No RS, eventos musicais geram emprego para mais de 60 ocupações

Estudo mostra que o investimento em cultura gera renda também para os serviços de alimentação, divulgação, hospedagem e transporte

Ivan Júnior
Redação Beta
11 min readJun 24, 2020

--

“O setor da música tem um importante papel em termos de geração de postos de trabalho, em uma escala que vai muito além dos artistas”, afirma o pesquisador Tarson Nuñes. (Foto: Caco Argemi)

Quem visitou a Arena do Grêmio em 24 de novembro de 2019, dia seguinte ao show dos “Amigos”, pode ver um grupo de 25 pessoas trabalhando na desmontagem do palco em que apresentaram-se Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano e Chitãozinho e Xororó. Este é apenas um exemplo sobre como os eventos de grande ou pequena magnitude, no interior ou na região metropolitana, geram postos de trabalhos, formais e informais, que vão para além daqueles percebidos inicialmente — como os instrumentistas, cantores, produtores, equipe de produção. Os postos de trabalho oriundos de apresentações e espetáculos se estendem para setores como hotelaria, transporte, alimentação e comunicação, e movimentam a economia local.

“Cultura gera trabalho e renda, desenvolve uma parte importante do setor de serviços, diversifica a economia, desenvolve novas capacitações e todo um conjunto de inovações tecnológicas que se traduzem em progresso para um país”. A reflexão é de Tarson Nuñez, um dos autores do estudo “Impactos econômicos de atividades culturais: o caso da música”.O material ajuda a pensar sobre traz um panorama da cena musical, no contexto da economia criativa, e é resultado de da análise de 97 projetos financiados pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC) entre 2014 e 2019 no Rio Grande do Sul, que movimentaram mais de R$ 23 milhões.

De acordo com o estudo, elaborado pelo Departamento Estadual de Estatística (DEE), da Secretaria Estadual de Planejamento, Orçamento e Gestão, em parceria com a Secretaria Estadual da Cultura, somente 45% dos gastos são direcionados para artistas e equipes de apoio. Os 55% restantes são distribuídos para serviços em áreas como serviços gráficos, mídia, alojamento, transporte, segurança, montagem das estruturas de palco, iluminação, sonorização e internet.

Os projetos de música financiados pela LIC geraram 1,8 mil postos de trabalhos, em 66 diferentes ocupações, além da contratação de serviços de 734 empresas de variadas áreas, conforme identificado pelo estudo. Para Nuñes, isto mostra a extensa cadeia de empreendimentos gerada por estes eventos, que por hora — não podem mais ocorrer.

Distribuição dos valores colocados em projetos musicais por financiamento via LIC entre 2014 e 2010/ Fonte: Sistema Pró-Cultura da Sedac (Rio Grande do Sul, 2020)/Arte: Ivan Júnior (Beta Redação)

Para o pesquisador, com o distanciamento social provocado pelo risco de transmissão da Covid-19, impacta fortemente as atividades culturais, especialmente na área da música, pela dependência da presença do público. “Isto coloca todo um desafio para os trabalhadores da cultura e para gestores públicos no sentido de adotar medidas emergenciais de defesa do setor”, afirma. De acordo com ele, o momento de pandemia desafia os artistas a se reinventar, criando novas formas de atuação que sejam adequadas à situação que estamos vivendo. Acompanhe agora a entrevista realizada pela Beta Redação, com o pesquisador, por e-mail, no dia 16 de junho.

Beta Redação: Poderia começar a entrevista falando da Lei de Incentivo à Cultura no Estado. O que é a LIC, como acontece a aplicação e qual análise pode ser feita da aplicação da LIC com base na pesquisa “Impactos econômicos de atividades culturais: o caso da música”?

A Lei de Incentivo à Cultura é um importante instrumento de fomento às atividades culturais que existe no RS desde os anos 90. Através da LIC, as empresas podem financiar atividades culturais obtendo abatimento de seus débitos de ICMS. A existência desta Lei contribuiu para agregar recursos adicionais para o financiamento da cultura, contornando a escassez orçamentária dos governos estaduais. Para obter os recursos das empresas, os produtores culturais precisam apresentar um projeto à Secretaria da Cultura, este projeto é analisado em termos do seu mérito pelo Conselho Estadual da Cultura e, se aprovado, os produtores são autorizados a captar estes recursos junto à iniciativa privada.

