Legislação garante direitos, mas não espaço das mães no mercado de trabalho

A falta de estabilidade, apesar das leis, é o retrato de um país ainda marcado pelo machismo e desigualdades

Cristina Bieger
Redação Beta
10 min readJun 23, 2022

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A gestação é o momento das maiores mudanças na vida de uma família (Foto: Canva/Arte: Cristina Bieger/Beta Redação)

O privilégio de gerar uma vida é feminino. A média de 40 semanas de gestação é dividida em etapas, e cada uma delas envolve cuidados e características próprias do desenvolvimento da mãe e do bebê. É um período de mudanças físicas, hormonais e psicológicas tanto da mulher quanto da família.

Apesar de ser a mulher a responsável por gestar, o pai acompanha “do lado de fora”, dando o suporte necessário e criando laços afetivos com o bebê, ainda antes do nascimento. Mesmo assim, a sociedade atual tem um jeito diferente de lidar com a situação, como se a responsabilidade sobre a criança fosse somente da mãe, revelando o mundo machista no qual ainda vivemos, principalmente em termos de Brasil.

Desse modo, o que percebemos em relação ao mercado de trabalho são empregadores que optam por demitir uma mãe que se afasta para cuidar do filho ao invés de um homem, que não possui as mesmas questões.

Para contrapor esses preconceitos, a Beta Redação conversou com especialistas para entender os direitos sociais das gestantes e as alternativas para tornarmos o ambiente de trabalho um espaço mais igualitário.

Por que contratar mais mulheres?

Reduzir as desigualdades e proporcionar às mulheres condições iguais às dos homens ainda é um grande desafio. O estudo Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo, realizado em 2017 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), indicou que o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho poderia injetar R$ 382 bilhões na economia brasileira, o que representaria um aumento no PIB de 3,3%.

As mulheres são parte importante do que chamamos de diversidade, isso no sentido de trazerem um ponto de vista diferente, um novo jeito de atuar no ambiente de trabalho, novas ideias e perspectivas.

Regina Carla Madalozzo, economista associada ao Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam), explica que “quando você tem mulheres e homens trabalhando juntos, geralmente faz com que se tenha mais criatividade e diminuição do risco”. Segundo ela, existem decisões a serem tomadas nas empresas que precisam de uma mulher. “Na hora em que você tem mulheres e homens participando juntos, você tem outro jeito de olhar para cada questão”, complementa.

A participação conjunta de homens e mulheres nas tomadas de decisão evita prejuízos de tempo e dinheiro (Arte: Canva/Cristina Bieger/Beta Redação)

Para a advogada Caroline Seidl, priorizar a contratação de mulheres pode reduzir a rotatividade de profissionais e resultar em contratos de trabalho com prazos mais longos. “A vantagem é que as empresas podem apostar na capacitação dessas empregadas em vez de contratar novos funcionários para novas tarefas”, ressalta.

“É inerente às mulheres a capacidade de se relacionar a partir da empatia e da valorização do outro. Sua maior predisposição para a comunicação e o seu feedback podem contribuir dentro do ambiente laboral de uma forma mais eficaz se comparado aos homens”, pontua Caroline.

Desse modo, cabe ao Estado garantir que as mulheres sejam inseridas de forma massiva no mercado de trabalho, assegurando educação e creche em turno integral aos filhos. “Com o aumento da renda familiar e a inserção da mulher no mercado de trabalho, há um impacto direto na economia e no próprio crescimento econômico”, destaca a advogada.

A economista Regina salienta que um dos motivos pelos quais as empresas costumam dizer que as mulheres que têm filhos são custosas está ligado à licença-maternidade, tanto pelo custo financeiro quanto pelos dias de afastamento. “Pelo custo financeiro não faz sentido, porque quem paga a licença é o governo, não são as empresas. ‘Ah, mas tem o custo de afastamento da mulher’, mas se você deixou de pagar o salário dela, que está recebendo do governo, você pode contratar alguém para o período”, explica.

“A licença-maternidade é o afastamento que mais tempo de planejamento a empresa tem para colocar alguém nesse serviço”, pontua Regina.

Um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2016 revelou que após 24 meses quase metade das mulheres que tiraram licença-maternidade estavam fora do mercado de trabalho. O mesmo estudo revelou que o percentual era maior para mulheres de nível educacional mais baixo (51%), enquanto que para trabalhadoras com maior escolaridade o percentual ficava em 35%.

A pesquisa também apontou que, no Brasil, a licença-maternidade de 120 dias não era capaz de manter as mães no mercado de trabalho, indicando que outras políticas (como expansão de creches e pré-escola) poderiam ser mais eficazes para atingir esse objetivo, especialmente para proteger as mulheres com menor nível educacional.

