Na contramão do mundo, “guerra às drogas” no Brasil ganha novo capítulo

Resolução aprovada no início de março tem restrições a usuários que procuram tratamento e se fecha para a possibilidade de legalização

Vanessa Souza
Redação Beta
6 min readApr 27, 2018

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(Foto: Circuito Fora do Eixo)

Intervenção Militar, guerra de facções criminosas, milícias, aumento da população carcerária e de dependentes químicos. O universo que envolve as drogas no Brasil se mostra cada vez mais obscuro. Já as políticas nacionais específicas sobre o tema passam por mudanças e realinhamentos desde os anos 1990. A última medida, uma resolução de autoria do ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (MDB), aprovada no início de março pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), muda pontos fundamentais nas atuais diretrizes de combate e controle de drogas. A proposta ignora a lei antimanicomial e a política de redução de danos, a possibilidade e o debate sobre legalização, além de endurecer mais ainda o combate ao tráfico, favorecendo a repressão.

Militares fazem operação na favela da Rocinha após guerra entre quadrilhas rivais de traficantes pelo controle da área. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Embora o Brasil tenha dado início à construção de uma política nacional de redução da demanda e da oferta de drogas em 1998, segundo dados do Observatório Brasileiro de Informações Sobre Drogas, foi só em 2006 que o Estado aprovou a chamada nova Lei de Drogas e criou o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Com isso, o sistema passou a prescrever medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e entender que usuários não devem ser penalizados pela Justiça com a privação de liberdade.

Basicamente, o país passou a adotar uma política baseada na técnica de redução de danos — e a resolução de Osmar Terra vai contra isso em muitos aspectos: ela deixa expressos a promoção da abstinência nos tratamentos e o favorecimento de parcerias entre União e comunidades terapêuticas para acolhimento de dependentes, reposicionando a importância das medidas de redução de dano, além de conter diretrizes específicas contra a legalização de qualquer substância ilícita.

O advogado criminalista, diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e presidente do conselho da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Cristiano Maronna, entende que “na prática o que houve foi o seguinte: o ministro Osmar Terra, que é deputado federal, tem um projeto de lei que tramita na Câmara desde 2013, que tem como objetivo recrudescer a punição ao tráfico de drogas e estabelecer um modelo de tratamento “manicomializado” e que privilegia recursos públicos para comunidades terapêuticas. Como esse projeto não prosperou na Câmara, não foi aprovado, o deputado acabou optando por impor as medidas por ato administrativo — ou seja, por meio desta resolução”.

Segurança pública

Para Maronna, a movimentação para essas mudanças e a aprovação da resolução representam um resumo e uma opção pelo “acirramento” da guerra às drogas. “E a presença militar, a ocupação militarizada em comunidades pobres sob a justificativa do combate ao crime organizado, é justamente o símbolo disso. Enquanto o mundo inteiro discute alternativas a essa guerra às drogas, nós estamos indo no caminho oposto com esse reforço e recrudescimento da repressão penal”, explica.

O “acirramento da guerra às drogas”, no entanto, não se mostra eficiente, como aponta o sociólogo, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ e autor do livro Os Donos do Morro, que traz uma análise dos primeiros anos das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, Ignacio Cano.

“Nos últimos anos, para tentar diminuir a gravidade do problema do encarceramento de pessoas por conta das drogas, as medidas adotadas acabaram provocando o efeito inverso. Houve mudanças para que os usuários de drogas não fossem punidos e a punição aos traficantes fosse mais forte, mas o que aconteceu na realidade é que muito mais pessoas foram presas por tráfico. Pessoas que antes seriam processadas apenas pelo consumo”, analisa Ignacio.

E isso é comprovado também por números: a população carcerária dos delitos relacionados às drogas no país saltou de 32.880, no ano de 2005, para 146.276, no final de 2013, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional divulgados em 2014.

