Martina Nickel ao lado de uma de suas obras, o pássaro, painel em frente à Casa Musgo. (Foto: Natália Collor/Beta Redação)

Martina Nickel de olhos fechados

A artista visual transita entre várias técnicas, buscando inspiração nos imaginários da natureza e da animalidade

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8 min readNov 20, 2019

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“Deitem, desliguem as luzes e fechem os olhos. Agora vocês vão imaginar e contar histórias de aventura. O personagem principal é o seu avô, descobrindo os solos brasileiros. De Ouro Preto, passando pelo Sertão até Araguaia”. O pedido era do pai, e Martina Nickel e a irmã Saskia começavam ali a contar, cada uma, uma parte da história. Nessas histórias de aventura protagonizadas pelo avô e as netas, elas conduziam barcos enquanto o avô garantia o sustento do acampamento caçando animais selvagens.

O avô era professor de ciências — na época em que não existia divisão entre matérias — numa escola alemã em São Paulo, além de ser fotógrafo amador e explorador nas horas vagas. Nas férias, fazia viagens pelo Brasil com outros professores. Essas histórias eram fomentadas pelo pai de Martina para desenvolver a criatividade das filhas.

Martina e a irmã Saskia protagonizam grandes aventuras inspiradas nas viagens do avô. (Foto: Arquivo Pessoal)

A fantasia, unida à vida no meio do mato, inspiraram a artista visual Martina Nickel na produção de seus trabalhos. Os seres híbridos, metade animais, metade humanos, com um certo tom de magia, começaram a ser projetados no imaginário da artista na mudança da família de Porto Alegre para Nova Petrópolis, quando tinha 7 anos de idade.

Afastada de tudo e vivendo no meio do mato, a 38 km do centro da cidade, a menina tímida e criativa vivia subindo em árvores ao lado do cão Snoopy e ouvindo histórias até os 14 anos, quando voltou a viver em Porto Alegre. “Consigo enxergar em minhas referências de infância o que me leva, hoje, a fazer esse trabalho. Não somente esse contexto de campo, como também pequenas coisas que me moldaram”, conta a artista.

Infância inspiradora

Fruto da união entre um alemão e uma maranhense, a tecnologia digital também impactou as primeiras referências do seu trabalho. Um jogo alemão para computador chamado Zanzarah vem à cabeça quando ela pensa no que a moldou como artista. Esse jogo colocava em um só mundo fadas, seres híbridos, e os quatro elementos da natureza. O jogo chegou a Martina como presente de um tio que morava na Alemanha, revelando algumas das inspirações que se transformariam em esculturas, pinturas e desenhos.

Ao retornar a Porto Alegre, Martina foi morar no Bom Fim e cursou a 8° série na Escola Estadual Anne Frank. Da sua casa ouvia o sinal tocar. No ensino médio foi para o Colégio Estadual Piratini e lembra que a volta do colégio, a pé, era deliciosa. O colégio nunca foi um problema, pois conseguia burlar a timidez e se encaixar em meio a tantos jovens desencaixados. Foi o movimento emo que a ajudou nesse processo. “Fazer parte do grupo dos estranhos foi super importante para uma geração, permitindo quebrar certos padrões estéticos”, conta.

Quando era adolescente, aos 15 anos, a produção de chaveiros permitiu a Martina explorar sua veia artística. Ela começou a desenvolver técnicas manuais nestes pequenos projetos, que já tinham a natureza e o mundo animal como referências. Nessa época começou a desenvolver também o gosto pela costura.

Conceito e pensamento artístico

Foi no Instituto de Artes da UFRGS que Martina começou a desenvolver um pensamento artístico original. Ela entrou na faculdade de Artes Visuais aos 18 anos, logo após terminar o ensino médio, mas se sentia “verde”. Em casa não tinha influências artísticas, ainda que uma tia se dedicasse à pintura. A temida frase “arte não dá dinheiro” nunca saiu da boca dos seus pais, que sempre a incentivaram a fazer o que gostava.

Martina estudou um ano no Instituto da UFRGS, até ir viver na Alemanha, aos 19 anos. Ainda não foi aí a grande mudança. A insegurança, a timidez e a solidão fizeram com que a experiência não fosse completa, ainda que tenha contribuído para o seu desenvolvimento pessoal.

Gravura em metal produzida por Martina. (Arte: Martina Nickel)

Na época do intercâmbio, o seu pai morava na região de Qreuzberg e a recebeu por três meses na sala da casa. Tinha uma árvore no meio do “quarto sala” e o lugar inspirava. Depois de três meses vivendo com o pai na Alemanha, a artista precisou “se virar” e, de fato, “se virou”, alugando um quarto onde viveu por 7 meses.

Martina permaneceu vivendo na Alemanha até a chegada do inverno, quando “saiu correndo”. “Eu vivia sozinha e não sabia lidar com a cultura mais voltada para a introspecção. Não existe rua lá, existe a passagem de um lugar para o outro, por causa do frio”, relembra. Não ter amigos e contar somente com o pai ajudou para que o frio a espantasse do país. “Hoje eu sinto que poderia ter sido diferente, pois me faltava independência para encontrar na arte um elemento de cura”, afirma a artista.

Quente, foi a volta para o Brasil

“Nada como o lar”. A volta foi quente, acolhedora. “Quando a gente retorna, conseguimos dar valor para o que temos. Percebemos o nosso país como um lugar maravilhoso. Temos paisagens lindas e vivemos em um lugar muito privilegiado”, reflete.

