Lavar roupas contamina as águas dos rios

Pesquisa mostra que problema no Rio dos Sinos afeta desde a nascente até as torneiras

Arthur Menezes
Redação Beta
8 min readSep 3, 2019

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Arthur Menezes e Nagane Frey

Pesquisadores realizam coleta de indivíduos aquáticos na cabeceira do Rio dos Sinos. (Foto: Arquivo Pessoal/Amanda Bauer)

Uma pessoa recolhe suas roupas sujas e as coloca em um cesto. Minutos depois, leva essas peças, e outras que já havia recolhido, para a máquina de lavar. Utiliza-se de água, sabão e amaciante. A máquina faz o seu serviço. As roupas de poliéster saem limpas e a sujeira vai embora. Essa é a rotina diária de uma pessoa qualquer que, sem saber, ajuda a contaminar um ecossistema.

Se você não faz ideia de como isso pode estar atentando contra diversas espécies, mesmo com algo tão comum, é porque provavelmente também coopere com essa mesma poluição, mesmo sem saber. Trata-se da disseminação de microplásticos na rede de água e esgoto, a partir da lavagem de roupas feitas com poliéster e assemelhados. Esse material, que se solta da vestimenta no dia a dia e segue invisível a olho nu, pode ser perigoso às mais diversas formas de vida quando chega aos rios e demais porções de água.

O plástico, que em tamanho perceptível ao humano está em todos os lugares, é praticamente onipresente quando considerado nas escalas micro e nano. Nesse sentido, o problema do descarte irregular, que tem sensibilizado a opinião pública e gerou inclusive legislação proibitiva com relação aos canudos em diversos lugares do mundo, torna-se mais complexo e abrangente.

Microplásticos

Por definição, os microplásticos são polímeros artificiais menores que 5 milímetros e maiores que 5 microns. Polímeros são, na acepção da palavra, “muitas partes”, ou seja, um agrupamento de muitas moléculas. E, se convertermos as duas medidas citadas para centímetros (uma unidade de medida mais usual à maioria), teremos algo entre 0,5 e 0,0005 — o que significa bem pequeno mesmo.

Fibra em escala ampliada. (Foto: Arquivo Pessoal/Amanda Bauer)

Os microplásticos são classificados como primários e secundários, dependendo da origem. Primários são aqueles que já são produzidos pequenos, como por exemplo os esfoliantes de rosto. Os microplásticos secundários são os produzidos por meio de fragmentação de um plástico maior, como a degradação de uma sacola exposta às sucessivas batidas das ondas. Assim, a contaminação dos oceanos e da água doce com plásticos ocorre em escala global. Estudos recentes mostram a presença de microplástico em quase todos os corpos de água, na água potável que abastece as residências e, mesmo, na água mineral engarrafada.

Microplásticos são perigosos ao ecossistema.

“Sabe-se que os plásticos são potenciais vetores de produtos químicos como agrotóxicos, o que faz o problema ser maior ainda para o ecossistema”, alerta Amanda Letícia Bauer, acadêmica de biologia na Unisinos e bolsista da FAPERGS na área de Ecologia aquática, voltada para peixes. Ainda de acordo com a estudante, os plásticos em tamanho pequeno podem ser ingeridos por um número grande de espécies, inclusive pelos seres humanos.

No início de agosto, Amanda, juntamente dos também alunos de Iniciação Científica Fernanda Silva e Victor Castro de Souza, do Laboratório de Ecologia de Peixes (LEP), participou do XVII Congresso Brasileiro de Limnologia, em Florianópolis. Na ocasião, o pôster da estudante, intitulado “Longe das áreas urbanas: Microplástico em peixes nas cabeceiras do Rio dos Sinos”, foi premiado. Isso porque, no ambiente acadêmico, vale comemorar a identificação de um problema que pode ser tão sério. Mas, em geral, os apontamentos do estudo assustam.

