“Me reconhecer enquanto minoria foi uma coisa muito importante”

A Cultura Ballroom foi criada por pessoas trans e pretas. Para Rayan Pires, dançarino de Vogue, isso foi essencial para entender a cena

Lisandra Steffen
Redação Beta
27 min readJun 15, 2021

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Rayan paricipa da cena Ballroom desde que ingressou no curso de Teoria da Dança, em 2017. (Foto: Arquivo pessoal)

Madonna, 1990. Strike a pose. Nesse momento, talvez comece na tua cabeça a batida de Vogue, música da Rainha do Pop. A cantora lançou para o mundo um movimento que, antes, ficava contido apenas dentro de comunidades marginalizadas dos Estados Unidos. Talvez, lembre de Pose, série americana que teve a última temporada lançada este mês. Ou, ainda, de Paris is Burning, documentário que fala sobre a cena LGBTQIA+ dos anos 80. Mas está enganado quem pensa que o Vogue é apenas um estilo de dança que tenta imitar capas de revistas. A dança faz parte da Cultura Ballroom, criada dentro do movimento LGBTQIA+, mais especificamente criada por pessoas trans e pessoas negras.

O movimento nasceu por volta dos anos 70 através das Balls, que celebravam a vida daquelas pessoas invisibilizadas pela sociedade. Essa cultura e os eventos só chegaram no Brasil em 2016, cerca de 30 anos depois de sua criação. No Rio Grande do Sul, por exemplo, temos três Houses em atividade que fomentam a Cultura Ballroom: a House of Harpya, Casa de Lanceira e a House of Kaliça.

Para quem não entendeu nada dos primeiros parágrafos, ou até pegou algumas referências, mas não sabe muito sobre o assunto, a Beta Redação traz uma entrevista com Rayan Pires, graduando de Teoria da Dança pela UFRJ e dançarino de Vogue. Também conhecido pelo título de Príncipe da Casa de Cosmos, Rayan fala sobre as experiências dele enquanto artista, os projetos que participa e ainda comenta sobre toda a cena Ballroom no Brasil. A longa conversa aconteceu num fim de tarde de junho, pelo Teams, e Rayan tentou “traduzir” o LGBTês da cena para os leitores. Confira a entrevista abaixo:

Para começar, quem é Rayan Pires?
Então, eu me chamo Rayan Pires, tenho 25 anos, sou um artista. Atualmente, sou graduando em Teoria da Dança na UFRJ. Mas tenho vários outros estudos que não passam por esse lugar institucional e academicista. Faço meus estudos dentro das técnicas de dança e dentro da Cultura Ballroom, que é o que a gente vai conversar um pouco hoje.

Eu comecei a dançar com oito anos de idade, indo em festivais competitivos. Comecei com a linguagem do Hip Hop, dentro de um projeto em Sapucaia [do Sul], que é a cidade de onde sou. Indo nesses festivais eu fui conhecendo outros estilos. Porque a galera coloca tudo dentro de um saco só: as “danças urbanas”. Foi assim que acabei encontrando e me deparando com o Voguing. Isso em 2009, 2010, nessa época. Porém, a informação sobre o que era, como se dançava esse estilo, era muito escassa. Inclusive, a galera confundia muito. E aí demorou um tempo, não foi uma coisa que eu passei a me dedicar. Até porque eu era muito mais jovem.

Quando tu entrou na faculdade?
2017. Tecnicamente, eu deveria me formar mês que vem [risos], mas não tô dentro do período certinho do curso. Então, provavelmente, ano que vem eu devo me formar.

“Eu consegui encontrar a informação que não tinha aqui, que não chegava aqui pra gente no Rio Grande do Sul, ou chegava com muito custo”

Como tu falava, acabou se envolvendo na dança, com o Vogue, antes da faculdade.
Aí tem uma grande volta que eu faço na vida. A gente é artista, então tem que pensar em como se sustentar. Eu me afastei da dança, fui fazer outro curso e sou graduado em outra área. Trabalhei durante cinco anos nessa outra área e foi quando eu percebi que não era exatamente isso que eu queria. Meus pais também começaram a me pressionar a fazer uma segunda graduação, para tentar mudar de emprego e tudo mais. E aí foi o momento que eu decidi: por que não fazer Teoria da Dança? Eu já gosto tanto de dançar e eu estava tentando me reconectar com a dança.

O curso de Teoria da Dança é o único da América Latina, por isso fui cursar no Rio de Janeiro. Na UFRGS, a gente só tem Licenciatura em Dança, que não era uma coisa que eu me interessava muito. Coincidentemente, [o Rio de Janeiro] é uma das cidades e estados do Brasil onde a cena Ballroom mais se expandiu. Então eu tive esse duplo embate, porque cheguei no Rio e as coisas já estavam acontecendo. Eu pude me integrar à cena e me encontrar com um monte de pessoas que estavam pesquisando e aprendendo também sobre Cultura Ballroom e sobre Voguing, potencializar isso e estudar muito mais. Eu consegui encontrar a informação que não tinha aqui, que não chegava aqui pra gente no Rio Grande do Sul, ou chegava com muito custo.

