Kaingangs querem fixar raízes em terras onde viveram seus antepassados

Choque cultural e falta de infraestrutura afastam o povo de realizar seu sonho

Clarice Almeida
Redação Beta
6 min readApr 13, 2022

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Durante dois anos o cacique Eliseu Claudino e seu povo habitaram uma área de terras no bairro Centenário, em Montenegro. (Foto: Marielle Gautério/Arquivo pessoal).

Montenegro é uma cidade localizada na região metropolitana de Porto Alegre, RS, que conta com cerca de 67 mil habitantes, segundo o IBGE. O município é conhecido como Cidade das Artes, título conquistado após uma reportagem da revista Veja, publicada há mais de 30 anos, que destacou instituições como a Fundação Municipal de Artes (Fundarte) — polo que fomenta a cultura e a arte na região. Os moradores mais antigos orgulham-se em lembrar que o local já foi a capital nacional do tanino — substância orgânica, encontrada na parte externa das cascas de algumas árvores, usada para diferentes processos, entre eles no combate a predadores e pragas nas produções de uva. Do passado, a comunidade local também gosta de lembrar que lá viveram povos indígenas, os Ibiraiaras e Kaingangs. A referência de que os indígenas fizeram parte da história pode ser vista nas fachadas de estabelecimentos comerciais, hotel e até mesmo em um dos jornais da cidade, o Ibiá. Contudo, a boa relação entre a comunidade e os nativos parece ter ficado apenas na lembrança.

A chegada de um grupo Kaingang ao município, em 2018, deu início a um conflito entre os descendentes alemães e os indígenas. Até aquele ano, os kaingangs deslocavam-se de assentamentos de cidades como Nonoai, Redentora e Carazinho — na região norte do Estado — para vender seus trabalhos de artesanato em Montenegro. O grupo tem carinho especial pela cidade, pois sabe que suas raízes foram plantadas ali. No final daquele ano, 33 famílias optaram em não retornar para suas aldeias. Eles acreditavam que em Montenegro poderiam ter melhores oportunidades de vida e que estariam recuperando um espaço que já foi de seu povo.

“Todos nós sabemos que os índios não são invasores, invasores são aqueles que vieram e tomaram a terra dos índios…”. A frase é do cacique Eliseu Claudino líder do grupo Kaingang. O que eles não esperavam é que seus novos vizinhos não fossem simpáticos a ideia da construção de uma aldeia em frente aos seus imóveis.

A família de João e Marlize se reúne para vender artesanato de Páscoa no Centro de Montenegro

A primeira área ocupada pelos kaingangs era de propriedade particular, às margens da RSC-287, no bairro Cinco de Maio. Após um processo de reintegração de posse, a aldeia passou para um terreno do Estado, localizado no bairro Centenário. A partir de então, o choque cultural gerou atritos entre os vizinhos e discussões com o poder público municipal.

O início do conflito

Em outubro de 2019, os cidadãos mais insatisfeitos com a presença dos novos moradores criaram um abaixo-assinado pedindo a saída dos kaingangs do bairro. O documento foi entregue à Câmara de Vereadores do Município. Representantes do Legislativo, Executivo, moradores, Funai e indígenas passaram a se reunir com frequência em busca de uma solução que agradasse a todos. Os kaingangs demonstravam interesse em ficar no local ocupado, porém as outras partes se mostravam contrárias. Enquanto a situação não era resolvida, mais famílias chegaram ao local, totalizando 74 pessoas instaladas na área.

Para o cacique, ocupar esse espaço representava manter as tradições de seu povo. “Os nossos antepassados sempre nos falavam que os índios passavam aqui, então nós temos a nossa raiz em Montenegro. Os meus filhos e netos nunca irão esquecer da nossa raiz, por que eu sempre vou lembrar isso a eles”. O historiador Flávio Patrício Vargas, afirma a colocação feita pelo cacique Eliseu de que “as raízes de seu povo estão enterradas” na cidade. “Montenegro foi habitado pelos Ibiraiaras e depois deles, pelos Kaingangs. Os índígenas mostraram aos colonizadores alemães onde havia terra fértil e os ensinaram a plantar. Eles não eram inimigos, como muitos relatam, os colonos aprenderam muito com esses povos”, diz o pesquisador.

As barracas de lona da aldeia passaram a dar lugar a casas de madeira, construídas com material doado pela Funai. Contudo, a falta de infraestrutura e o calor das discussões com os moradores do entorno fizeram com que os líderes kaingangs passassem a cogitar a possibilidade de mudança. Em janeiro de 2021 foi restabelecido diálogo com os governantes da cidade. Preocupados com o futuro de sua comunidade, os indígenas aceitaram ir para outro local.

