Novas configurações familiares: o amor venceu aqui

Em entrevista, Marcela Tiboni expõe o olhar de quem vive e luta pelos direitos LGBTQIA+ no país

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Redação Beta
11 min readJul 1, 2022

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Por Júlia Möller, Milena Silocchi e Vitória Drehmer

Marcela Tiboni é mãe dos gêmeos Iolanda e Bernardo, frutos de inseminação artificial, com a esposa Melanie Graille (Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal).

Para a publicação da reportagem Para ter direito, só entrando na justiça, o grupo de investigação conversou com a educadora e autora Marcela Tiboni. Ela é uma das duas mães dos gêmeos Iolanda e Bernardo, frutos de uma inseminação artificial, gerados pela esposa Melanie Graille. Nas redes sociais o casal compartilha a rotina com os filhos, histórias de leitores e campanhas que buscam os direitos da comunidade LGBT. Leia a entrevista completa a seguir.

Quando vocês decidiram ser mães, a inseminação caseira era uma
opção?

A gente pensou na inseminação caseira, a gente conversou sobre, a gente
tinha dois amigos que topariam fazer a doação do sêmen pra gente, mas também conversamos muito na ideia de que isso não estivesse resolvido pra gente e nem pra esses dois rapazes/amigos que topariam doar esse lugar do pai, essa distância entre ser um doador e ser um pai, a gente nunca quis que nossos filhos tivessem um pai por opção, porque eu acho também que tem vários outros casais que têm esse desejo, mas nós particularmente não tínhamos esse desejo de que nossos filhos tivessem um pai, então por isso que um doador anônimo para nós caberia melhor no formato que a gente desejava construir a nossa família.

Mesmo esse não sendo o método escolhido, como vocês conheceram
essa outra prática? E como vocês a enxergam no Brasil?

Acho que a inseminação caseira ou a auto inseminação é uma possibilidade
de escolhas bastante distintas. Para muitos casais ela acaba sendo uma opção
financeira, casais de mulheres que têm o desejo de ter um filho, mas não têm a menor condição de pagar um tratamento em clínica. Então ele se torna um
tratamento viável, um tratamento barato e tem outras que de fato é uma escolha né, que querem colocar, por exemplo, o sêmen de algum familiar, um irmão, um cunhado, um amigo, alguém que de fato conheça e isso em clínica não é permitido, então para alguns casais é uma escolha convicta e para outros é uma escolha financeira.

Sabemos que a inseminação caseira é uma alternativa criada para fugir
dos altos custos de uma inseminação artificial e que ela é adotada por
casais de mulheres ou ainda por casais héteros com problemas de
fertilidade. Além disso, que outros fatores vocês atribuem para explicar
o crescimento desta prática?

Eu ressaltaria ainda que numa clínica você não pode usar o sêmen de
alguém que você conheça. Tem que ser um doador anônimo e às vezes você quer de fato usar o sêmen de um amigo, de algum familiar, e a clínica não permite isso. A gente tem a doutora Ana Carolina Mendonça que conseguiu quebrar essa regra do Comitê Federal de Medicina. Faz duas semanas, uma ordem judicial, mas acho que muitas mulheres que eu conheço tem esse desejo de implantar, fazer um embrião com o sêmen de alguém conhecido e isso não é permitido pelo Conselho Federal de Medicina.

No final do ano passado, uma das postagens no Instagram de vocês
tratava-se da auto inseminação. Nela, é mencionada a regulamentação
da reprodução assistida, permitida desde 1992, mas para casais homoafetivos apenas a partir de 2011. O que representa esse tempo de
espera que durou quase 20 anos?

É lamentável. Acho que a espera no Brasil em todas as leis que regem os
direitos homoafetivos, transexuais, homossexuais é de uma espera angustiante, terrível. Então pra mim é lamentável que apenas em 2011 isso tenha sido permitido, tanto casamento homoafetivo quanto adoção ou registro, que na verdade se tornou compulsório só em 2017, isso é uma espera que nos coloca à margem, que nos colocou à margem por décadas e ainda faz com que muitos casais se coloquem à margem.

Mais de dez anos depois da legalização dos casamentos homoafetivos,
como vocês enxergam a lei agora? Houve mais algum avanço na
garantia de direitos da comunidade LGBTQIA + ou percebe-se um
retrocesso?