A título de curiosidade, que outra área era essa que tu trabalhou?Logística. Com transporte de carga. Nada a ver, eu sei.

Aí tu mudou, então, para Teoria da Dança e lá tu acabou se reconectando com o Voguing?
Isso, exatamente. Porque, por conta do meu emprego e da faculdade, eu tive que me afastar da dança durante um tempo. Quando finalizei a graduação, eu ficava tentando me reconectar, ir nos ensaios, tentar ir nos eventos etc. Quando eu decidi cursar Teoria da Dança, eu passei a dedicar todo o meu tempo.

No Rio de Janeiro, fui muito bem recebido, porque eu já conhecia algumas pessoas da cena. Em 2015, se não me engano, quando eu estava chegando, mais ou menos, no fim da minha primeira graduação, eu saia muito à noite pra dançar em festa. E eu comecei a conhecer várias pessoas da comunidade LGBT, desconstruir muitas coisas, me entender enquanto um homem bissexual. E isso fez eu descobrir o que era a Cultura Ballroom, porque, antes disso, eu só sabia o que era o estilo de dança Vogue. Eu não entendia muito bem como essas duas coisas conversavam e foi assim que eu comecei a procurar pessoas, no Brasil, que pesquisassem sobre isso. Então as coisas foram meio que se ligando através do tempo, não aconteceu de uma vez só. Foi fruto de várias pesquisas, porque eu gosto muito de música House e aí também fui entender que a música House é uma expressão periférica. Então, isso também se ligou, porque o Vogue é dançado na música House e as coisas foram meio que se amarrando sozinhas, através do que eu já gostava e eu nem percebia que tinha ligação.

“Eu sempre fui muito ligado à arte, sempre gostei de cantar e eu queria fazer várias coisas. Quando eu era muito pequeno, não era especificamente sobre a dança, mas eu sempre quis ser artista, sabia disso”

Quando percebeu já estava tudo acontecendo ao mesmo tempo.
É, aí eu quis investir nisso. E, quando eu cheguei no Rio, foi uma grande felicidade, porque eu não me dei conta que a cena de lá já estava bem à frente. Aqui no Rio Grande do Sul, a gente tinha, basicamente, duas pessoas que pesquisavam sobre Voguing, na época. Que era a Juana, que, inclusive, é pioneira na cena, e o Augusto, que é o Father da House of Harpya e, atualmente, mora em São Paulo. Eu também não era muito próximo e, quando cheguei no Rio, vi um monte de pessoas que eu seguia no Instagram e viviam isso. Eu pude chegar pra essas pessoas e dizer: “e aí, me explica”.

Tu falou que dança desde muito novo, lembra por que começou a se interessar pela dança? E por que a dança?
Olha, é uma história engraçada, na verdade. Eu sempre fui muito ligado à arte, sempre gostei de cantar e eu queria fazer várias coisas. Quando eu era muito pequeno, não era especificamente sobre a dança, mas eu sempre quis ser artista, sabia disso. A minha irmã fez parte de um grupo dentro da escola que ela estudava, em Sapucaia, o Grupo Rad, que hoje em dia é um grupo do município. Eu adorava ver minha irmã dançar. Queria muito ir nos ensaios e queria muito participar. Depois, minha outra irmã mais velha também ingressou no grupo. E eu, por ser o irmão mais novo e por estudar em outra escola, não podia entrar. Quem coordenava esse grupo era a professora de educação física. Então, eu comecei a encher o saco da minha professora de Educação Física, pra termos um grupo de dança. E aí, criou-se, de fato, um grupo de dança dentro da escola, porque entendeu-se a necessidade de ter isso.

Nesse meio-tempo, o projeto deixou de ser da escola e passou a ser um projeto municipal. O grupo [Rad] se deslocou para a Casa de Cultura de Sapucaia do Sul. Depois, num dos eventos do Sapucaia em Dança — que era uma mostra que acontecia anualmente — , ao me ver dançar, a coordenadora do grupo da minha irmã me chamou pra dançar junto. Eu dancei, basicamente, uns 10, 11 anos com o Grupo Rad. Foi uma coisa que eu queria muito fazer. Eu passei a dedicar muito do meu tempo, porque aquela era a única tarefa que eu fazia além da escola. Na época, já tínhamos começado a participar de festival de competição de dança. Então era aquela coisa: aprender coreografia, montar coreografia, ir para o festival, voltar com o primeiro lugar e ir para o outro. Vai virando uma coisa que tu vai fazendo, vai ficando normal.

E foi aí que acabou tendo teu primeiro contato com o Vogue?
Exatamente. Porque, quando a gente ia para esses festivais, tinham muitas Master Class. Nesses eventos que a gente ia pegando o que era Locking, Popping, Breaking, qual que é a diferença, o que é Krumping etc. Mas era uma coisa de ir para o Youtube, não saber inglês, e pesquisar o nome de tal pessoa e ficar assistindo vídeo daquela pessoa até entender, mais ou menos, o que ela tava fazendo e ver a similaridade com a técnica da dança. Era uma coisa muito autodidata, porque a gente não tinha profissionais da dança no grupo. Era um projeto social, ninguém tinha dinheiro para ir pra São Paulo, Rio de Janeiro, e conhecer outras pessoas, trocar com a galera da cena ou, realmente, ir para outro país e pesquisar. Todo mundo era muito jovem. Acho que a pessoa mais velha do grupo, quando eu iniciei, devia ter, no máximo, uns 17 anos. Então, ir nesses eventos era nosso único ponto de contato. A gente se deparava com essas coisas diferentes, voltava para casa e mastigava aquilo. Depois, ia para o próximo evento pra pegar mais informação e ia seguindo assim. Meu primeiro contato com o Vogue foi assim, vendo coreografia de outros grupos dançando, fazer uma aula aqui, outra ali. Sem entender muito bem. Mas olhava aquilo e me interessava.