As empresas são autorizadas a abater uma percentagem do seus débitos de ICMS na medida em que utilizem estes recursos financiando uma atividade cultural. A Lei cumpre um importante papel na medida em que se constitui em uma fonte de recursos de apoio às atividades culturais. No estudo realizado sobre os eventos musicais se verificou que a LIC também cumpre um importante papel no sentido da descentralização das atividades culturais, na medida em que patrocinadores locais financiam muitas atividades no interior. Cerca de 70% dos projetos aprovados no período estudado (2014 a 2019) foram realizados no interior.

Distribuição dos investimentos conforme as regiões do Rio Grande do Sul./Fonte: Sistema Pró-Cultura da Sedac (Rio Grande do Sul, 2020)/Arte: Ivan Júnior (Beta Redação)

Beta Redação: A pesquisa fala do RS Criativo - ação programática com a finalidade de fortalecer a economia criativa no Rio Grande do Sul -. Como podemos conceituar a economia criativa em nosso estado? Quais as características deste segmento e o número de pessoas empregada formalmente e informalmente (é possível mensurar este último tópico)?

O RS Criativo é uma ação programática da Secretaria da Cultura, com apoio da Secretaria do Planejamento, voltada para apoiar o desenvolvimento da economia criativa em nosso estado. Por economia criativa se entende todos aqueles setores econômicos nos quais o valor agregado provém da criatividade, da inovação, da cultura e do patrimônio. A ideia geral é de que para além do seu valor intrínseco como produto artístico e expressão de um povo, as atividades culturais tem também um importante papel econômico, gerando trabalho, renda e novas oportunidades de negócio. Mais informações sobre o conceito de economia criativa e seu papel para a economia do RS podem ser obtidas aqui. Este artigo, publicado em 2016, sistematiza minhas reflexões sobre o tema. Em um estudo mais recente, onde analisamos apenas a parte formal, (empresas com CNPJ e empregos com carteira assinada), verificamos que, no ano de 2017, existiam, no RS, mais de 27 mil empresas e mais de 130 mil empregos formais nas diversas áreas que compõem a economia criativa.

É evidente que esta é apenas uma parte do impacto total da EC na economia do nosso estado, uma vez que uma das características mais significativas deste setor, em especial na área cultural, é o alto grau de informalidade. Uma grande parte das atividades artísticas não se estrutura em termos de empregos formais, de carteira assinada, o que dificulta em muito a mensuração mais objetiva da sua totalidade. Uma medida desta informalidade é o número de Microempreendedores Individuais (MEIs) existentes no setor. Em 2017, existiam mais de 48 mil MEIs nas áreas relacionadas com a economia criativa no RS. Além destes microempreendedores individuais, há ainda um grande número de trabalhadores da cultura em condições de informalidade, mas este é um número muito difícil de estimar.

Beta Redação: Vamos continuar falando do cenário da música no âmbito da economia. Quais as características dos empregos gerados neste setor, focando no grupo do pessoal e daqueles de serviços?

O setor da música tem um importante papel em termos de geração de postos de trabalho, em uma escala que vai muito além dos artistas propriamente ditos. Nosso estudo recente sobre os projetos de música financiados pela LIC demonstrou que em 97 projetos de eventos musicais foram gerados 1800 postos de trabalho em 66 diferentes ocupações (iluminadores, operadores de som, roadies, cenógrafos, apresentadores, seguranças, carregadores, motoristas, jornalistas, etc..) além da contratação de serviços de 734 empresas das mais diversas áreas (gráficas, alojamento, transporte, segurança, etc…)

Beta Redação: Como essas pessoas estão sendo impactadas num momento em que eventos presenciais estão impossibilitados de acontecer, e quais alternativas esses profissionais podem buscar para ter uma renda? E o papel do poder público a nível municipal, estadual ou federal neste momento?

A suspensão de eventos artísticos está tendo um forte impacto nas atividades culturais, especialmente na área da música, que depende em muito da presença do público para serem sustentáveis. Hoje a remuneração dos músicos se resume aos direitos autorais, à venda de CDs (que cada vez tem um peso menor) e à remuneração da veiculação das músicas em streaming. Estas formas, no entanto, tendem a ser eficazes apenas para aqueles artistas já consolidados e com uma visibilidade maior no mercado. Por isso, a situação dos músicos é de uma grande precariedade. A proliferação de lives (performances ao vivo pela internet) é uma realidade, mas a monetização (remuneração financeira) destas atividades é muito restrita. A situação é ainda mais grave para os demais trabalhadores do setor (as atividades de apoio), que dependem muito mais da realização dos eventos.

