“Akilombamento” contra fraudes

A política de cotas raciais das universidades brasileiras passa por um momento de reavaliação e mudanças

Vanessa Souza
Redação Beta
7 min readMar 16, 2018

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Manifestantes protestam contra mudanças no sistema de verificação das cotas raciais, na UFRGS. (Foto: Carla Zanella Souza/Arquivo pessoal)

Quantos negros há na sua turma da faculdade? Quantos negros estão entre os formandos das cerimônias para as quais você foi convidado? Quantos estavam na sua formatura? Algum negro já foi seu professor na faculdade? As respostas para estas perguntas se transformam em combustível para Carla Zanella Souza lutar por uma política de cotas justa e efetiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela é uma das representantes discentes do Conselho Estudantil (Consun) da universidade, onde se formou em Ciências Sociais e hoje estuda Direito. Desde o dia 7 de março, Carla está ocupando a reitoria junto a movimentos negros que protestam contra as mudanças no sistema de verificação das cotas raciais.

Desde o dia 7 de março, Carla está ocupando a reitoria da universidade. (Foto: Carla Zanella Souza/Arquivo pessoal)

As questões sobre a política de cotas raciais são complexas e ainda hoje passam por um processo de construção e entendimento. As cotas fazem parte das chamadas políticas de ação afirmativa, que se caracterizam por medidas temporárias que visam corrigir desigualdades históricas. Embora desde o início dos anos 1980 já se falasse de ações afirmativas para a população negra, segundo informação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, as cotas não foram previstas expressamente no texto da Constituição Federal de 1988. No entanto, como conta Alynne Ferreira Nunes, advogada especializada em Direito Educacional, a Constituição assegurou a autonomia universitária e o direito à igualdade. Então, no início dos anos 2000, cedendo à pressão dos movimentos negros, as universidades federais começaram a criar regras próprias sobre cotas.

Na UFRGS isso aconteceu em 2007, quando, a partir de uma ocupação da reitoria pelo movimento negro, foi instituído o sistema de cotas — iniciado no ano seguinte. “A movimentação da época acontecia de fora para dentro, pois existiam poucos negros na universidade”, comenta Carla. Mesmo com toda essa mobilização, só em 2012 o Supremo Tribunal Federal foi declarar a constitucionalidade das políticas educacionais de cotas. A Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas, determina que universidades e institutos federais reservem 50% de suas vagas para estudantes de escolas públicas e que, dentro dessa porcentagem, outras cotas sejam reservadas por critérios raciais. As cotas para pessoas pretas, pardas ou indígenas devem ser preenchidas de acordo com o percentual dessas etnias em cada estado.

Manifestação na UFRGS foi denominada de “Akilombamento” da reitoria. (Foto: Carla Zanella Souza/Arquivo pessoal)

Com essa lei, as universidades se tornam mais plurais e ganham uma significativa presença de negros, certo? Não foi o que Carla presenciou. Ela, junto com alunos de movimentos negros, observou que “em turmas em que se formavam 60, dois ou três eram negros, às vezes nem isso. Ontem teve uma formatura aqui, que a gente olhou, e não tinha nenhum.” Foi então que começou a saga para combater aquilo que é o motivo pelo qual ela e seus companheiros estão agora dormindo no chão da reitoria: as fraudes.

Como a entrada de estudantes pela reserva de cotas raciais acontecia através da autodeclaração, existia uma abertura muito grande para fraudes.

“Na verdade, quando lutamos e montamos a política de ações afirmativas, nós entendemos que havia toda uma problemática das pessoas se identificarem enquanto negras, porque isso significa você assumir publicamente o racismo que você sofre. Então o fato da pessoa se autodeclarar como negro já seria uma vitória”, lembra Carla.

Devido às suspeitas e denúncias, em 2017 foi montada uma comissão com membros do Conselho de Extensão e Pesquisa e com o Conselho Universitário da UFRGS a fim de acompanhar a política de ações afirmativas e propor melhorias. Essa comissão fez um estudo sobre fraudes, denunciou em torno de 334 alunos, dos quais 239 foram identificados como fraudadores — antes desta, havia outras 15 denúncias feitas ao longo dos 10 anos do sistema de cotas na universidade, mas até agora nada aconteceu.

A comissão também foi responsável por montar a legislação da decisão 212 do Conselho Universitário, que instituiu a criação da Comissão Permanente de Verificação das Autodeclarações Étnico-raciais (CPVA) para o vestibular da universidade de 2018 — “e que é permanente, até que a política de cotas seja reavaliada na universidade”, afirma Carla.

A CPVA tem o papel de avaliar o fenótipo dos alunos (características físicas) e fazer a aferição da sua inscrição. Ou seja, decide quem é aceito ou não dentro da política de cotas. Ela é composta por membros indicados pela universidade, pelos estudantes e por movimentos sociais e funciona da seguinte forma: são três pessoas que fazem a avaliação, que é exclusivamente fenotípica. O candidato chega em uma sala, vê um vídeo sobre a política de cotas, é recepcionado pelos movimentos negros e depois vai para o espaço de aferição, que não chega a ser uma entrevista e nem é individual — as pessoas são chamadas de três em três e é avaliado exclusivamente o seu fenótipo; em seguida, elas assinam a autodeclaração na frente da comissão. Foi o que aconteceu no último vestibular.