Foi pescando essas informações, porque era o que tu tinha naquele momento. Tu lembra se aquilo te marcou, o que tu pensou quando viu as pessoas dançando pela primeira vez?
Eu já tinha uma relação com o palco antes de dançar. Eu lembro que eu tinha uns 5 anos e eu e minha irmã fizemos um “cover” de Sandy e Junior pra apresentar no Sete [de Setembro], no centro de Sapucaia, num evento. Então eu sempre tive essa coisa de fazer apresentação, de preparar alguma coisa. Eu sempre tive aspectos da arte muito ligados na minha vida em geral. Apesar de não ter contato com a arte elitista, tive contato com a arte popular. Eu acho que é por isso que é tão difícil, pra mim, encontrar um momento específico.

“Isso mudou muito minha visão de referência e, também, de cultura. De como a gente produz cultura e o que a gente entende enquanto cultura aqui dentro do Brasil”

Porque, querendo ou não, sempre esteve ligado contigo, crescendo e tudo mais, certo?
Exato. E aí, até eu faço um paralelo de como a cultura Hip Hop se desdobrou no país. A gente assistia clipe, pegava a coreografia e tentava aprender. Ou pegava a música para criar a coreografia. Eu lembro muito de assistir videoclipe, querer aprender a coreografia, querer dançar aquelas músicas e querer estar naquele local. Isso, pra mim, é uma coisa que me marca muito. Lembrar da minha infância, de assistir muita MTV com 5, 6 anos de idade. Cantar as músicas junto, ver divas do pop, grupo de rock e todo esse universo.

Falando nisso, já que tu comentou de crescer com a MTV, vendo clipes e se imaginando naqueles universos, quais são as tuas inspirações?
Na vida?

Na vida, na dança, na arte. Não sei o quanto essas coisas se ligam pra ti.
Pra mim, é realmente muito difícil dissociar uma coisa da outra. Uma figura que apareceu muito e sempre me chamou atenção era o Michael Jackson, que é um artista multifacetado. Acho que até influencia bastante. Mas, ao decorrer do tempo, eu tive várias inspirações diferentes. Falando, especificamente, da dança, porque tinha essa coisa que a gente ia pro Youtube. Isso fez com que eu também começasse a admirar quem estava próximo a mim. Porque eu via a galera sempre pesquisando pessoas de longe e eu tive um momento que eu parei e pensei: “Mas por que eu tenho que olhar alguém que mora nos Estados Unidos, se eu tenho uma pessoa que é tão boa quanto e é daqui de Porto Alegre, digamos?”. Aí, eu comecei a ter mais essa coisa de olhar para as pessoas daqui e elogiar a pessoa, tentar começar a aprender com elas.

Isso mudou muito minha visão de referência e, também, de cultura. De como a gente produz cultura e o que a gente entende enquanto cultura aqui dentro do Brasil. Porque o meio das danças urbanas é um veneração total aos Estados Unidos. Com o tempo, eu comecei a questionar as coisas. Aí, hoje em dia, eu costumo falar muito que minhas inspirações são meus amigos. São pessoas que dançam comigo. Eu trabalho com elas, posso olhar de perto e ver o processo dessa pessoa, não só o produto final. E isso também me fez perceber que a pessoa que é minha inspiração não precisa estar distante de mim, não precisa ser uma pessoa que, nossa senhora, recebeu três Oscars, dois prêmios Nobel. Pode ser o tiozinho da esquina que faz uma festa na casa dele e aquilo é real pra ele. E isso pode ser uma inspiração. Então, hoje em dia, pra mim, as pessoas que me inspiram são pessoas reais.

“Quando a gente começou a ir em festival e a galera viu o que era Vogue, existia uma certa pressão pra que eu dançasse Vogue. Porque ‘combinava’ comigo. E a gente sabe que isso é uma certa imposição de estereótipo da pessoa, principalmente do homem gay”

Rayan ainda era criança quando teve contato com o Vogue pela primeira vez. (Foto: arquivo pessoal)

Agora, indo um pouco mais para o Vogue, para Ballroom… Tu contou que chegava uma informação muito escassa, tu foi para o Rio e as coisas eram um pouco diferentes, mas como era essa cena aqui no Brasil?
Agora eu vou fazer uma baita de uma fala, tá [risos]. Eu tive contato com a dança Vogue. E, quando esse estilo específico chegou no Brasil, ele chegou misturado com o Waacking, que é um outro estilo de dança. A única similaridade desses dois estilos é que eles nasceram na cena LGBTQIA+, mas em dois lugares completamente diferentes. Só que a galera misturava muito isso, porque ambos estilos usam muito esses movimentos [com as mãos]. E a Cultura Ballroom, o Voguing, ele vai fazer um caminho completamente diferente. Apesar de beber de várias referências, é uma linguagem que vai nascer meio que “sozinha”, entre muitas aspas. Aí, quando a cultura Hip Hop veio para o Brasil, ela veio muito nesse estilo de cópia que eu comentei antes.