As pesquisas

A pesquisa realizada por Amanda, em conjunto com o LEP, busca entender se a contaminação por plásticos ocorre somente nas áreas mais urbanizadas ou também impacta as áreas rurais. Para isso, foram utilizados como análise os conteúdos estomacais dos peixes, no intuito de verificar se existia a presença de plástico em áreas de cabeceira do Rio dos Sinos com pouca densidade de edificações.

Amanda e Marlon conduziram o estudo sobre a presença de microplásticos no Rio dos Sinos. (Foto: Nagane Frey/Beta Redação)

“A hipótese era de que não encontraríamos praticamente nada, pois a cabeceira do Rio dos Sinos quase não tem moradores. Mas a gente encontrou 151 fibras, o que é um número muito grande para a quantidade de população que tem no entorno”, conta Amanda, relembrando o espanto dos pesquisadores com o resultado das análises.

A pesquisa analisou 112 peixes, identificando que 36 estavam contaminados — os quais somaram juntos o total de 151 fibras microplásticas identificadas. De acordo com o estudo, as fibras são oriundas da água proveniente da lavagem de roupa e despejada nos rios, o que acentua os problemas de saneamento básico.

A pesquisa de Amanda situa-se em um campo ainda pouco explorado no Brasil, onde o nível da contaminação dos mananciais hídricos com plástico ainda não é conhecido profundamente. Segundo o doutor em Biologia Uwe Horst Schulz, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pode-se esperar altas concentrações de microplásticos na água bruta e na biota (conjunto da fauna e da flora de uma região), considerando a baixa eficiência dos sistemas de tratamento de esgoto.

O professor, que trabalha com ecologia aquática há mais de 30 anos, também promove estudos que objetivam diagnosticar a presença de partículas de plástico na água do Rio dos Sinos, no sedimento, no intestino e na carne de peixes. “A pesquisa é desafiadora por ser uma área nova, ainda cheia de problemas operacionais. Mas, para a universidade, é muito importante, pois pode impactar a saúde pública”, avalia.

Cenário e impactos

As pesquisas sugerem que o microplástico é, de fato, onipresente, pois é encontrado em áreas com pouca densidade populacional. Porém, mais do que isso, o estudo liderado por Amanda mostra que a distância entre o ponto de coleta e as residências tem uma influência maior do que a quantidade total de residências na área acumulada da microbacia. O que reforça que uma origem provável das fibras seja, em boa medida, a lavagem de roupas em casas que despejam pelo menos parte do esgoto diretamente na rede hídrica.

O acadêmico em biologia Marlon Ferraz da Rosa é taxativo ao tratar da gravidade da incidência de plástico em nosso cotidiano. “Do século XIX para cá, a presença do plástico só aumenta. Ele está em todas as partes. A gente literalmente respira plástico. Há cerca de treze partículas por metro cúbico”, revela. Técnico de Apoio ao Ensino e Pesquisa na Unisinos no laboratório LEP, ele define: “Atualmente, essa utilização é cultural”.

Mas essa cultura pode ser questionada. No caso dos peixes, há fortes indícios dos efeitos da contaminação causada pelo microplástico nos animais. “Micro e nano fragmentos podem passar pela cadeia alimentar, podem ser incorporados em tecido de peixes, como em músculo e cérebro, e causar alterações comportamentais”, explica Schulz. E os problemas não param nos peixes. “Há indícios de que uma tartaruga que come plásticos tem a sensação de saciedade. Contudo, como essa sensação é falsa, isso pode levá-la a deixar de ingerir os nutrientes necessários à sua sobrevivência”, destaca Amanda.

Pode-se dizer que o plástico, de modo geral, vem sendo apontado como um grande problema às vidas aquáticas. Mas, quando temos escalas menores de plástico, temos alcance maior dos problemas. Na comparação de Amanda:

“Diferente de uma garrafa, que só um ser vivo grande vai conseguir comer, o microplástico pode ser engolido por um plâncton, mas também por uma baleia filtradora. É uma gama enorme de indivíduos impactados”.

