Museólogo: “Mediador do encontro entre o homem e o seu patrimônio”
Profissional especializado celebra seu dia em 18 de dezembro. Conheça a rotina de quem trabalha nos museus de Porto Alegre
Quem visita pela primeira vez uma cidade costuma colocar os museus no roteiro da viagem. O espaço oportuniza conhecer a história material e imaterial, pois reúne documentos que remontam ao surgimento daquela localidade. Para que uma exposição aconteça, um profissional cuida de muitos detalhes: inicia na escolha dos objetos que integrarão a mostra, a posição ocupada no espaço, a linguagem para apresentação das obras, entre outros pontos.
Os profissionais responsáveis por observar essas questões são os museólogos e as museólogas. No Brasil, em 18 de dezembro é comemorado o dia de quem integra esse campo de atuação. Para conhecer mais detalhes dessa carreira, a Beta Redação entrevistou duas representantes do segmento que atuam em espaços culturais de Porto Alegre.
Luciana Brito trabalha há dois anos no Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, na Rua João Alfredo, no bairro Cidade Baixa. No espaço cultural, em função do pequeno número de servidores, ela atua na conservação e é a responsável pela elaboração do plano museológico e do plano de conservação dos acervos. “Também faço pesquisa histórica, atendo pesquisadores, pois nosso acervo fotográfico é uma referência, e auxilio no setor de acessibilidade, realizando audiodescrição de imagens e narração de vídeos”, descreve.
A rotina de Brito passa pelo monitoramento dos índices de umidade relativa do ar e de temperatura, até a conservação de objetos que fazem ou farão parte do museu. Atualmente, ela realiza a higienização e digitalização do acervo do Studio Os2, que foi doado pelos herdeiros do fotógrafo Wolfdietrich Wickert. “Faço o tratamento dessas imagens e, em parceria com uma colega, identificamos as fotos”, completa.
Considerada a primeira instituição museológica do Estado, o Museu Julio de Castilhos está localizado na Rua Duque de Caxias, próximo do Palácio Piratini, em Porto Alegre. No espaço cultural, a museóloga Doris Couto trabalha diretamente com a administração desde o dia 2 de fevereiro de 2019. Antes, a profissional atuou por cinco anos no Ecomuseu da Cultura do Vinho, na vinícola Dal Pizzol.
Na administração do local, a rotina de Couto é semelhante à de qualquer gestora, pois começa nos recursos humanos, passa pelas edificações, bens móveis e articulação de ações interinstitucionais, chegando até o fomento de parcerias. De acordo com ela, seu papel está integrado com questões para potencializar o acervo, a pesquisa, a exposição e a conservação. Quando acontecem exposições nos espaços culturais, ambas as profissionais participam ativamente da organização do espaço.
As exposições que o Museu de Porto Alegre recebe são pensadas em conjunto e passam pela definição do tema, pesquisa histórica, escolha do que fará parte e elaboração de textos informativos. De acordo com Brito, suas atribuições mais específicas são a pesquisa sobre os objetos e imagens, elaboração de legendas e cuidados com a parte mais técnica, como aspectos da acessibilidade universal, com a utilização de “linguagem simples”, tamanho das fontes dos textos, altura dos painéis e espaços para circulação.
Na experiência de Couto, a participação nas exposições ocorre desde a concepção da proposta até a montagem, indicando como a peça será apresentada — mobília, luz e legenda — , onde ela ficará posicionada na sala e quais aspectos de acessibilidade terá. “Depois começa outra fase, que é o estudo de público, para entender como foi a recepção de visitantes na referida exposição”, contextualiza.
A profissional do Museu Julio de Castilhos explica que o acervo do museu é uma “coisa viva”, que precisa ser cuidada, entendida e apresentada publicamente, pois, além da ação do tempo, também sofre com os ataques biológicos. Ela acrescenta que são realizadas inspeções diárias nas salas de exposição, verificando a higienização de peças da reserva técnica (lugar de guarda do que não está exposto), se tudo está no lugar, se as luzes e equipamentos utilizados funcionam. “Planeja-se a pesquisa, a compra de material, empréstimos de peças e a aquisição de novos acervos”, relata.
Trabalho no museu após a Covid-19
Em meio à pandemia, Brito explica que, no período, os funcionários do Museu de Porto Alegre realizaram a digitalização e a organização do acervo, fizeram projetos de captação de recursos e pensaram em novas exposições. Ela exemplifica que o Setor Educativo elaborou diversos novos projetos para trabalhar em escolas, inclusive virtuais, com atividades cujo acesso pode ser feito pelo site. Com a impossibilidade de receber o público presencialmente, as redes sociais estabeleceram uma conexão virtual: “Todas as terças e quintas-feiras, fazemos postagens contando um pouco da história da cidade, seus espaços, personagens e instituições”.
O Museu de Porto Alegre permanece fechado para visitação, com apenas o pátio aberto ao público de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h. “Já acolhemos o Festival Kino Beat e a Mandala Lunar em dois finais de semana”, contextualiza Brito. A expectativa é de o museu ser reaberto ao público em 2022, quando duas novas exposições estiverem montadas.
Durante a pandemia, Couto manteve os cuidados do acervo do Museu Julio de Castilhos, uma vez que não é possível deixar as reservas técnicas, que têm umidade relativa do ar altíssima, sem ligar os desumidificadores. “O resultado disso seria desastroso”, argumenta Couto. Conforme ela, o período foi usado para realizar algumas obras, como a substituição de piso da área administrativa e das salas de exposição e a pintura da fachada.