Só que o rolê com a Cultura Ballroom foi muito diferente, porque a comunidade é muito protetiva. Então existem códigos, existem regras e a galera respeita muito isso. Então, a cultura demorou muito mais para chegar aqui, porque não era só copiar o que eu tava vendo. Isso foi muito importante, porque, de todas as danças urbanas que a gente tem no Brasil, o Vogue é a que mais tá ligada com a cultura de origem. É muito importante a gente entender isso, porque as danças vêm de alguma cultura e, quando a gente tá reproduzindo essa dança, a gente tá reproduzindo uma cultura. Eu lembro de, em 2011, 2012, fazer uma aula com a Fran Manson, que é uma grande bailarina e coreógrafa do Brasil, e foi a primeira vez que alguém me deu uma aula de Vogue. E era só Vogue. Ela explicou o que é um catwalk, o que é um duckwalk, o que eu tinha que fazer com as minhas mãos. Aí, o meu primeiro contato com a Cultura Ballroom foi quando assisti Paris is Burning pela primeira vez, isso em 2015. Eu tinha um amigo que tava fazendo um curso sobre a comunidade LGBTQIA+ e ele me indicou por causa da dança. Aí eu assisti e comecei a pesquisar. No grupo que eu dançava, eu era a única pessoa interessada em fazer isso.

E tem mais isso, que eu pulei. Quando a gente começou ir em festival e a galera viu o que era Vogue, existia uma certa pressão para que eu dançasse Vogue. Porque “combinava” comigo. E a gente sabe que isso é uma certa imposição de estereótipo da pessoa, principalmente do homem gay. Aqui no Rio Grande do Sul, ficou conhecida como a “dança do gay”. Então, todos os meninos que eram próximos de afeminado, ou que não eram completamente heteronormativos, dançavam Vogue. Meu primeiro contato, foi muito de uma imposição, que eu tinha um “jeito de gay”. Na época, por uma série de questões— ainda mais com a cultura que a gente tinha — , eu acreditava que era uma coisa ruim e eu não queria me aproximar daquilo. Depois, vivendo as minhas experiências, foi que eu percebi que fazia sentido pra mim, porque conversava comigo de alguma forma. Quando eu descobri a Cultura Ballroom foi que a chave virou. E, não necessariamente, quando eu dançar e fazer esses gestos, que são entendidos pela sociedade como femininos, vou me tornar uma pessoa afeminada.

A pergunta era como ela veio para o Brasil. Fiz toda essa volta de novo para que: em 2015, 2016 já existia um grupo, em BH, chamado Trio Lipstick. As meninas puderam ir pra Nova Iorque e elas entenderam que tinham que trazer isso pro Brasil. Elas criaram um evento chamado BH Vogue Fever. E aí foi o mais próximo de uma Ball no Brasil. Precisa que eu explique o que é uma Ball?

Talvez pra deixar registrado na entrevista. Num tweet, o que é uma ball?
Um tweet?

Talvez uma thread
A Ball é um evento onde a galera da comunidade Ballroom se encontra e celebra essas pessoas, celebra a diversidade de corpos, mas, também, com a possibilidade de, não só projetar, mas, construir o futuro e a realidade que você quer para si, dentro das categorias de competição que existem. E as categorias são infinitas. A pessoa que vai organizar a Ball que vai colocar. E ela pode colocar uma categoria específica para corpos gordos, ela pode colocar uma categoria específica pra quem consegue fazer o melhor executivo e vender a realidade de um executivo. Também vai ter as categorias fashion, como best dressed. Vai ter a categoria de runway. Vai ter a categoria de dança, que aí entram as categorias que a gente conhece como Vogue. Tem vários estilos e várias formas de dançar o Vogue e isso não chega muito no mainstream.

Eu posso tá errado com as datas, já aviso. Mas, em 2016, aconteceu a primeira Ball que, realmente, foi uma Ball-Ballroom. Era a galera do Rio que se juntou e que queria estudar essa cultura. Então fizeram uma Ball igual como ela é. A partir daí, a cena começou a acontecer. Em 2016, a gente vai ter o BH Vogue Fever e, a partir desse ano, ele começa a ser anual. Esse evento é o maior evento de Vogue da América Latina, se não me engano. Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, em 2017, um ano depois, já existiam algumas figuras que movimentavam a cena. Foi assim que me aproximei da House of Cazul. Em 2018, eu vou entrar nela. Foi a primeira House da qual eu fiz parte e é uma das Houses pioneiras no Brasil. Então, eu fazia parte da Cazul e, hoje em dia, junto com outros integrantes da Cosmos, a gente fundou uma nova House no Rio de Janeiro que é a Casa de Cosmos. Eu sou o príncipe, que é um dos títulos que existem dentro das Houses. Existem o Father e a Mother, que a gente mais conhece e mais ouve falar, mas também existem outros títulos. Então, cada House pode escolher sua própria forma de organização.

