La Negra e a dança que cura

Uma história de superação da bailarina gaúcha

Daniela Cristófoli
Redação Beta
6 min readJun 26, 2020

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Mostra de alunos La Negra Ana Medeiros 2017 — Casino de Sevilla (Foto: Reprodução/La Negra)

Enquanto prepara uma xícara de café, Ana Medeiros conta sua história e fala sobre projetos futuros. La Negra, como Ana é conhecida dentro do meio artístico, tem a dança flamenca pulsando nas veias. Aos três anos, já desejava ser “balalina”. Aos 5, preparava coreografias de ballet para convencer o pai a pagar aulas de dança.

Multiartista, como se descreve, ela vê no palco um modo de expressão, libertação e empoderamento. Em entrevista on-line à Beta Redação, La Negra relembra sua trajetória.

Em que momento a pequena Ana decidiu ser bailarina?

Aos 3 anos de idade, eu já dizia que queria ser “balalina”. Lá pelos meus 5 anos, eu decidi que queria fazer aulas de ballet clássico, que era minha única referencia de dança. Na época, meu pai estava iniciando na carreira de engenheiro e acordava às 6 horas da manhã. Eu, todos os dias, neste horário, enquanto ele fazia a barba, apresentava uma coreografia pra ele. Tinha 5 minutos, não podia repetir repertório e escolhia até o figurino. Depois de um ano com ele me “cozinhando”, resolveu me colocar nas tão sonhadas aulas.

Nos meus 8 anos de idade, meus pais se separaram e minha mãe, que sofria de asma, resolveu ir para um clima mais ameno, então nos mudamos para Maceió. Foi aí que parei de fazer ballet. Depois de um ano, voltamos para Porto Alegre. Minha mãe, então, teve uma crise horrível de asma e morreu nos meus braços. Fiquei passando a infância de casa em casa, enquanto meu pai estava em uma dificuldade financeira. A dança naquele momento virou algo supérfluo.

Quando foi que a dança flamenca te seduziu?

Com 12 anos, comecei a trabalhar e resolvi aprender um instrumento musical. Foi então que comprei uma bateria — que carinhosamente apelidei de Bactéria. Ela era horrível. Entrando para o mundo da música quando já estava com 15 anos, comecei a namorar um gatinho mais velho que tinha estúdio de gravação. Um dia, indo para o estúdio dele, comecei a ouvir as castanholas. Ouvindo aquilo, me lembrei das minha raízes, e percebi que “eu vim de algum lugar”— coisa que tinha ficado perdido após o falecimento da minha mãe e da minha avó, afinal, a família materna era do Sul da Espanha e tanto minha mãe quanto minha avó tinham uma ligação forte com o flamenco.

Eu resolvi entrar nesta escola de dança, a Cadica. Perguntei o valor da aula e percebi ali que nunca teria condições financeiras de estudar flamenco. Fui na minha avó paterna e pedi ajuda. Ela disse que pagaria por dois meses de aula. Eu aceitei, e ali aproveitei pra aprender tudo que podia. Findando os dois meses, eu propus para a Cadica que ajudaria na limpeza em troca de uma bolsa de estudos. Ela concordou, pois viu que eu tinha futuro na dança. Ali começou minha relação com o flamenco e, desde então, nunca paguei mais uma aula de dança na minha vida.

Segui dançando com a Cadica até ela iniciar o projeto de fusão com a música gaúcha, mas eu queria mesmo era a dança flamenca, então fui aprender a dançar com Andrea Del Puerto, que veio a falecer em 2007. De 2007 a 2017, eu segui um projeto de dança com algumas parceiras. Em 2017, resolvi seguir carreira solo como bailarina.

Vulcão — La Negra (Vídeo Reprodução Youtube)

Parte da tua formação artística se deu fora do Brasil, certo?

Em 2010, em fui para Espanha e participei do curso Veranos Flamencos, na Escola Amor de Dios. Tinha dançarinas de todos os lugares do mundo. Eram 8 horas diárias de dança. Em cada aula, eu colocava a energia de como se estivesse no palco para 1.500 pessoas, e o resultado foi incrível. Acabei sendo a primeira brasileira a ganhar uma bolsa de estudos na escola. Voltei para lá em 2011 para estudar e também dei aulas em um Centro Cultural. Desde então, eu comecei a usar a minha experiência para recuperar a essência selvagem do flamenco para os palcos.