Eu acho que esses direitos garantidos são direitos que não têm nenhuma
chance de regressão. Então eles já estão garantidos. Agora é preciso pensar que a pauta LGBT, ela só caminha naquilo que vem do âmbito tradicional né. Para o Brasil, a família é uma pauta tradicional e conservadora. Então LGBTs, por exemplo, discussões que regem o uso de banheiros por pessoas transsexuais e identidade de gênero, isso não caminha. A liberação, por exemplo, de sauna, a liberação de travestis, como prostitutas. Essas pautas, que são de cunho muito mais progressistas, não caminham no Brasil. O que caminha aqui, da pauta LGBT, é a família tradicional. Então, para esses políticos tradicionais “ah, tudo bem, eles até podem ter filhos”. E aí a gente pode casar e ter filhos. Basicamente são essas duas leis que nos protegem de alguma forma. Para todo o resto, a gente não tem nenhum tipo de proteção. Então, em relação a constituição da família, acho que a gente tem algumas garantias, bastante importantes e interessantes, que eu acho que não tem como regredir. São fundamentais. Algumas lutas que estão caminhando, como a luta contra a Receita Federal, a Polícia Federal, que já colocou na nomenclatura dos passaportes identidade de gênero, filiação. Mas eu acho que para outras pautas isso ainda é muito retrógrado.

Entendemos que apesar de ter vários adeptos, esse método ainda é
novo e para tanto, a lei ainda não acompanhou. Mesmo assim, na
opinião de vocês, é possível que esse cenário mude?

Eu acho que tem muitas questões envolvidas, principalmente de seguridade
sobre esse doador. E a gente sabe que tem doadores que o que eles querem é
perpetuar sua genética por centenas de anos. E são doadores que em uma mesma cidade tem 20, 30, 40 positivos. A gente começa a perder o controle sobre figuras que vão ter a mesma genética no futuro. Acho que é preciso ter alguma ordem ou regularização. Então, eu acho que é um procedimento que precisa ser muito debatido para que ele não seja mais um tabu e para que a gente tenha leis de amparo que tornem a situação possível.

Eu acho que têm alguns políticos interessados. Taliria, a Vivi Reis, Erica
Rilton, Malunguinho, o Jean Wyllys, quando tava deputado, o Davi Miranda. Eu acho que organizações tem várias que estão aí promovendo abaixo-assinado. E que há organizações de fundo não governamentais que de fato estão preocupadas, elas tentam viabilizar, mas não tem a força política necessária. O Brasil ainda é bastante retrógrado, tradicionalista em suas pautas. Então acho que algumas pautas LGBT de políticas públicas vão demorar muito para serem de fato criadas.

Atualmente, em casos de inseminação caseira, para um casal de
mulheres ter o nome de ambas mães na certidão de nascimento é
preciso entrar com uma ação judicial. Essa lei foi estabelecida em
agosto de 2018, até então o registro poderia ser feito sem a necessidade
de um alvará do juiz. A justificativa dada foi pelo número de fraudes no
registro. Vocês acreditam que houve outros motivos para essa decisão,
como preconceito e intolerância?

A gente vai se basear em achismo né. Eu acho que tem várias questões que
a gente pode achar. Se for por um achismo, eu acho que as clínicas de fertilização são índices fortes aí, perdendo muitos pacientes ou clientes. Porque pessoas que descobriram que invés de gastar de 10 mil a 35 mil reais em um tratamento, podiam não gastar nada fazendo uma inseminação caseira. Mas isso é um achismo baseado em nada mais nada menos que um simples achismo.

Posso achar também que era uma pauta conservadora, do governo, de que,
isso aí tá virando balbúrdia. E posso achar também que o que o Conselho Federal de Medicina diz tem algum fundamento. Você não conseguir rastrear a quantidade de doações, principalmente por lugar. Você não conseguir garantir uma mínima seguridade de que esses adolescentes não se relacionem no futuro entre si, com genéticas próximas, já que você não tem nenhum dado, nenhuma informação sobre esse doador e nem quantidade de positivos. Agora também se tem esse domínio sobre os bancos de sêmen, de novo a gente vai para o achismo. Vamos ter que acreditar no que nos dizem, de que eles tem um controle. Mas a gente também não tem essa certeza absoluta de que esse controle existe.

No Brasil, homens, independente da sexualidade, podem registrar o
nascimento de uma criança sem nenhum tipo de comprovação de
paternidade (biológica). Podemos associar isso a um problema
estrutural e patriarcal, tendo em vista que a mulher é posta em dúvida
quando tenta registrar sem o “pai” presente?