“No Brasil, a gente tem categorias, em Balls, específicas para as pessoas não-binárias, lá nos Estados Unidos não é assim. Ou você é male figure ou é female figure”

Então a Cultura Ballroom, o Vogue, ele acaba chegando bem mais tarde aqui, por ter esses códigos e de representar essa cultura. Vendo Paris is Burning, vendo Pose, até Rupaul, que, às vezes, fala sobre isso, é um movimento dos anos 70 e a primeira Ball chegou aqui há cinco anos.
Também tem uma coisa muito importante que as pessoas trouxeram para o Brasil, elas queriam muito fazer a coisa certa e não fazer um evento que fosse parecido. Isso demanda muita pesquisa, porque é um universo todo. Universos e linguagens que conversam com pautas identitárias, com a realidade dessas pessoas, com problemas raciais, com um monte de coisa. Não é algo que pode ser abordado de qualquer jeito e isso foi importante pra galera, dos pioneiros, porque eles tiveram muito cuidado em fazer e trazer a coisa para o Brasil. Claro que a Cultura Ballroom é uma cultura que vai se desdobrar a partir das demandas do local, porque as nossas demandas, no Brasil, não são as mesmas dos Estados Unidos. Hoje em dia, a gente começa a ter coisas diferentes. Por exemplo, no Brasil, a gente tem categorias, em Balls, específicas para as pessoas não-binárias, lá nos Estados Unidos não é assim. Ou você é male figure ou é female figure. Existem pessoas sempre debatendo sobre colocar ou não. E pra gente é muito normal abrir categorias para as pessoas que não se enquadram nessa ideia binária de gênero.

Por exemplo, no Brasil, a gente vai ter categoria de samba no pé, não é uma categoria que existe nos Estados Unidos. Ou batekoo, que é outra categoria nacional. Então a Ballroom também vai se construindo com o local onde ela tá e com as demandas daquelas pessoas.

Tem os códigos, tem as linguagens, mas é uma coisa viva.
Exatamente! Exatamente!

“Acho que me reconhecer enquanto minoria foi uma coisa muito importante, apesar de eu ser um homem branco e cis. A Cultura Ballroom foi criada por pessoas pretas e, principalmente, pessoas transexuais”

Rayan já caminhou em diversas categorias da Ballroom, principalmente, nas de dança

Tu acabou começando a estudar, pesquisar a Cultura Ballroom mais por aquela viradinha de chave: “isso aqui bate com algumas coisas que eu já me interessava e tem alguma coisa que me chama atenção”.
Acho que me reconhecer enquanto minoria foi uma coisa muito importante, apesar de eu ser um homem branco e cis. A Cultura Ballroom foi criada por pessoas pretas e, principalmente, pessoas transexuais. A gente tem que sempre colocar essas pessoas em evidência e fazer com que eles protagonizem esse movimento, porque é um movimento criado por corpos que sofreram sistematicamente, de uma forma estrutural. Porém, a Cultura Ballroom é um espaço onde você pode descobrir as suas próprias potências e você pode ganhar uma auto confiança através de aceitar quem você é de verdade. Pra mim, foi a coisa mais importante e eu acho que é uma estrada que eu percorro até hoje. A Cultura Ballroom é que me ajudou a encontrar essa confiança pra ser o total que eu posso ser. Isso é o que mais me chamou atenção, olhar e ver essas pessoas que não têm medo, que tão vivendo aquele momento de verdade. Aquela dança não é uma coisa mecanizada, é uma dança viva. É uma coisa que as pessoas estão vivendo de fato.

Isso tem um pouco de ligação com o fato de tu se entender enquanto artista ou isso vem antes?
Difícil. Eu acho que eu me entendi artista antes, mas só com o contato com o Vogue e a Cultura Ballroom é que eu entendi o quão potente era criar a própria linguagem e o quão potente era você se utilizar de algo que não precisava ser extremamente polido. Porque, quando a gente vai para os festivais de competição, existe um perfeccionismo. Tem toda uma fórmula para uma coreografia ser boa. E comecei a ver sobre a cultura e assistir Ball no Youtube e aquilo não tem organização, aquilo é vivo, as pessoas estão improvisando naquele momento. Não é coreografia. Aí, eu comecei a ver o quanto eu não precisava ligar pra isso. Eu preciso ouvir a música, eu estou dançando na música, mas eu tô numa energia que é muito minha, eu não tô respondendo a música, não tô sendo menor que a música — que é muito a relação que se cria nesses festivais.

Essa coisa viva foi o que me puxou e percebi que eu poderia ser um artista diferente. Acho que o momento que eu me afastei da dança foi importante, porque foi nesse momento que comecei a pesquisar Cultura Ballroom. Então essa puxada me fez questionar sobre várias coisas, sobre o que é ser artista, sobre o que eu produzo enquanto artista. Então, o artista vem antes, só que só com esse contato que eu pude perceber que eu podia ser eu, descolado daquele grupo, daquela lógica e criar uma coisa que fosse a minha identidade e que mostrasse que fosse eu de fato, sem precisar me preocupar tanto com essas formas.