Há um conjunto de medidas emergenciais sendo tomadas para reduzir o impacto da pandemia, de políticas públicas a iniciativas de solidariedade. Em termos de políticas públicas, podemos destacar a iniciativa da Secretaria Estadual da Cultura de lançar um edital emergencial do Fundo de Apoio à Cultura para projetos digitais, que é uma forma de permitir uma remuneração de artistas com os recursos deste fundo público. Ao nível federal o Congresso Nacional recentemente aprovou uma lei, chamada de Lei Aldir Blanc, voltada para proporcionar um aporte de renda emergencial para os artistas. Há também um conjunto de iniciativas de solidariedade em diversos âmbitos, como a coleta de cestas básicas a serem distribuídas para artistas em situação de extrema dificuldade.

Beta Redação: A Distribuição do financiamento pela LIC no Estado: 28,8% dos projetos ficam na região metropolitana. Outros 71,2% no interior do Estado. Ainda assim, a média de recursos alocado por projetos é maior na região metropolitana, R$ 340 mil, sendo que no interior é R$ 202 mil. Por que boa parte dos investimentos ficam restritos ao interior?

A distribuição dos recursos da LIC na área da música é relativamente equilibrada, uma vez que a proporção de projetos do interior aprovados é mais ou menos equivalente à distribuição da população do estado. No entanto, via de regra, os recursos para os projetos na capital e região metropolitana são maiores. Isto porque de modo geral os projetos realizados na capital tem uma dimensão maior. Portanto, considero que há uma distribuição bem equilibrada dos recursos da LIC.

Beta Redação: Quase um terço dos eventos financiamento pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC) no Rio Grande do Sul são festivais competitivos. Quais as características destes eventos?

Os festivais cumprem um importante papel cultural em nosso estado, constituindo-se em eventos que valorizam a nossa cultura local. Estes festivais são uma tradição importante, sendo que alguns deles já tem mais de 20 anos de realização ininterrupta. Além disso os festivais são um importante instrumento de profissionalização de jovens músicos, que tem nestes eventos uma primeira experiência de profissionalização, abrindo espaço para novos artistas.

Tipos de eventos financiados no Estado via Lei de Incentivo à Cultura. / Fonte: Sistema Pró-Cultura da Sedac (RIO GRANDE DO SUL, 2020)/Arte: Ivan Júnior (Beta Redação)

Beta Redação: Quando é falado do incentivo à cultura, parece passar despercebido algo mostrado pela pesquisa no contexto do cenário da música: a maior parte do valor gerado — 55,5% — fica em outros setores da economia, sendo que os restantes 44,5% são para os gastos com quem está diretamente envolvido na produção. O que esses números evidenciam e como eles podem auxiliar os gestores públicos no momento de discutir as políticas adotadas para este segmento?

De fato, é importante destacar que a maior parte dos recursos investidos em um evento musical não se restringe à remuneração dos artistas e de suas equipes.

Mais da metade dos recursos se destina à contratação de serviços em outras áreas, como serviços gráficos, mídia, alojamento, transporte, segurança, montagem das estruturas de palco, iluminação, sonorização, internet e tantas outras. Isto mostra que um evento musical mobiliza toda uma cadeia de empreendimentos que, na ausência destes eventos, teria um mercado mais restrito.

Portanto, os eventos musicais devem ser vistos como importantes momentos de mobilização de empreendimentos econômicos. E é importante destacar que esta análise foi feita apenas sobre os recursos que foram investidos nos eventos, sem analisar os impactos gerados pela presença do público.

Um evento musical em uma cidade do interior atrai um público significativo, que vai consumir produtos e serviços naquela localidade. As pessoas que vem para um festival, um show ou uma mostra musical vão se alojar em hotéis, fazer compras, consumir nos restaurantes e bares, movimentando as economias locais. Nesta medida, os gestores públicos estão cada vez mais se dando conta de que eventos culturais, e entre eles os eventos musicais, são importantes fatores de geração de trabalho, de renda e de remuneração para os empreendedores locais.