A museóloga contextualiza que o espaço tem expressivo público espontâneo. As mediações com o público escolar ainda não foram reiniciadas e a expectativa é realizá-las a partir de março de 2022. “Esse público significa cerca de 5 mil pessoas dentro das 20 mil que nos visitam em média anual”, conta a profissional.
Perfil de estudantes na UFRGS passa por alteração
Egressa da primeira turma do curso de Museologia da Universidades Federal de Pelotas (UFPel), Vanessa Aquino iniciou a trajetória na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2014, trabalhando diretamente com disciplinas voltadas às reflexões teórico-metodológicas sobre as exposições museológicas. Em suas aulas, a professora da graduação de Museologia busca preparar os estudantes para as realidades das instituições museológicas do Brasil. Um exemplo disso é a exposição curricular do curso, que é projetada nas disciplinas de Projeto de Curadoria e Prática de exposições.
“Já são 11 exposições curriculares, dentre as quais tive a alegria de ter orientado sete”, orgulha-se. Por conta da pandemia e da suspensão das atividades presenciais na universidade em 2020, as últimas foram realizadas em formato digital. “Isso nos possibilitou tecer novas reflexões e problematizações acerca das diversas formas de comunicação museológica na contemporaneidade”, contextualiza Aquino.
Desde o início de sua trajetória, Aquino observa uma mudança significativa no perfil dos estudantes ingressantes a cada vestibular. Para comparar, ela explica que, no primeiro momento, eram graduandos inseridos no mercado de trabalho, alguns profissionais de museus de Porto Alegre, região metropolitana e cidades do interior. “Pessoas buscando uma segunda graduação e que sentiam necessidade da formação acadêmica em Museologia. Muitos mestres e doutores em diferentes áreas do conhecimento e que foram cursar Museologia nos primeiros anos do curso”, revela.
A partir de 2016, a professora explica que o perfil mudou para um público jovem, recém-saído do ensino médio, à procura da graduação como primeira opção. De acordo com a museóloga, neste momento os graduandos do curso são super jovens e muito criativos. “Uma juventude atenta e pró-ativa em busca de reflexões críticas sobre o universo dos museus e da Museologia”, aponta Aquino.
Para quem tem interesse no curso de Museologia, ela explica que o mercado é diversificado tanto no âmbito público quanto privado, com egressos em museus de Porto Alegre, São Paulo e Brasília. Conforme Aquino, outro segmento em que os estudantes graduados na UFRGS estão é na produção e curadoria de exposições em instituições culturais, realização de assessorias técnicas para elaboração de planos museológicos, salvaguarda de acervos voltados para documentação museológica e conservação preventiva e prestação de serviços via editais em empresas privadas.
Papel do museólogo na conservação do patrimônio histórico
Para Brito, a cultura tem sido deixada em último plano. Ela explica que, dentro da área, os museus são os últimos equipamentos a receberem investimentos e cita que são poucos aqueles com museólogos atuando no local. “O campo de atuação é muito restrito. Os concursos para museólogos não são abertos no setor público e, no setor privado, muitas vezes somos contratados apenas para implantar o museu, que depois segue sem o profissional”, argumenta. Conforme a museóloga, muitos colegas abrem empresas para atuar na área de consultoria, prestação de serviços e elaboração de projetos para captação de recursos.
De acordo com a profissional do Museu de Porto Alegre, o museólogo é qualificado para atuar nesses espaços, pois tem conhecimento sobre todos os processos envolvidos na preservação dos bens culturais, permitindo a conservação da integridade física de bens que são os suportes físicos da história da memória. “Se o museu é considerado o espaço de encontro entre o homem e o seu patrimônio, então o museólogo é o mediador desse encontro, um facilitador dessa conexão homem-objeto-espaço, um provocador de reflexões”, afirma Brito.
Para Couto, o papel do museólogo na preservação da história e da cultura é fundamental, pois a formação na interdisciplinaridade possibilita lançar um olhar abrangente sobre os aspectos socioculturais do território de modo a sugerir intervenções. “É muito gratificante você criar vínculos entre diversas peças e, com elas, contar sobre a sociedade de um dado período. Amo muito ser museóloga”, expõe.
“É fascinante quando você trabalha com uma coleção e, ao pesquisá-la, descobre informações inéditas”, afirma ela. Durante a pandemia, Couto empreendeu uma pesquisa sobre o mobiliário do quarto do museu, atribuído como quarto de Julio de Castilhos e de Honorina. “Descobri que nunca foi a mobília do casal e muito menos o leito de morte do político. Isso é uma ação demorada e de investigação minuciosa”, descreve a museóloga.
Aquino considera o papel do museólogo singular, sendo o profissional dotado de olhar sensível e crítico para as questões patrimoniais históricas e contemporâneas. Quem trabalha na área reúne conhecimentos para gestão, salvaguarda e comunicação multidisciplinar em constante diálogo com a sociedade. “São profissionais essenciais para pensar a preservação das histórias e memórias de uma cidade, estado ou país através dos seus patrimônios materiais e imateriais. Cabe salientar que seu trabalho extrapola os museus, abarcando outras instituições culturais e processos museológicos”, afirma.
Ao refletir sobre a importância da profissão, a professora da graduação da UFRGS reforça que os museólogos são capazes de pensar e definir políticas públicas no campo da cultura de forma multidisciplinar, crítica e em diálogo constante com a sociedade. Para ela, mesmo com os desafios do país, o profissional dessa área demonstra sua sensibilidade em desafios do mundo contemporâneo. “Uma profissão reconhecida desde 1984 que merece todo respeito e admiração neste dia 18/12! Viva a Museologia, os museólogos e museólogas”, parabeniza.