Mulheres só podem fazer laqueadura com autorização do marido

A falta de liberdade feminina em relação ao seu próprio corpo está institucionalizada pela Lei do Planejamento Familiar

Carol Steques
Redação Beta
6 min readOct 6, 2021

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Por muito tempo as mulheres se submeteram às ocupações destinadas a elas pela sociedade machista, de cuidar do lar, gerenciar a casa e atender aos filhos e ao marido. Hoje em dia, as mulheres lutam por liberdade, autonomia e igualdade de direitos. Um desses direitos é o de decidir sobre seu próprio corpo. A principal função exercida pelas mulheres tem sido a de reprodução: a “magia” de ser mãe. Porém, de acordo com um estudo realizado pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira de Ginecologia e do Think about Needs in Contraception (TANCO), quase 40% das mulheres brasileiras optam por não serem mães.

A Lei do Planejamento Familiar (Lei 9263/1996) ressalta que todas as pessoas, tanto mulheres como homens, têm o direito à esterilização voluntária: a laqueadura, no caso das mulheres, e a vasectomia no caso dos homens. Porém, quando o assunto é a laqueadura, diversos tabus surgem e o direito das mulheres somem.

Para realizar a esterilização voluntária, o cônjuge deve assinar uma autorização, de acordo com a lei. Quando se trata de laqueadura, muitos homens não assinam o termo de consentimento e as mulheres não podem fazer a cirurgia. M. de 36 anos, é casada há 15 anos e seu marido não aceita assinar a autorização. Ela tem um filho de seu primeiro relacionamento, e há 5 anos, conversa com o seu companheiro o quanto gostaria de fazer a cirurgia pois não quer mais ter filhos. Porém, ele não aceita.

“O corpo é meu. O medo de engravidar é meu”, afirma M.

“Eu venho conversando muito com ele e tentando convencê-lo, quero muito fazer a laqueadura. Eu me sinto triste, é como se eu fosse propriedade dele”, relatou M. Ela conta que eles já até fizeram terapia por conta disto, mas mesmo assim, nada mudou a opinião do marido. “Eu já pensei em separação, porque ele não pode me negar isso”, explica.

De acordo com a Lei do Planejamento Familiar, para realizar o procedimento de laqueadura ou vasectomia, deve-se ter no mínimo 25 anos ou dois filhos vivos, além da autorização do companheiro. Patrícia Marxs, advogada, mestranda em Direito e ativista digital, explica que o simples condicionamento do cônjuge a um método contraceptivo ou a uma esterilização, como no caso da laqueadura, constitui uma violência sexual, com base na Lei 11.340/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), art. 7º inciso III. “Ou seja, é um crime condicionar a anuência do marido à realização da laqueadura. A mulher pode judicializar essa situação”, ressalta.

De acordo com Patrícia, a mulher que tem sua vontade negada pode seguir três caminhos: entrar com uma ação na justiça para poder fazer o procedimento; realizar o divórcio; ou optar pela colocação de um DIU ou de outro método contraceptivo que seja reversível, pois para estes não existem proibições legais. “Infelizmente, a Lei do Planejamento Familiar ainda não foi atualizada, o art. 10º necessita realmente de uma modificação com urgência. O que eu indico é que a mulher busque um método que seja mais eficaz, como o DIU” declara.

“Conscientize-se de que são as pessoas que são responsáveis por modificar essas leis, são eleitas por nós mesmos e é importante a gente saber e ter consciência na hora de escolher”, explica Patrícia.

M. conta que se acabasse engravidando, acredita que a responsabilidade com a criança seria só dela. De acordo com dados da Oxfam de 2020, 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito informalmente pelas famílias, e desses 90%, quase 85% é feito somente por mulheres, desde o cuidado com as crianças até a arrumação da casa.

Não é só em relação a autorização dos companheiros que as mulheres encontram dificuldades na hora de realizar o procedimento. Iza Lopes Guimarães é mãe de três filhos, e decidiu que a sua terceira gestação seria a última. Ao procurar profissionais da área da saúde em Naviraí (MS), onde morava no início de seu pré-natal, lhe foi dito que não tinha o direito de realizar a laqueadura junto com a cesariana. “O processo todo foi dureza. Me senti muito mal e revoltada, porque eu fiquei cerceada do meu direito de escolher sobre o meu próprio corpo e não tive apoio dos médicos”, explica.