Esse tipo de ação é possível porque, como frisa Alynne, “embora a lei apresente um parâmetro a ser seguido pelas instituições de ensino federais, com base em sua autonomia universitária, a universidade pode criar regras mais específicas para implementá-la”.

“Então, aqui na UFRGS a gente estabeleceu esse critério, que é o critério fenotípico. Órgãos como Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional do Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Justiça validam esse critério. Além disso, os movimentos negros entendem que o racismo no Brasil não é de origem, ele é ‘de marca’, então a gente precisa ter uma comissão de aferição que se baseie nisso”, explica Carla. A decisão, no entanto, encontra dificuldades para avançar — e aqui voltamos ao que desencadeou a ocupação da reitoria na última semana.

Os 239 alunos acusados de fraude procuraram o MPF via procurador — mesmo sem terem ainda a sua matrícula indeferida — e esse procurador escreveu uma recomendação para a Universidade. Essa recomendação diz, entre outras coisas, que a universidade deve estabelecer um lugar onde os candidatos possam recursar e apresentar sua defesa, e que as pessoas que forem julgar essa defesa não sejam as mesmas que produziram o indeferimento.

Segundo Carla, a comissão que criou a CPVA já havia previsto isso: “Se um dos três membros da comissão entende que o candidato não é um negro ou uma negra, esse candidato pode apresentar um recurso para a própria comissão. E a comissão então produziria um relatório, a partir da defesa dessa pessoa, de deferimento ou indeferimento, escrito por outros que não participaram da sua primeira indeferição”.

No entanto, a universidade resolveu estabelecer, via portaria, uma comissão de recursos com critérios de ascendência até os avós. Ela também definiu, inicialmente, que seriam professores e servidores indicados pela universidade que iriam produzir um relatório e que este seria o deferimento ou o indeferimento final. A decisão dos recursos não passaria mais pela comissão de aferição (CPVA). “Por isso dizemos que a comissão perde a sua autonomia, pois ela não julga mais (os recursos)”, frisa Carla.

Depois de 10 dos 17 membros da comissão de aferição pedirem afastamento e de duas reuniões com a universidade, os movimentos de estudantes negros, encabeçados pelo coletivo Balanta, ocuparam a reitoria da UFRGS. A manifestação foi denominada de “Akilombamento” da reitoria.

Movimentos de estudantes negros ocupam a reitoria da UFRGS. (Foto: Vitória Famer/Rádio Guaíba)

“Devido a tudo isso e depois de um diálogo não efetivo com a reitoria, achamos que, se a decisão for mantida da forma que está — com critério de ascendência e não fenotípica —, ela acaba legislando e instituindo as fraudes na universidade, porque ela permite que pessoas brancas entrem pelas cotas reservadas a negros, pardos e indígenas”, afirma Carla.

Advogada que defende muitos dos alunos acusados de fraude, Wanda Siqueira contesta a criação da comissão de aferição e seus critérios. Para ela, características como cabelo, nariz e lábios não definem a raça de uma pessoa. “Além disso, acredito que é importante levar em consideração a ascendência, pois se a pessoa tem entre os pais ou avós algum negro, ela consequentemente tem um passado com menos oportunidades. Acho que os estudantes deveriam se unir em vez de fazer essa seleção, para que a política de cotas não acabe”, diz.

Em nota divulgada no site oficial da UFRGS um dia após a ocupação, a universidade declarou que foi tomada de surpresa e que entendia que o diálogo estava encerrado. No dia 9 foi autorizada a reintegração de posse do local – liminar solicitada pela própria universidade. A decisão permitia, inclusive, a presença da Brigada Militar caso os estudantes não deixassem o prédio. O movimento se negou a sair, e no momento a liminar está suspensa. A juíza federal substituta, Ana Inês Algorta Latorre, considerou mais adequado aguardar o resultado da audiência de conciliação — que está previsto para acontecer amanhã (16), na sede da Justiça Federal.

A movimentação para o combate às fraudes na política de cotas é algo que vem acontecendo em todo o Brasil. Ao menos 18 instituições federais já têm comissões para analisar candidatos. Embora o sistema de cotas venha sendo trabalhado e discutido efetivamente desde os anos 2000, somente 12,8% dos estudantes em instituições de ensino superior brasileiras, entre os 18 e os 24 anos de idade, são negros (pretos e pardos), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a 2015.

“Eu não gosto de estar aqui (na ocupação), eu estou aqui porque existe uma pauta pela qual eu lutei antes de estar aqui, e pela qual, antes de mim, outras pessoas lutaram. Eu quero que um dia a gente consiga pacificar essa questão. Vivemos em uma sociedade excludente e, se não acabarmos com essa disputa na legitimidade das cotas, nós não vamos conseguir avançar para outras pautas. Para o movimento, existe um racismo constitucional que explica essas últimas decisões da universidade, e é por isso que a gente radicaliza a nossa luta”, finaliza Carla.

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