (confira a íntegra do voto de Fachin), o ministro foi enfático ao afirmar que a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado.

Após mais um adiamento, devido as manifestações de 7 de setembro de 2021 em Brasília, a continuação do julgamento aconteceu no dia 15 daquele mês. Com o voto do ministro Kassio Nunes Marques à favor da tese do marco temporal, alegou que a posse indígena sobre determinada terra deveria existir até 1988.

Para ele, se ocorresse o contrário,haveria “expansão ilimitada” para áreas dos povos originários “já incorporadas ao mercado imobiliário” no país. O voto foi considerado uma defesa de setores ruralistas e do agronegócio, alinhados aos interesses do Palácio do Planalto. A leitura se dá porque o ministro foi indicado à Corte pelo presidente Jair Bolsonaro para substituir Celso de Mello.

Com a votação empatada em 1 a 1, o ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo para analisar o caso e suspendeu o julgamento por prazo indefinido. Em 11 de outubro de 2021, Moraes devolveu os autos para a retomada do julgamento, que agora passou a depender novamente da disposição do presidente da Corte, Luiz Fux, de colocá-lo em pauta.

O magistrado liberou a ação em 11 de dezembro, e foi decidido o dia 23 de junho de 2022 como a data para a retomada do caso. No dia 2 junho de 2022, o julgamento foi, novamente, adiado. Dessa vez, por Luiz Fux, alegando que foi a partir de um “consenso entre os ministros”.

Até o momento, não há data definida para retomada. A decisão é considerada um favorecimento ao discurso do presidente Jair Bolsonaro, que tem se posicionado firmemente a favor do marco temporal e contra a demarcação de terras indígenas. Em mais de uma ocasião, Bolsonaro chegou a declarar que, a depender do resultado, não cumpriria a determinação do Supremo.

Para os indígenas, o cenário é de insegurança

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e assessor jurídico no Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIM), Marcos Kaingang avalia que a tese do marco temporal impacta diretamente na vivência dos povos indígenas no Brasil.

“Tudo passa pelo território. É a peça central para que as demais políticas públicas, como educação, saúde, saneamento básico, meio ambiente e afins, sejam implementadas para a nossa população”, define. “É de extrema vulnerabilidade, pois assim os fazendeiros, garimpeiros acham que podem atacar e invadir os territórios, e sentem legitimados para fazer isso”, completa.

Marcos salienta que o direito dos indígenas ao território foi incluído de forma simbólica nas diferentes legislações brasileiras — como a do Império e da Constituição de 1936—, ainda que historicamente negadas na prática. Foi na Constituinte de 1988 que, através de reivindicações e mobilização, que os direitos se ampliaram com o artigo 231 e 232.

Por outro lado, criou-se uma tensão com Propostas de Emenda Constitucional (PEC) e Projetos de Lei (MP) vinculadas ao setor do agronegócio. “Desde então, houve um aumento nessas questões. E isso, de alguma forma, descaracteriza e inviabiliza o que foi conquistado pelos povos ancestrais”, pontua.

Marcos Kaingang atua pelos direitos jurídicos dos povos indígenas. (Foto: Arquivo Pessoal/Marcos Kaingang)

Atualmente, apenas 13,8% de todas as terras do Brasil são reservadas aos povos originários. No país, há 725 terras indígenas em diferentes etapas do processo de demarcação, segundo o Instituto Socioambiental (ISA). “Em média, está levando de 20 a 30 anos para a conclusão de um processo demarcatório. São várias etapas administrativas e, em paralelo, há uma disputa econômica para reverter. O Judiciário é muito lento, e tem um desconhecimento para compreender as temáticas relacionadas aos povos indígenas”, destaca Marcos.

“Nas últimas décadas, não conseguimos avançar. Os governos de Lula e Dilma tomaram decisões políticas de não aprofundar a demarcação de terras indígenas — apenas apaziguaram. Para ter base de governância no Federativo, é preciso ter uma base aliada no Congresso e a bancada do agronegócio é enorme. Eles preferem não comprar a briga”, expressa Marcos Kaingang

Ao comparar com o governo de Jair Bolsonaro, ele entende que é marcado pelo retrocesso. Durante seu discurso de posse, o presidente afirmou que “não haveria nenhum centímetro a mais de terras indígenas demarcadas sob sua liderança”. E, em seu primeiro ato como presidente, editou a Medida Provisória nº 886/2019 transferindo a identificação e demarcação de terras indígenas para competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Até então, o processo era dado como responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Funai, com a configuração do governo atual, é alvo de críticas por não ter êxito em contemplar as demandas indigenistas. “Eles alegam que não há recursos humanos ou previsão orçamentária para isso. As populações que estão minimamente avançadas com os seus direitos se deparam com o risco de retroagir e voltar a estaca zero”, declara.

Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da região Sul, define a tese como perversa.

“Caso seja validada, mais da metade dos povos indígenas serão afetados diretamente porque a grande maioria não estava com a pose da sua terra em 1988. Ao longo período de colonização, eles foram expulsos de forma violenta de seus territórios e tiveram que se esconder. É uma tese política e nefasta”, resume.

As interpretações de Marcos e Roberto são opostas em relação aos adiamentos frequentes do julgamento. Para Marcos, há um aspecto positivo na estratégia adotada pelo Supremo. “Por ser um ano eleitoral, é uma forma de esperar uma possível troca no governo. Na nossa avaliação, é uma maneira dos ministros não enfrentarem as posições explícitas de Bolsonaro e, principalmente, para não inflamar a base eleitoral bolsonarista no Senado e na Câmara contra o próprio STF”, contextualiza.

Já Roberto acredita que esse seria o momento ideal para a decisão. “Para mim, é muito clara a posição dos ministros que estarão votando de estar em contraponto ao Bolsonaro. Acredito que tenha se criado um ambiente fértil para as pautas indígenas”, pondera.

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