De volta ao Brasil, a artista foi morar com a mãe em Porto Alegre. Ao mesmo tempo em que se sentia feliz, também estava perdida. Foi uma época de transição, marcada pelo retorno para casa, o término de um relacionamento, a volta para a faculdade e o processo de produção artística.

Entre as obras de Martina, destaca-se a série Aves e Pássaros. (Arte: Martina Nickel)

Era um período de experimentação e a evolução da artista aconteceu em saltos. O retorno à faculdade foi “estou entendendo onde e o que posso”. No começo achava que seria pintora. Aos poucos, foi se dando conta que poderia fazer diversas coisas. “E é exatamente isso o maravilhoso da faculdade”, relata.

No primeiro ano no Instituto de Artes, Martina teve aulas de cerâmica, gravura, desenho, pintura, escultura e fotografia, além de ser apresentada também a autores e teorias da área. Alexandre Santos foi o professor que mais impactou a artista. “Ele foi importante para ver onde estava pisando”, conta. Foi quem estimulou Martina a visitar os museus de Porto Alegre, transmitindo a importância da leitura, da pesquisa e da compreensão da produção artística.

“Eu lembro de ir em uma exposição no Iberê Camargo, da Regina Silveira, que foi incrível e também o quanto eu não dava importância antes disso aos museus e galerias da cidade. Como artista é necessário conhecer a produção artística, só assim será construído o olhar. Não há outra forma a não ser se expondo.”

Rodrigo e a virada

Depois da faculdade, o relacionamento com o fotógrafo Rodrigo Marroni foi outro ponto de transformação na vida da artista. Esse foi o momento de virada para que Martina começasse a seguir, de acordo com ela mesma, uma “produção mais séria”. “Comecei a perceber meu trabalho não mais como uma experimentação, mas como um projeto de vida”, conta.

Juntos desde 2015, o casal se conheceu em 2011, mas na época eram apenas amigos. Rodrigo também vê em Martina o potencial de crescimento contínuo. “Gosto de ver ela produzindo e dificilmente ela faz a mesma coisa. Temos isso em comum. Sempre sabemos que podemos mais do que estamos fazendo no momento”, afirma o fotógrafo.

Martina e Rodrigo tocam juntos o projeto Casa Musgo, em Porto Alegre. (Foto: Arquivo Pessoal)

Martina vê Porto Alegre como uma cidade que vibra arte. Essa e outras construções e pensamentos da artista a fizeram se envolver com outro projeto, para além da criação de esculturas, pinturas e seres místicos. Ela toca, ao lado de Rodrigo Marroni, a Casa Musgo, um espaço cultural independente que promove a arte e a criação autoral na capital gaúcha.

Casa Musgo fica na Rua Vieira de Castro, 80 (Foto: Natália Collor)

O projeto da casa nasceu de conversas entre Martina e Rodrigo sobre o desejo de representar um espaço de difusão da cena artística de Porto Alegre. O objetivo, desde o início, era ter uma galeria para apresentação da produção artística, exposições e um local para a venda, tanto do próprio ateliê como de outros artistas, que já expuseram na casa ou não.

A animalidade

Na sequência, a artista começou experimentações sobre o que seria seu projeto de conclusão de curso, apresentado na UFRGS em 2017. O tema do projeto foi relacionado à animalidade, apresentando uma série de esculturas com seres híbridos que carregavam uma carga de símbolos. A intenção do projeto foi gerar a empatia das pessoas em relação a essas criaturas que tinham rostos semelhantes à face humana.

Esculturas da exposição “Feche os olhos para me ver”. (Fotos: Rodrigo Marroni)

O trabalho de conclusão foi um estímulo para a criação de histórias inspiradas nestas criaturas. Elas abriam um leque, assim como a fábula abre possibilidades de interpretações. As histórias não foram escritas por Martina, porque existia um desejo da artista de que cada pessoa pudesse se projetar nestas figuras e, de alguma maneira, criar este imaginário. Por isso, o nome da exposição foi Feche os olhos para me ver. “Era no sentido de entrar no seu interior e ver onde você chega com esses seres”, explica.

Para Martina, seu maior desafio no processo criativo é poder explorar outras possibilidades na animalidade. O sujo, o agressivo e o grotesco são sensações difíceis para a artista transmitir em sua produção atual.

Os gostos de Martina

A artista tem muito carinho por seu trabalho com esculturas. Mas também gosta da pintura, da aquarela, da gravura em metal. Ela se orgulha de transitar em vários espaços artísticos.

A própria produção da exposição Feche os olhos para me ver contemplou a experimentação de diferentes materiais, tais como costura, papel machê, talco com cola, biscuit, dentes postiços, tecidos e tapeçaria.

“Para mim, tem muito a ver com pegar um material e transformá-lo em alguma possibilidade. Eu cheguei a cogitar fazer uma exposição em que nenhuma técnica se repetia, só que me dei conta que isso era muito limitante. Por que me limitar dessa forma se eu posso não criar regras?”, reflete a artista.

Obras de Martina estão expostas na Casa Musgo. (Foto: Natália Collor/Beta Redação)

Rodrigo avalia Martina profissionalmente como alguém que gosta de processos, que sempre busca fazer esboços, que amadurece as ideias a partir do momento em que ela brota. “Cada um lida com uma forma, cada um tem a sua metodologia, ela tem essa”, comenta.

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Jornalista. Escrevo, exalto minas, tiro umas fotos, grito, chuto umas portas pelo caminho e vou levando quem eu posso comigo.