A mudança para outra cidade

Segundo a Administração Municipal de Montenegro, a Prefeitura e órgãos do governo do Estado, buscaram um espaço mais adequado para a alocação dos indígenas. Foi levantada a possibilidade de destinar um pedaço da área ocupado pelo Centro de Treinamento de Agricultores (Cetam) para a fixação dos kaingangs. Os 93 hectares localizados no bairro Zootecnia pertencem ao Estado, mas quando a direção do Cetam tomou conhecimento, se manifestou contrária, alegando que todo o espaço estava em uso. Diante da situação, foi sugerida, pelo próprio Estado, a transferência para o município de Capela de Santana.

Depois de dois anos de muita conversa com os órgãos públicos, e nenhuma solução, em outubro de 2021 os kaingangs chegaram a um consenso e desistiram de construir sua vila em Montenegro. “Houve muita ameaça, então resolvemos sair, porque não estamos para conflito”, relata Eliseu. O gerente de Contratos e Convênios da Prefeitura, Sílvio Kaél, aponta algumas situações que motivavam os conflitos.“Os índios têm seus costumes próprios, que são respeitados. Entretanto, a convivência em área próxima com outras pessoas provocava situações de incompatibilidade. Eles acendiam fogo, gerando muita fumaça, e faziam suas necessidades em locais impróprios. Também abatiam animais e não tinham nenhuma infraestrutura”, diz o representante do Executivo.

Kaél acredita que a transferência foi a melhor solução para os conflitos, diante do risco de evoluírem para a violência física. Para ele, o episódio deve servir de lição. “Para manter seus costumes e a sua cultura, os índios receberam grandes extensões de terras e lá devem permanecer, com a assistência do governo”, opina. O gerente de Contratos e Convênios diz ainda que as prefeituras não podem assumir mais esse ônus social e nem indicar áreas públicas, dentro do perímetro urbano, para acomodar aqueles que não querem ficar nas reservas.

Após a decisão dos kaingangs de deixar Montenegro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) de Porto Alegre se manifestou, através de entrevista concedida ao Jornal Ibiá, de Montenegro. Segundo noticiado, a Funai informou que os Kaingangs tinham conhecimento que a área no bairro Centenário era provisória, e que o local em Capela de Santana foi oferecido para que a aldeia se fixe definitivamente.

Atualmente, o grupo Kaingang está instalado no Centro de Treinamento da Mecanização da Lavoura (CTML). O cacique acredita que a área será doada para seu povo. Contatada, a dona do local — a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) — não informou se há previsão de repasse das terras para o povo indígena.

Desejo de voltar às raízes

Para o cacique e seu povo, essa história não acabará assim. “Saímos da nossa terra (Montenegro), mas a gente não esquece a nossa raiz. Um dia a gente vai voltar pra nossa raiz”, garante o líder Kaingang. Alguns integrantes do grupo voltaram a visitar a cidade, mas, por enquanto, somente a trabalho. Entre eles encontram-se João Mauro Sales, de 43, e a cunhada do cacique, Marlize da Rosa, de 40 anos.

Para João e Marlize seus ancestrais semearam frutos em solo montenegrino, que hoje mereceriam ser colhidos de forma amistosa. Neste mês de abril, eles retornaram com o objetivo de vender o artesanato produzido para a Páscoa. Em frente aos pontos do comércio, acompanhados dos dois filhos, de 8 e 11 anos de idade, eles expõem cestos, feixes de macela e cartazes solicitando doações espontâneas.

O clima entre indígenas e a comunidade local está melhor, afirma João, mas eles preferem não ficar muito tempo na cidade para evitar que o clima de paz seja interrompido. Quando o sol se põe, ele e a família retornam para Capela de Santana. “Quando a gente estava morando em Montenegro o povo reclamava, mas agora estão nos tratando normal”, observa o chefe da família.

Para o kaingang, Montenegro seria um ótimo lugar para viver e ver seus filhos crescerem, mas, diante da rejeição da comunidade local, a intenção, por enquanto, é só aparecer no município a trabalho. “Deveriam nos valorizar mais. Eles têm que entender que estamos atrás de nossos recursos, para dar de comer pra nossos filhos”, desabafa João. “Eu gosto de Montenegro. Seria muito bom pra nós ficar aqui. Em Capela é bom, mas é muito longe da cidade”, completa Marlize.

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