Beta Redação: Pensando nas possibilidades do setor da economia criativa em nosso estado, focado em quem é dos setores culturais ou do cenário da música, qual é o impacto da covid-19 para esse grupo de trabalhadores? Quais alternativas esse segmento pode buscar em meio a pandemia para ter uma renda?

Como já foi destacado acima, as medidas de isolamento social tiveram um impacto muito negativo nas atividades culturais, em especial nas musicais. Isto coloca todo um desafio para os trabalhadores da cultura e para os gestores públicos no sentido de adotar medidas emergenciais de defesa do setor. Num primeiro momento, com a adoção de medidas de apoio, mas também buscando pensar em políticas mais permanentes que possam dar suporte e sustentação aos trabalhadores da cultura. Por outro lado, os próprios artistas estão desafiados a se reinventar, a criar novas formas de atuação que sejam adequadas à situação que estamos vivendo.

Beta Redação: Nas últimas semanas, o Congresso Federal aprovou a Lei Aldir Blanc, que irá repassar R$ 3 bilhões do auxílio emergencial aos trabalhadores da área cultural. Como enxerga a implementação desta medida e a importância dela neste contexto de pandemia?

A aprovação da Lei Aldir Blanc foi muito importante, e o desafio agora é o de tirar a lei do papel e fazer com que os recursos cheguem de fato aos trabalhadores da cultura. A maior dificuldade que se vislumbra neste momento é a capacidade de identificar quem são os beneficiários dos auxílios que serão aportados através da lei. Os cadastros dos trabalhadores da cultura nos estados e municípios, que deveriam orientar a distribuição dos recursos, são muito frágeis ou inexistentes em muitos casos. Isto vai determinar uma dificuldade muito grande na identificação de quem serão os beneficiários dos auxílios estabelecidos pela lei.

Chegamos nas considerações finais. Em Brasília, o tema cultura é colocado como algo à parte, com muitas críticas a instrumentos de financiamento como a Lei Rouanet. Qual a importância e o que evidenciam estudos como este liderado por ti?

O atual governo federal se destaca por sua total incapacidade na gestão da área da cultura, e mesmo na compreensão da importância deste setor para o país. O fim do Ministério da Cultura, a redução das verbas para o setor e a destruição de um conjunto de políticas públicas bem sucedidas, que foram construídas ao longo das primeira décadas deste século, são uma demonstração concreta desta incapacidade. Mais do que isto, se percebe claramente uma hostilidade do governo federal em relação aos trabalhadores da cultura. As críticas, superficiais e preconceituosas, a instrumentos de política pública como a Lei Rouanet, são um exemplo desta postura de desvalorização da cultura.

Os estudos que temos realizado, assim como toda uma literatura existente em nível nacional e internacional a respeito da importância econômica das atividades culturais, mostram de maneira inequívoca que o apoio à cultura é um importante instrumento também para o desenvolvimento econômico e social de um país. Cultura gera trabalho e gera renda, desenvolve uma parte importante do setor de serviços, diversifica a economia, desenvolve novas capacitações e todo um conjunto de inovações tecnológicas que se traduzem em progresso para um país. Não é à toa que os países mais desenvolvidos, todos eles, têm fortes políticas públicas de apoio à sua produção cultural. Em uma economia global, em que cada vez mais o conhecimento e a inovação são os principais vetores para o desenvolvimento, as políticas culturais estão na ponta das estratégias vencedoras.

Atualização: Como a entrevista com o pesquisador Tarson Nunes aconteceu dia 16 junho, a Lei Federal 14.017, cuja finalidade é destinar recursos ao setor cultural, ainda não havia sido sancionada — o que ocorreu em 29 de junho. O valor a ser repassado pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios é de R$ 3 bilhões em ações emergenciais de apoio ao setor cultural. Conhecida como Lei Aldir Blanc, a medida institui renda emergencial mensal para trabalhadores da cultura e subsídio mensal para manutenção de locais públicos ou privados para realização de atividades culturais, que foram interrompidas pelas medida de isolamento.

--

--

Ivan Júnior
Redação Beta

Jornalista em formação. Me interesso pelo acontecimento cotidiano. Ademais, tenho uma paixão por ler e discutir futebol e política.