“É um evento que tá em prol daquelas pessoas. Todo mundo quer assistir porque é sobre o momento que vai ser criado e esse momento nasce da performance das pessoas que estão batalhando”

Não foi ali que tu se descobriu artista, mas te moldou. Tu explicou um pouco do que é a Ball, mas o que é estar nessa Ball?
Como eu posso te explicar, é uma experiência muito única. Porque é uma competição, mas é um evento que tá em prol daquelas pessoas. Todo mundo quer assistir porque é sobre o momento que vai ser criado e esse momento nasce da performance das pessoas que estão batalhando. Esse jogo de ter duas pessoas ao mesmo tempo e elas ficam tentando roubar a atenção uma da outra o tempo todo, vai criando isso que é tão interessante de assistir. Tu vai se percebendo muito instigado por aquilo, porque a batalha acontece e tu começa a pensar: “Ah, não gostei dessa roupa. Ah, mas achei a caminhada da gata muito boa”. Isso vai gerando a coisa.

Inegavelmente, o Vogue Femme, que é um dos estilos de vogue, tem uma energia muito única de dançar e, quando uma pessoa faz uma performance boa, o evento todo vira para aquele momento. A dança tem uma própria estrutura de compasso quaternário, a gente vai contar um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito. E o dip ele normalmente acontece no oito. Então, você dança os oito compassos já construindo uma história para que o dip seja o ponto alto e crave o fim dessa história. Quando uma história é muito boa, todo mundo da Ball vai dar o dip junto com a pessoa, quando ela cair no chão. Então, existe todo esse jogo que molda esse espaço pra que essa performance aconteça, tenha essa energia e você queira participar. Nem sempre é sobre o grand prize, é sobre quem cria o momento dentro da Ball e que artifício você cria pra esse momento. Não sei se eu consigo colocar em palavras o que é vivenciar uma Ball de fato, porque são vários momentos e tu vai esperar de cada categoria uma coisa completamente diferente.

Tu já organizou uma Ball e tu falou da Ball do ano passado que foi virtual. Como foi isso, passar todo esse momento que tu tá tentando me descrever pra frente do computador?
Eu já tinha organizado algumas outras Balls com a House que eu faço parte. Atualmente eu moro em Canoas, aí, através do fomento da Lei Aldir Blanc, eu consegui subsídio pra produzir o Voguing in Canoas e tentar fomentar a cena daqui de alguma forma. Foi um desafio. Eu organizei junto com a Mariah Kínisi, que é da House of Kínisi. Então eu fiz de uma forma independente, mas carregando o nome da minha House. Quando começou a pandemia, teve um movimento de mudar as Balls pro digital e aí começou a ser muito feito pelos stories do Instagram. A galera começou a não querer participar, porque era muito rápido. Mas a gente não teve como fugir desse negócio de gravar vídeo.

É muito difícil, ainda mais com os poucos recursos que a gente tem dentro da arte, conseguir fazer alguma coisa completamente ao vivo. E a gente teve gente de todo Brasil participando, inclusive de fora do Brasil. Então era meio difícil organizar essa coisa do ao vivo. A forma com que eu e a Mariah encontramos de fazer uma Ball foi pegar os vídeos dessas pessoas e tentar simular o que seria mais próximo de uma Ball, que é as duas pessoas dançando ao mesmo tempo. A gente copiou esse formato do BH Vogue Fever que foi o primeiro evento que fez isso. Então a gente manteve, durante o processo, em segredo quem tinha vencido pro grande público. Primeiro, a gente fez um momento aberto no Instagram, pra todo mundo que quisesse participar, e as pessoas foram mandando esses vídeos. Aí o júri escolheu oito pessoas pra cada categoria e essas pessoas passaram por essa parte das batalhas de vídeo. Depois, a gente editou tudo isso, compilou num vídeo só e exibiu ao vivo no Youtube. A gente também tentou trazer essa coisa do momento e isso mobilizou a comunidade, já que não tinha como assistir as batalhas antes. Dessa forma, a gente criou essa aproximação o máximo que a gente conseguiu com o que seria uma Ball presencial.

Rayan não conseguiu se adaptar as batalhas virtuais, que se tornaram frequentes devido a pandemia (Foto: arquivo pessoal)

E pra ti que organizou e enquanto pessoa que dança o Vogue, como foi pra se adaptar?
Então, eu fui uma pessoa que não conseguiu se adaptar ao formato digital e, desde então, não tenho batalhado. Aceito convites de júri e participo, porque é uma forma de fomentar a cena. Mas eu não sinto que tem o mesmo apelo que tu batalhar com uma pessoa do teu lado e ter todo mundo gritando o nome da tua House. E isso é vital pra minha performance, pra me sentir dentro desse momento. Conseguir encontrar a potência da batalha. Teve várias pessoas que transitaram tranquilamente. Que começaram a gravar vídeo e mandar para Ball e acharam até melhor. Mas também tiveram algumas pessoas tipo eu que diminuíram muito, que caminharam em pouquíssimas Balls, ou nem caminharam, porque não conseguem se aproximar. Eu tenho um problema de auto percepção, aí gravo meus vídeos, eu vejo um milhão de vezes e vou achar todos os defeitos e, por conta disso, eu acabei só assistindo e participando.