Com essa gama tão ampliada de seres impactados pelo microplástico, obviamente o perigo à humanidade se torna um ponto a ser discutido. Em relação aos efeitos sobre a saúde humana, especificamente, os entrevistados da pesquisa são unânimes em admitir que eles ainda são desconhecidos. Ainda assim, as inferências levam a crer que os humanos podem, sim, sofrer sérias consequências em razão das contaminações. O plástico é um potencial vetor de metais pesados e solventes e se dispersa facilmente nos ecossistemas terrestres e aquáticos.

“Estudos comprovam que o plástico é um potencial vetor para carregar produtos químicos. Assim, pode ser que um plástico acabe ‘sugando’ um agrotóxico, por exemplo. E quando consumirmos sem querer esse agrotóxico, pode ser que no momento da digestão isso seja liberado em nosso corpo”, reflete Amanda.

O professor Schulz ressalta que “a situação é tão grave que a União Europeia elaborou propostas para banir plásticos de uso único”. Mas o professor pondera que, diferente dos estudos com os peixes, em que há estudos para identificar os problemas causados às espécies, “no caso do ser-humano a gente só vai saber, provavelmente, em dez ou quinze anos”.

Amanda concorda com o professor, mas acrescenta que “a dispersão de plásticos também pode acarretar danos à saúde humana. Outros trabalhos mostram o potencial de bioacumulação nas cadeias alimentares. Peixes contaminados podem ser consumidos e a água dos arroios ser usada para o abastecimento doméstico”. Sobre o consumo dos peixes, ela acrescenta que esses animais têm intestinos e estômagos muito diferentes. “A gente ainda não sabe se a partícula permanece ou se é excretada do organismo”, explica.

Na iminência de esses materiais serem prejudiciais à saúde humana, torna-se ainda mais assustadora a identificação feita pelo estudo. Ele indica que parte das fibras e das partículas encontradas no Rio dos Sinos são também identificadas nas casas das pessoas, pois a água entregue pelas companhias de água vêm do Rio dos Sinos e o tratamento convencional não remove essas partículas em sua totalidade.

Pesquisa realizada no Rio dos Sinos apontou grande concentração de microplásticos. (Foto: Arquivo pessoal/Amanda Bauer)

Possibilidades

Marlon Rosa se dá quase por vencido ao falar do cenário de descarte de plástico, mas elenca possibilidades. “É praticamente irreversível o que nós temos hoje. Mas a saída seria mudar a cultura, para consumir menos plástico. As garrafas retornáveis e os pontos de coleta para o plástico são alternativas”, sugere o acadêmico.

Pensando em saídas para a atual situação, Amanda concorda com a sugestão do colega. “Primeiramente, seria necessário parar de consumir plástico descartável. Além disso, atacar o descarte indevido, que também é um grande problema”. Ela, porém, vai além e estabelece uma abordagem mais contundente.

“Existe a possibilidade da remoção de microplástico. Hoje a gente consegue fazer a filtragem e retirar esses microplásticos em laboratório. Contudo, isso ocorre sob filtração com bomba de vácuo. São vários processos para eliminar a contaminação. E isso, hoje, não seria possível colocar dentro de uma casa, por exemplo”, salienta. Além disso, há o tratamento de água e de esgoto, que pode reter grande parte das partículas, mas que não retém todas.

Agora você já consegue se imaginar deixando de contribuir para essa contaminação. Da mesma forma, a nossa personagem inicial já sabe o que fazer. Ela recolhe suas roupas sujas e as coloca em um cesto. Minutos depois, leva essas peças e outras que já havia recolhido, para a máquina de lavar. Utiliza-se de água, sabão e amaciante. A máquina faz o seu serviço. As roupas saem limpas e a sujeira vai embora. E, dessa vez, não há agressão ao ecossistema, pois as roupas são de algodão e o esgoto da casa é tratado devidamente.

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