“Nós já estamos com uma taxa de natalidade baixa no Brasil, não estamos chegando na taxa de reposição já faz muitos anos, e ela está diminuindo. É uma preocupação até para mantermos uma série de condições econômicas. Então, é importante que as mulheres tenham filhos também. Se a empresa junta essas duas informações — é importante ter mulheres e elas vão ter filhos — , então ok, qual o problema das mulheres terem filhos?”, questiona a economista.

Para Regina, é difícil dizer quem perde mais. “O mais intuitivo é dizer que a mulher perde mais, porque ela perde o emprego, o salário, a experiência. Se ela foi demitida, tem uma questão de autoestima e de recolocação no mercado de trabalho. Mas a empresa também perde, porque investiu nessa pessoa. Quando o funcionário sai, ele leva todo o conhecimento adquirido, e a empresa vai ter que começar tudo de novo com outra pessoa”, explica.

Além disso, perde também a economia como um todo. Com a baixa participação da mulher no mercado de trabalho, o país cresce menos. E em tempos como o de agora falar em crescer menos é um problema.

A importância da licença-maternidade e paternidade

A licença-maternidade de 120 dias é um direito garantido desde a Constituição de 1988. Para empresas inscritas no Programa Empresa Cidadã, o afastamento pode ser estendido por mais 60 dias, totalizando 180 (seis meses). O pós-parto é o período de maior vulnerabilidade psicológica da mulher, tornando essa etapa de adaptação ainda mais importante para a mãe, além de proporcionar também a ligação entre mãe e bebê nesses primeiros meses de vida.

Raquel Von Hohendorff, professora de Direito do Trabalho, fala que a importância da licença está ligada “ao tempo, ao conhecimento, ao desenvolvimento desse bebê, além da amamentação, recomendada como única fonte de alimentação do bebê nos primeiros seis meses pela OMS”. Para ela, se trata de uma importância social e de garantia de qualidade de vida.

É importante que mãe e pai usufruam do contato com o bebê para seu pleno desenvolvimento e fortalecimento de vínculos (Arte: Canva/Cristina Bieger/Beta Redação)

A licença-paternidade também possui grande importância para a mãe e o bebê, principalmente no fortalecimento de vínculos. “Em muitos países a licença-paternidade vem sendo estendida. No Brasil, a gente tem a possibilidade de ela ser prorrogada e durar até 20 dias, o que ainda é muito pouco. Mas o papel do pai é fundamental também, em fazer parte, manter e cuidar da família”, comenta Raquel.

Regina ressalta que “aumentar a licença-paternidade ajudaria muito a reduzir o preconceito sobre as mulheres”. Para ela, se trata de um ponto crítico a ser pensado e discutido.

O que está previsto na lei

A licença-maternidade está prevista no artigo 7º da Constituição Federal de 1988, inciso 18: licença gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de 120 dias. A professora de Direito do Trabalho salienta que é impossível discutir o afastamento. “Desde 2008, de acordo com a lei 11.770 temos a possibilidade de prorrogação da licença-maternidade por mais 60 dias, totalizando 180. Mas não são todas as empregadas que têm esse direito. Ela precisa ser contratada de uma empresa que tenha aderido ao Programa Empresa Cidadã, e esse pedido de prorrogação tem que ser feito pela empregada até o fim do primeiro mês após o parto”, explica Raquel.

Informações retiradas do livro Direito e Processo do Trabalho (2021), de Élisson Miessa e Henrique Correia (Arte: Canva/Cristina Bieger/Beta Redação)

A estabilidade da empregada é adquirida automaticamente. “Se ela estiver grávida no ato da contratação, ela passa a ter estabilidade já no primeiro dia de trabalho”, completa Raquel. Em casos de adoção, a estabilidade também é garantida à mulher com o início do processo de adoção.

A professora ressalta que “a conduta de uma empresa em não admitir mulheres casadas ou gestantes configura ato discriminatório, e todas as normas que tratam da proteção da gestante não admitem nenhum tipo de transação, elas são obrigatórias”.

Caroline Seidl, advogada, explica que “caso a empresa venha a suprimir algum direito assegurado às gestantes, elas podem ajuizar uma reclamatória trabalhista e pleitear em juízo tais direitos ou a indenização correspondente”.

A reforma trabalhista de 2017 permitiu que os horários de descanso, dois períodos de meia hora cada, possam ser definidos em acordo individual entre a mulher e o empregador. “Esse foi um aspecto positivo, a reforma ampliou significativamente a possibilidade de ajuste individual e negociação entre empregada e empregador”, destaca Raquel.

Outra mudança foi em relação às gestantes e lactantes (mulheres em período de amamentação) que trabalham em ambiente insalubre. O efeito prático e imediato é o afastamento das atividades. “Isso gerou uma discussão gigantesca, devido ao prazo de amamentação e afastamento da empregada. A OMS diz que a amamentação deve ser a alimentação exclusiva do bebê por pelo menos seis meses, mas ninguém diz o prazo máximo, e isso, nos aspectos de trabalho em ambientes de saúde, por exemplo, onde a gente tem um grande número de mulheres, gera toda uma situação complexa, porque o afastamento é obrigatório durante toda a gestação e amamentação”, completa Raquel.