Quando retornou para a sua cidade natal, em Itaporã (MS), estava com 30 semanas de gestação e, para a sua surpresa, o processo todo da papelada para fazer o procedimento da laqueadura foi bem mais fácil, realizado em apenas uma semana. “Em Itaporã foi tranquilo. Ali eu estava me sentindo muito feliz por ser ouvida e apoiada. Agora a sensação é de alívio e muita felicidade”, relata Iza.

Existem diferentes métodos para a laqueadura tubária, como cauterizar, unir ou cortar as trompas. Um dos procedimentos mais comuns é a salpingectomia, que consiste na retirada de uma ou das duas trompas. O melhor método para cada pessoa é discutido com o médico cirurgião.

Veja os diferentes métodos de laqueadura tubária. (Reprodução: Facebook/Doutor Renato Kalil)

Para realizar o procedimento, a mulher tem que passar por várias etapas. João Sabino Cunha Filho, Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Ginecologista e Obstetra, conta que o tempo previsto em lei entre a decisão da mulher e a cirurgia é de no mínimo 60 dias, passando por consultas com psicóloga e assistência social. Para ele, o papel do médico é orientar.

Alessandra Padovan, realizou o procedimento de fimbriectomia — que consiste na junção da salpingectomia com a retirada das fímbrias — em 2020, através do Sistema Único de Saúde (SUS), com 25 anos e sem filhos. Ela conta que teve todos os seus direitos respeitados, apesar de perceber que alguns profissionais não concordavam com a sua decisão, em nenhum momento se sentiu pressionada ou mal informada.

“Foi um sonho realizado. Eu falei exatamente isso para os médicos, que eu estava em busca do meu sonho, que era fazer um método definitivo, pois eu não queria mais ficar tomando remédio. Eu acho que a gente se submete a muitos hormônios e a muita medicação ao longo dos anos”, conta Alessandra.

O médico João Sabino, afirma que a contracepção está inserida no direito fundamental de qualquer ser humano. “Eu acho que a gente tem que liberar o aborto, assumir que o estado é laico e que quem manda no teu corpo é tu. Se tu queres realizar um procedimento como uma ligadura tubária, colocar um DIU ou até mesmo abortar é o teu direito.”

“ Daqui a pouco tu vai ter que estar pedindo autorização para o teu marido para tomar um anti-hipertensivo, tratar a tua diabete e tirar uma unha encravada. A gente tem que evoluir um pouquinho mais nisso”, acredita o médico.

Em seu projetos social no Instagram, Patrícia Marxs fala sobre métodos contraceptivos (Reprodução: Instagram/@laqueadurasemfilhossim)

Para auxiliar, orientar e tirar dúvidas das mulheres em relação a laqueadura, Patrícia Marxs desenvolveu o projeto social virtual “Laqueadura sem filhos sim”, no Instagram (@laqueadurasemfilhossim). Neste espaço ela posta vídeos e conteúdos sobre maternidade por escolha e acesso aos métodos contraceptivos: “começamos no Instagram em 2019. Logo no terceiro mês do projeto recebemos relatos de que alguns planos de saúde exigiam a autorização do marido para a inserção do DIU e denunciamos essas situações”. Patrícia conta que somente neste ano, com a visibilidade da mídia para o assunto, que este debate veio à tona.

Patrícia explica que não há nenhuma lei até agora que exija que se tenha filhos para colocar o DIU, ou que necessite da autorização do cônjuge: “Isso é completamente fora do que diz a lei e hoje nós temos uma portaria que regulamenta o DIU de cobre, que é a portaria 3265/2017. É o máximo que pode ser aplicado a este método contraceptivo.” Não é compatível exigir para o DIU os mesmos pressupostos de esterilização voluntária de uma laqueadura ou vasectomia , porque o DIU é reversível.

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