Maioria na população, minoria na política

Representantes negros falam sobre a dificuldade e o preconceito sofridos no poder público

Thayná Bandasz
Redação Beta
7 min readNov 16, 2017

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Com colaboração de Fabiano Scheck Ferraz

Marina Silva e Romário em campanha política em 2014. (Foto: Leo Correa/AP).

Em um país onde 54% da população é negra e parda, segundo dados do IBGE publicados pelo Exame, a porcentagem não se reflete em outras áreas. A política brasileira é uma das principais. As informações das eleições de 2014 deixam essa disparidade ainda mais nítida.

Conforme o relatório de Políticas Sociais — acompanhamento e análise de 2015, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), naquele ano concorreram aos cargos de presidente da república, senador, deputado federal, estadual e distrital e governador 22 mil candidatos ( 43,7% deles declarados negros). Apesar do número equilibrado entre candidatos, o levantamentos mostra desigualdade entre os eleitos. Informações que só foram possíveis coletar pois foi a primeira vez que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a requerer esses dados da cor ou raça dos candidatos.

Dados do Ipea dos candidatos negros e brancos nas eleições de 2014. (Arte: Thayná Bandasz/Beta Redação)

A ausência de negros no Executivo, Legislativo e Judiciário comprova a falsa democracia racial que a sociedade brasileira vive, afirma o cientista social da Universidade de São Paulo, Osmar Teixeira Gaspar. “Esse discurso é desmontado quando olhamos para quantidade de negros presentes na política”.

Mercedes e carroça
Segundo ele, não há racialização na política. Prova disso é que até mesmo grupos minoritários, como brancos pobres, não votam em negros. A campanha dos candidatos afrobrasileiros também é historicamente prejudicada: além da dificuldade financeira, há falta de tempo para chegar aos eleitores. “Percebemos que boa parte dos candidatos negros trabalham na iniciativa privada, não podem estar fazendo campanha durante sua jornada de trabalho, só depois dela. Enquanto seus concorrentes brancos e ricos tinham todo tempo para fazer”, afirma.

Enquanto os negros ficam presos em suas jornadas de trabalho, recebendo ínfima ajuda do partido, os brancos possuem tempo integral e apoio não só do partido, mas também de grandes clubes e ajudas externas. A diferença entre o patrimônio dos candidatos também é um grande influenciador nisso. Segundo Osmar, enquanto o negro mais rico possui um patrimônio de R$ 233 mil, o branco mais rico tem mais de R$ 1 milhão. “É como, por exemplo, uma corrida entre uma Mercedes, que seria o branco, e uma carroça, que seria o negro, de Porto Alegre até Pelotas. Não há como a carroça ganhar. Nós precisaríamos equipará-los”, exemplifica.

Tudo isso foi constatado através de sua pesquisa de doutorado que aborda a falta de representatividade negra na Assembleia Legislativa de São Paulo. Porém, são informações que podem facilmente englobar o Brasil todo.

“Muitos desses parlamentares não tem compromisso com a população mais pobre e negra. Acaba ocorrendo que são parlamentares brancos e ricos falando e tomando decisões por negros. Penso que é inadmissível que terceiros possam falar por nós. Temos hoje uma democracia que não se preocupa em incluir”.

Segundo ele, as elites brancas dominantes não enxergam os negros como seus pares e junta também o silêncio da sociedade com a ausência de representatividade. “Estão tão acostumados em não ver que acabam não sentindo falta, não reivindicam porque está cômodo do jeito que está”, afirma.

Fomento à falta de representatividade
Uma jogada dos partidos políticos é oferecer a legenda para candidatos mais pobres, grande parte negros, que não possuem estrutura financeira, mas são conhecidos em suas comunidade. Eles angariam votos não para se elegerem, mas sim para alimentar a legenda e consequentemente eleger um político branco que está lá em cima. “Os partidos políticos brasileiros tornam os candidatos úteis aos seus interesses políticos. Uma parte se torna útil para eleger brancos. Tanto os candidatos quanto eleitores são marionetes dos partidos”, explica. Osmar frisa que esta tática é geral em todos os partidos e não segue apenas um lado.

Dos 32 partidos que concorreram às eleições em 2014, segundo o Ipea, apenas cinco deles apresentaram igual ou maior percentual de negros entre todos os seus candidatos, sendo esses partidos siglas de menor expressividade. Os partidos que tiveram menor participação de negros como candidatos foram PMDB (27,2%), seguido pelo PTB (31,8%), PSDB (32,6%), PSD (33,3%) e PP (34,5%).