Me conte sobre tuas experiências sendo uma mulher negra e latina na dança Flamenca.

Eu acredito muito que tu dança o que tu é. Tu pode enganar numa conversa, na vida, mas quando tu pisa num palco e leva a sério o que está fazendo, mostra tua verdadeira essência. No desenvolver da minha carreira, eu sofri muito preconceito por ser uma negra que dança flamenco. Em 2010, por exemplo, quando estava na Espanha, mandei fazer um sapato para dançar. Lá, colocaram um detalhe em branco nele. Quando voltei para o Brasil, uma pessoa me falou que aquilo era coisa de negro e que eu estava imitando os sapatos da marca Adidas. O pior é que para me esconder do preconceito, comprei aquela ideia, repetia isso para todo mundo e ainda ria junto, me faltava consciência e autoestima.

Ouvi pessoas no público falarem “E pode uma pessoa assim, como você, dançar flamenco?” ou “Até que pra uma pessoa com essa tua corzinha, tu dança bem”. Vendo tudo isso hoje, eu percebo que só consegui chegar onde eu cheguei pois, desde a época da dança com meu pai até a Cadica, eu tive um ambiente acolhedor que nunca me deixou pensar que eu não podia dançar, mesmo com todas as dificuldades e contratempos que vivi.

Em anos mais recentes, teve alguma performance sua que lhe marcou profundamente?

Em 2018, eu fiz o espetáculo No Me Callas. Ele foi um divisor de águas para mim. Nele, apresentávamos aquilo que não queríamos que calassem em nossas vidas. Fiz com minhas alunas um ensaio fotográfico em preto e branco que seria exposto no cartaz do espetáculo. Quando chegou minha vez de posar, o fotógrafo me instigou a soltar meu cabelo. Quando vi a foto, me assustei. Eu estava selvagem, agressiva, apresentava ali o que eu sentia que era e não o que eu estava acostumada a mostrar para ser aceita. Desde então, minha presença como artista mudou. Assumi minha identidade, minha essência. Neste espetáculo, eu dancei flamenco de black power e lotou o teatro. Foi um sucesso e mudou minha forma de viver a vida.

Cartaz do espetáculo “No Me Callas” (Foto: Reprodução/La Negra)

Quais os processos criativos e práticos quando se pensa em criar uma coreografia ou montar um espetáculo de dança?

Normalmente, os espetáculos nas escolas são coisas mais tradicionais. Eu comecei a fazer questionamentos, trazer a realidade, o cotidiano, montar em conjunto com meus alunos para que as histórias deles sejam contadas também tanto no espetáculo, quanto no figurino. É um grande trabalho, mas o espetáculo não é meu, é deles. Já na carreira solo, eu tenho muitas coisas de minha autoria e de alguns parceiros. Sou formada em Arquitetura e depois de alguns anos trabalhando com isso, mudei de foco e abri um atelier para fazer roupas de flamenco. Mesmo sem o atelier hoje, o processo de criação dos figurinos ainda passa por mim.

Danza Ritual del Fuego La Negra e Violões de Porto (Vídeo: Reprodução Youtube)

Hoje, como está tua rotina de trabalho durante a pandemia?

Eu percebi que não posso ser a mesma professora que sou dentro da sala de aula. Nem ao apresentar uma coreografia em vídeo posso pensar ela do mesmo modo que antes. As coisas estão mudando. Preciso inovar, preciso pensar em enquadramento, espaço e até no barulho, afinal, dançar flamenco batendo o pé no chão e com as castanholas dentro da sala de um apartamento pode gerar alguns incômodos para os vizinhos. O desafio é grande.

Com os meus alunos, estou preparando um espetáculo pós-pandemia. Já como artista solo, estou em processo de criação para algo inovador no cenário artístico gaúcho e que em breve será divulgado. No momento, não posso dar mais detalhes. Além disso, estou em coletivo com os alunos fazendo algumas intervenções online nas redes sociais.

Para você, o que a dança é ou representa?

Ela é cura. Uma janela para expressar minha essência, sem nenhum véu me escondendo. Ela é comunicação, solidariedade, união e compromisso. Eu me curei através da dança em vários aspectos e sigo me curando.

Arte na quarentena: De onde vem a inspiração para o seu traje flamenco? (reprodução Instagram @lanegraanamedeiros)

O trabalho da bailaria La Negra está disponível no seu canal do YouTube e no site lanegra.com.br.

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