Agora tu dá as aulas, né? Tu já fazia isso no Rio ou foi quando tu voltou [pra Canoas]?
Eu comecei a dar aula de Vogue em 2019, na UFRJ, num projeto de extensão chamado Comunidança. Eu tinha muito medo de dar aula, ficava muito nervoso. E aí, a primeira pessoa que deu aula de Vogue, na UFRJ, foi o Father da minha House. Logo depois, foi a Mother. E depois ela também teve que sair, aí eu assumi, juntamente com a Luísa, que é minha irmã da Cosmo, a Princesa da House. Só que aconteceram várias coisas e eu acabei seguindo com a turma sozinho. Foi assim que eu desmistifiquei esse lugar e me iniciei a dar aulas. E aí eu vou dar aula de Vogue, porque é isso que eu acredito e é isso que eu estudo. Mais ou menos na metade do ano, eu comecei a dar aulas numa academia de dança lá no Rio de Janeiro. E aí, quando eu voltei pro Rio Grande do Sul, eu fiquei muito com essa vontade de tá fomentando a cena aqui. E de poder criar acesso ao conhecimento e poder criar momentos que eu não tive. Esse também foi o maior motivo de fazer o Voguing in Canoas. Que é justamente estar fomentando a cena aqui e as pessoas daqui verem que esse tipo de coisa acontece e é real. Que é tão acessível, é só estudar sobre a cultura e respeitar ela, que a gente pode tá produzindo. Quando eu cheguei aqui, nessa vontade, eu comecei a oferecer e consegui. Agora, dou aula em uma academia de dança de Porto Alegre, a Reticências.

“A gente vai batalhar com outra pessoa, mas a maior batalha que você vai ter é com você mesmo. Porque, se colocar naquele espaço, enfrentar aquilo, se enfrentar, mostrar que você é confiante, é muito difícil”

E como é dançar Vogue?
É uma coisa muito engraçada. Eu sempre tive um medo muito grande de improvisar. Eu sempre fui uma pessoa com muita energia. E o Vogue tem essa coisa do improviso. E, pra mim, era extremamente difícil caminhar numa Ball. Eu já saí quase tendo uma crise de ansiedade, porque, pra mim, era muito difícil encontrar essa confiança. Então, viver isso eu acho que é a coisa mais interessante. Porque é um local tão potente, quando você se encontra. A gente costuma falar muito isso dentro da cultura, a gente vai batalhar com outra pessoa, mas a maior batalha que você vai ter é com você mesmo.

A gente se prepara pro imprevisível e eu acho que isso é a maior riqueza de dançar o Vogue, porque você nunca sabe o que a pessoa que tá dançando junto com você vai fazer. E, ao mesmo tempo, você tem que tá domando tudo que tá sentindo naquele momento, pra conseguir mostrar quem você é de verdade e conseguir ter essa confiança de caminhar e mostrar sua verdade, contar a sua história. Se você tem uma história pra contar, a Ballroom é o lugar. Você tem que pisar naquele lugar, vivenciar e mostrar a sua história. É um jogo que você vive completamente. Acaba sendo uma experiência muito única, que é difícil de enfrentar. Tem essa coisa que acaba sendo super metafísico, super filosófico, mas que é muito da vivência de caminhar numa Ball e conseguir ter a confiança de olhar pra cima e continuar mostrando a sua verdade.

“Dança é a linguagem de cada pessoa e cada pessoa pode descobrir a sua”

E pra frente, o que tu espera pro teu futuro, enquanto carreira, tuas ambições, enquanto artista, sobre a Cultura Ballroom etc?
Olha, a linguagem do Vogue e a Cultura Ballroom me ajudaram muito na questão da auto confiança. Acho que é a coisa que eu mais carrego comigo e, hoje em dia, eu tenho a confiança de enfrentar locais e situações que antigamente eu ficaria com medo e questionando a minha própria capacidade de fazer isso. Hoje em dia não, eu coloco o pé na porta.

As minhas expectativas enquanto artista: eu pretendo continuar trabalhando, principalmente, com a linguagem da dança. E eu estudo outras coisas além da Cultura Ballroom e do Vogue, mas a ideia é justamente pegar isso que eu aprendi e desenvolver uma linguagem própria de dança. De tentar revolucionar um pouco a ponto de conseguir trazer alguma coisa nova pra mesa. Não precisa ser super revolucionária, mas acho importante que a gente consiga propagar e promover essa ideia de que dança não é repetição. Dança é a linguagem de cada pessoa e cada pessoa pode descobrir a sua. A ideia é a libertação desses rótulos que sempre vemos e aí isso conversa, em vários níveis, com a cultura e toda a minha vivência.