Saúde pública

Além da questão da segurança pública, outro aspecto afetado com a aprovação dessas mudanças se refere às políticas de cuidado, atenção e tratamento, que agora prioriza a abstinência. Como conta Maronna, as políticas, mesmo com problemas, vinham seguindo a orientação de redução de danos e a Lei Antimanicomial, que garante direitos que compreendem a pessoa em tratamento, atendida pela rede de saúde pública. “Com as mudanças, a medida em que as comunidades terapêuticas e religiosas passaram a ocupar um papel cada vez mais destacado, a rede de atenção psicossocial foi sendo desmontada e, consequentemente, também a política de saúde mental, delineada na Lei Antimanicomial, passou a ser desmontada”, explica. O advogado ainda frisa que essas comunidades terapêuticas e religiosas realizam um tratamento que é de baixíssima eficiência, recebendo recursos públicos sem a necessidade de licitação.

A política de redução de danos consiste, em resumo, em um conjunto de práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Isso inclui a prevenção, informação e acompanhamento. Como explica o psiquiatra Felix Kessler, coordenador do Ambulatório de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínica de Porto Alegre (HCPA) e do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (CPAD) da UFRGS, a redução de danos parte do princípio de que aquele comportamento vai ocorrer, então a orientação é tentar fazer com que aconteça de uma forma que o dano para a pessoa seja o menor possível. “O que a gente precisa, na verdade, é de uma política mais ampla, que envolva muita prevenção, que envolva tratamento em vários níveis. Mas eu não concordo que a política deva buscar a abstinência de todo mundo, porque essa política seria irreal”, pontua.

Segundo Ignacio Cano, a questão de priorizar a abstinência se trata também de um aprofundamento da visão mais moralista e religiosa relacionada às drogas. “É a mesma coisa que tentar fazer um plano de prevenção de homicídios pregando que as pessoas sejam boas umas com as outras, ou fazer prevenção de HIV pregando a abstinência do sexo e não o uso de camisinha — não vai ter nenhum impacto”, enfatiza o sociólogo.

Alternativas

De acordo com Ignacio, a chave para uma política efetiva está, em primeiro lugar, na descriminalização. “Se a gente descriminalizar, a violência não fará mais sentido. A violência acontece porque não conseguimos regular esse mercado de forma legal. Em segundo lugar, a polícia tem que agir de forma a reduzir a violência e não a estimular. A droga existe em qualquer lugar do mundo, mas esses mercados não são disputados com a violência que são aqui no Brasil”, diz.

Diversos países têm adotado medidas alternativas para combater a violência e diminuir os danos à saúde pública relacionados ao consumo e à venda de drogas. Nos Estados Unidos, 30 territórios da federação legalizaram o uso medicinal da maconha. No Uruguai, a distribuição e venda da cannabis em farmácias tornou-se responsabilidade do Estado. Em Portugal, a descriminalização do porte de drogas é uma realidade desde 2001. No Canadá, políticas de redução de danos são voltadas para usuários de substâncias como heroína.

Um dos pontos da resolução de Osmar Terra diz que: “a orientação central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”. De encontro a esse posicionamento, Maronna explica que levar esse aspecto em consideração é um retrocesso, principalmente porque a opinião pública pode mudar. “As pesquisas mostram que alguns anos atrás apenas 20% da população brasileira apoiava a legalização da maconha, e hoje já são 32% que apoiam”, argumenta.

“Não que isso vá acabar com o problema de saúde pública das drogas, mas resolve muitos problemas periféricos que a criminalização gera, como a corrupção (milícias), a violência, uso de substâncias alteradas. Se você aceita que o uso é real e tenta estabelecer mecanismos para que esse uso seja controlado, você consegue diminuir também os efeitos colaterais”, opina o sociólogo Ignacio Cano.

Tendo uma perspectiva pessimista para o futuro das políticas sobre drogas no país, Maronna afirma que as medidas que vêm sendo tomadas são completamente retrógradas com relação aos pequenos avanços que nós vínhamos conquistando nos últimos anos no cenário brasileiro. “A minha opinião é que sociedades abertas e democráticas devem controlar e regular a produção, a distribuição, o comércio e o consumo de drogas, e não proibir e reprimir. Qualquer política que não permita um acesso legal, criando critérios, que não tenha práticas claras de informação sobre riscos associados ao uso, a estratégias de redução de drogas e que não permita um modelo regulatório mínimo, é uma política fadada ao fracasso”, conclui.

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