A advogada Caroline explica que já recebeu casos de mulheres que tiveram que buscar o Poder Judiciário para preservar a saúde do bebê, por estarem expostas a agentes insalubres durante a gestação e o empregador não garantir as condições de saúde mínimas, como um ambiente adequado para o desenvolvimento saudável do feto. “Com o ajuizamento de processos, em 100% dos casos as reclamantes tiveram o deferimento total dos pedidos, que são direitos básicos, assegurados em lei”, completa.

“Talvez mais importante que mencionar a lei seja a conscientização de um aspecto social, de construir um lugar melhor, onde as mulheres possam fazer suas escolhas. Essa escolha de maternidade tem vindo cada vez mais tarde, por conta de questões de mercado de trabalho, de ocupação e de espaços, mas é sempre muito duro e muito difícil fazer essa escolha e essa opção. E a gente sabe que tem discriminação”, finaliza Raquel.

O que tem por trás das mudanças

A Medida Provisória 1.116/22 institui o Programa Emprega + Mulheres e Jovens, e foi criada a partir dos problemas estruturais e desigualdades geradas pela pandemia da Covid-19, com o objetivo de impulsionar a empregabilidade das mulheres. Entretanto, para Caroline Seidl, advogada trabalhista, essa medida “é extremamente prejudicial para as mulheres, pois acaba discriminando-as ainda mais frente aos homens no mercado de trabalho”.

“A referida Medida Provisória está tentando criar medidas para, em tese, impulsionar a empregabilidade das mulheres, como a flexibilização da jornada de trabalho, por exemplo, com adoção de jornada parcial e banco de horas. Porém, o que se vê na prática é muito diferente do texto da referida Medida Provisória”, explica Caroline.

Para a economista Regina Madalozzo, essa medida não “tira” os direitos das mulheres, mas ela dá direitos que não necessariamente as mulheres vão conseguir usar. “A gente tem que ter muito cuidado ao olhar para essas reformas, porque eu acho que tem muita coisa bem intencionada, mas para quem vão focalizar? Essa MP em especial é para pessoas com carteira assinada, então, os grupos mais vulneráveis, que não têm a licença-maternidade, carteira assinada, FGTS e nenhum tipo de auxílio, não vão ganhar nada”, pontua.

Ao pensar somente em mulheres com emprego formal, a MP deixa de fora 20 milhões de mulheres (trabalhadoras informais ou desempregadas), um número importante a ser considerado.

Uma medida interessante, mas com poucas probabilidades de ser cumprida, é o usufruto compartilhado da licença-maternidade/paternidade entre pai e mãe. Entretanto, a solução é válida somente quando ambos os genitores trabalham em empresas aderidas ao programa Empresa Cidadã, o que hoje no Brasil é menos de 1%. A chance de todas as condições coincidirem é muito baixa. Para esse ponto, faltam medidas que incentivem as empresas a adotarem o período estendido.

O que muda para quem não é CLT?

Em tese, para quem não está configurado no regime de CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) não haveria direitos trabalhistas assegurados para mulheres gestantes ou qualquer outro profissional. Atualmente, no Brasil, a taxa de informalidade atinge 40,6%, um total de 38 milhões de trabalhadores sem vínculo empregatício.

Uma opção, nesse caso, para profissionais autônomos, é se registrar como MEI (Microempreendedor Individual), para quem fatura até R$ 6.750,00 por mês e se enquadra em alguma das categorias profissionais previstas. Raquel ressalta que quem é MEI hoje já foi empregado antes. “A gente precisa falar sobre isso, para que as pessoas entendam a importância de contribuírem, principalmente para terem algum tipo de garantia social”, pontua.

“As mulheres que possuem MEI são microempreendedoras individuais. A princípio não há direitos reservados na legislação trabalhista. Mas essas mulheres, que contribuem para a Previdência Social, receberão a licença-maternidade”, complementa a advogada Caroline.

O pagamento da contribuição mensal (Documento de Arrecadação do Simples Nacional — DAS) garante uma série de benefícios importantes, como: aposentadoria por idade; aposentadoria por invalidez; auxílio-doença; licença-maternidade; auxílio-reclusão; pensão por morte.

(Arte: Cristina Bieger/Beta Redação)

“As empregadas que trabalham como MEI também têm o direito à licença-maternidade de 120 dias, e o valor mensal recebido é sempre equivalente ao salário mínimo vigente. Ele vai variar de acordo com a contribuição efetuada nos últimos 15 meses. Se ela contribui apenas sobre o básico, vai ser só o salário mínimo”, finaliza Raquel.

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