Já que estamos falando do teu futuro enquanto artista, o que tu espera da Cultura no Brasil, pro futuro, já que ela começou tarde em comparação com o local de origem, mas está caminhando?
A gente tem dois níveis de cena: a cena Kiki e a Mainstream. A cena Mainstream é uma cena internacional. A cena Kiki é uma cena regional dentro do país. Pra falar sobre o futuro, a cena Kiki, no Brasil, tem crescido cada vez mais e a gente tem mais de 40 Houses espalhadas pelo país todo. E essas Houses funcionam em diferentes frentes. Hoje, por exemplo, vou sair daqui e vou pra uma outra reunião com a galera da Ballroom Rio, porque tem duas gatas que são T, pessoas trans, e tão quase sendo despejadas. Vamos tentar conversar enquanto comunidade pra ver o que podemos fazer pra ajudar essas pessoas, porque tem uma questão social muito forte. A cena Brasil tem isso e eu espero que essa noção de comunidade cresça cada vez mais, assim como a gente agregue mais pessoas e consiga passar a informação correta.

Enquanto cena Major, o Brasil chama muito atenção. As pessoas do Brasil dançando tem um diferencial e cada vez mais Houses de lugares que têm cenas muito fortes olham para o Brasil e querem adotar filhos aqui. De uma certa forma, a América Latina trouxe essa discussão da categoria de pessoas não-binárias pra cena Nova York. Eu sinto que a Ballroom América Latina tá revolucionando esses códigos. Tá mostrando que a gente pode fazer Ballroom, que a gente tá respeitando a cultura, mas a gente tem as nossas demandas e elas precisam ser respeitadas também. A cultura é viva e a gente pode fazer uma coisa diferente e que agregue mais pessoas, e não reproduzir essa lógica de discurso binário. Então eu vejo muito isso pra cena Major.

“Aprender com essas pessoas, pra desconstruir essas coisas, tentar mudar essa realidade e construir uma nova onde as pessoas possam ser quem elas são independente de qualquer coisa”

Um pouco disso que tu falou, de trazer a informação correta e agregar mais pessoas, eu te pergunto: se alguém, hoje, que nem sabe o que é Vogue, o que é Cultura Ballroom, mas se interessou e quer começar a entrar nesse meio, o que tu indica?
Olha, a primeira coisa que eu diria é pra assistir Paris is Burning, apesar de bem controverso, é uma peça importantíssima pra retratar de onde veio a cultura e o que ela é de fato. E pra pessoa viver a Cultura Ballroom no Brasil, eu diria pra procurar na sua cidade ou no seu estado pessoas que também vivem isso. Procurar pessoas que são referências nacional ou no seu estado e tentar conversar com elas, normalmente, as pessoas da cena são super abertas. É legal assistir Pose, porque, apesar de ser uma série fictícia, ela tem personagens inspirados em pessoas reais, principalmente pessoas que estão no Paris is Burning. E é muito legal ver essa retratação e ver como a cena evolui.

Principalmente, ver com um olhar mais sensível vivências de pessoas T, pra entender melhor essa realidade. E também Legendary, porque é um Reality Show que mostra como a Ballroom é de verdade. É muito legal porque é um Reality feito com pessoas e códigos da Ballroom, pra pessoas de fora assistirem. E tem uma série de outros documentários e até textos acadêmicos aqui no Brasil. Se for olhar no Youtube, você encontra canais inteiramente dedicados pra Balls no Brasil. E é muito fácil encontrar essas páginas no Instagram e consumir conteúdos.

Pra finalizar, de tudo o que a gente conversou, tem alguma coisa que mencionamos que tu gostaria de enfatizar ou teve algo que não falamos, mas é importante comentar?
Acredito que tem que enfatizar, de novo, que a Ballroom é um movimento afro diaspórico, que foi criado a partir de discriminações que as pessoas, principalmente, negras, latinas e pessoas transexuais passavam. E ela nasce da ideia de criar um local que fosse seguro pra essas pessoas. Sempre lembrar de que precisamos, sim, respeitar pessoas transexuais dentro da cena e respeitamos muito. Precisamos, sim, colocar pessoas negras em evidência. E dizer que esse movimento foi criado por corpos como os dessas pessoas e não esquecer disso.

Porque, enquanto um homem branco e cis, eu tenho que conhecer o meu lugar dentro dessa cultura e comunidade e, se eu posso oferecer suporte para alguém, eu tenho que ter consciência que eu tenho que dar esse suporte. Se não, eu não faço parte da comunidade. Tem que tá ajudando as pessoas, tá escutando elas e tá sempre sensível para mudar as estruturas e as lógicas dessa sociedade tão fodida. Aprender com essas pessoas, pra desconstruir essas coisas, tentar mudar essa realidade e construir uma nova onde as pessoas possam ser quem elas são independente de qualquer coisa.

Acaba sendo muito mais do que só uma dança, só uma competição, tem muito mais coisa envolvida.
Exatamente. E é muito engraçado, porque, enquanto acadêmico de dança, a gente começa a se questionar: qual corpo está executando essa dança? Esse corpo tá executando essa dança onde? Quem tá em volta? Essas coisas vão disparando novas chaves. Pra mim, pelo menos, a Ballroom é uma coisa que mexe em toda essa estrutura e te faz olhar para aquilo e pensar: realmente, tenho que me questionar sobre isso e me colocar no meu lugar.

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Lisandra Steffen
Redação Beta

Às vezes, tiro fotos de passarinhos e escrevo (sobre outras coisas). Gosto muito de usar vírgulas (e parênteses).