Para acabar com esse baixo número de candidatos negros e também eleitos, Osmar sugere adoção efetiva de cotas raciais. “Aceitar uma medida dessas reduziria drasticamente essa diferença que temos hoje aos brancos.” Mas o cientista social sabe da dificuldade disso ser implementado, pois a elite branca jamais irá abrir mão de seus privilégios.

Representação negra no Sul
Em 2014, a maior desigualdade racial nas eleições apontou diretamente para a região Sul do Brasil. Enquanto no Acre, segundo o Ipea, a participação dos negros foi de 80,6%, no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina a porcentagem de candidatos foi bem menor. Ela correspondeu a 43,1% (PR), 57% (RS) e 55% (SC).

Paulo Paim foi o único negro eleito por voto direto. (Foto: Divulgação Facebook)

O senador Paulo Paim (PT) foi o único negro eleito por voto direto nas últimas eleições, além de já ter sido deputado federal quatro vezes. Essa falta de representatividade dentro da política está ligada diretamente à escravidão. “Desde que nos foi dada a abolição, não foi dado nenhum direito de estudar, direito à propriedade e para trabalhar. Então isso passou séculos e a situação acabou continuando, a não ser raras exceções. A pobreza do nosso país tem cor e ela é feita do povo negro”, afirma.

O preconceito no Brasil é muito forte e, por consequência disso, segundo Paim, os partidos não abrem espaço e muito menos financiam pobres, que são na maioria negros. Não há condições de manter uma estrutura para competir com políticos muito mais ricos Para que isso aconteça, basta os partidos começarem a dar mais oportunidade.

Autor do Estatuto da Igualdade Racial, Paim defende muito a frente ampla para o Brasil, onde todos são bem-vindos desde que sejam pessoas que façam o bem. “Eu espero que cada vez mais a sociedade entenda que, para o Brasil se tornar um país de primeiro mundo, ele vai ter que primeiro investir em educação e combater os preconceitos, para que negros, brancos e índios possam, como diz Martin Luther King, sentar à mesma mesa e comer do mesmo pão”.

Cansados de serem os “únicos negros”

A Beta Redação entrevistou Tarciso Flecha Negra (PSD), que atualmente é o único negro a ocupar uma vaga na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. De origem mineira, Tarciso teve uma carreira de sucesso no futebol, tendo conquistado diversos títulos jogando pelo Grêmio. Foi eleito vereador em 2008 e reeleito em 2012 e 2016. No vídeo, o político faz uma reflexão sobre preconceito racial e sobre os motivos da pouca presença de negros na política.

Confira:

Tarciso falou para a Beta Redação. (Produção: Fabiano Scheck)

Antes de 2017, Tarciso possuía apenas um colega negro na Câmara de Vereadores. Trata-se de Cleiton Freitas, conhecido como Delegado Cleiton, que entre 2012 e 2016 foi vereador de Porto Alegre pelo PDT. Atualmente ele é presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (ASDEP) e possui uma trajetória de 26 anos na Polícia Civil.

Cleiton Freitas na Câmara de Vereadores quando exercia seu mandato. (Foto: Guilherme Almeida/CMPA)

O ex-vereador foi notícia várias vezes por propor projetos de lei voltados à visibilidade e melhorias da situação social da população negra. Um destes projetos foi de assegurar aos negros 20% das vagas em concursos públicos municipais, algo que entrou em vigor.

Já o projeto para considerar feriado o dia da Consciência Negra e da Difusão da Religiosidade, comemorado em 20 de novembro, não obteve sucesso. A proposta chegou a ser aprovada em 2015, porém, no ano seguinte, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) derrubou o feriado e o considerou inconstitucional. O responsável pela ação contrária à iniciativa foi o Sindicato dos Lojistas do Comércio (Sindilojas), alegando que o feriado traria prejuízos para comerciantes. Cleiton recorreu da decisão e aguarda novo julgamento.

“Essa questão do feriado é uma causa que devemos lutar para implementar. Sinto que, depois do meu mandato, acabaram iniciativas de incentivo à cultura negra em Porto Alegre”, declara. Ele afirma que, enquanto vereador, era respeitado no ambiente político, mas que sempre sentiu falta de mais representantes afrodescendentes. “Devemos ter a consciência de que precisamos eleger negros. Na hora da eleição, os votos não aparecem. O vereador Tarciso só consegue votos pela sua fama com o Grêmio e por ser um ídolo dos torcedores”, salienta.

O Delegado Cleiton é o primeiro presidente negro da ASDEP, sendo que a associação existe há 57 anos. “Como a gente não se vê representado, não buscamos exemplos negros para seguir”, comenta.

“Eu não quero ser o único negro representante numa Câmara. Eu não quero ser o único negro presidente de uma associação. Eu quero mais colegas negros para que juntos possamos acabar com o preconceito racial na sociedade”, conclui.

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