Sem dúvida, quase todas as perguntas políticas sociais feitas no Brasil, a
gente sempre vai cair em uma questão de estrutura patriarcal e machista, onde a responsabilidade dessa criança é da mãe. É a mãe que gera, e mãe se tem como mulher cis, porque jamais vai se entender que um homem trans poderia gestar e gerar uma criança. Na Receita Federal e demais órgãos públicos, o registro obrigatório e exclusivo é da mãe, o pai é sempre aquele asterisco opcional. E ninguém questiona se esse homem é de fato a figura biológica que concebeu essa criança, se não é, se está só querendo assumir. Então, essa distinção entre pai e padrasto, que na verdade também pouco importa porque pai é um personagem assim como mãe que também decide criar, cuidar, amar essa criança. É um problema de estrutura patriarcal e machista brasileira.

Durante nosso trabalho de investigação, ouvimos depoimentos de
casais de mulheres que se sentiram constrangidas durante a gestação e
após o nascimento da criança, tanto por familiares, profissionais da
saúde, quanto em cartórios. Acreditamos que, dado o preconceito, este
cenário se repita para mais pessoas. Como foi para vocês, mulheres,
lésbicas e mães, lidar com esse tipo de situação?

Primeiro, eu sou uma mulher branca e isso muda muito em uma sociedade
extremamente racista. Segundo, eu sou uma mulher de classe média. Isso muda muito para uma sociedade racista e classista. Para além de classe média, eu moro em São Paulo, que é a capital, uma cidade cosmopolita, que é um local muito distinto, bastante diferente se eu morasse, por exemplo, na periferia de uma cidade pequena do Nordeste ou da região Norte. E por fim, eu moro na Pompeia, que é um bairro tradicional de classe média de São Paulo. Também não sou uma mulher periférica da cidade de São Paulo.

Eu acho que isso tudo é importante para dizer sobre o preconceito que chega
até mim. Sou uma pessoa que tem uma formação acadêmica, faculdade, mestrado, início de um doutorado. Eu sou professora, trabalho como educadora. Então, eu tenho também o poder da palavra da qual eu me sinto segura e utilizo como resposta. Por isso, eu proponho um diálogo, porque obviamente a mim é dada essa liberdade e essa segurança para dialogar. Eu não sinto que meu corpo, minha vida e a minha família estão em risco.

A clínica que a gente escolheu fazer a fertilização é uma clínica que já tinha o
histórico de atender muitas famílias de mulheres. Hoje, a parte da clínica que atende casais de mulheres, foi carinhosamente apelidada de “Mama”, em homenagem ao meu primeiro livro. Então, é uma clínica que tem uma parte do seu Instagram todo ele voltado para o arco-íris, para família de duas mães e dois pais. Nossa equipe médica, toda ela particular. Uma equipe extremamente feminista, de esquerda, a favor de pautas como o aborto, casamento igualitário. A gente pode pagar por essas pessoas próximas. E a nossa família é a mesma coisa, a gente vem de uma família com um olhar social muito privilegiado. Se no primeiro momento pode haver um estranhamento, depois esse estranhamento virou amor, afeto, acolhimento. E acho importante também que ninguém da nossa família tem fundamentalismo religioso, que para muitas famílias também é um uma grande questão, um grande problema.

Junto aos novos métodos para engravidar, cresce também diferentes
configurações familiares. Esse é um tema abordado por vocês nas
redes sociais e gostaríamos que nos contassem como foi para vocês
construírem essa família e como é receber relatos de tantas outras.

Acho que as diferentes configurações familiares para a gente, no começo, foi
um estranhamento quando a gente foi construir nossa família, porque por mais que a gente sempre soubesse que seríamos duas mães, a gente olhou para o lado e percebeu que não conhecia família com duas mães, nem com dois pais, nem famílias trans, não binárias ou trans centradas. Isso é muito assustador. A gente conhecia essas pessoas, como pessoas solteiras ou casais, na balada, no bar, na casa de amigos. Mas a gente não conhecia essas pessoas como pais, mães, cuidadores, como responsáveis pela família. Então, eu digo mais por mim, eu comecei no meu perfil mostrando mais a minha família e mostrando também a segurança psicológica de que aquela era uma família como todas as outras ou diferente de todas as outras porque os grupos familiares são diferentes entre si. E conforme eu fui contando a minha história, eu fui recebendo relatos de muitas outras histórias. O que me fez, em um primeiro momento, também mudar o meu pensamento. Que também era um pensamento bastante homofóbico. É uma sociedade homofóbica, então eu também fui criada por essa sociedade. Fui desconstruindo isso dentro de mim, fui entendendo as configurações e fui entendendo que mesmo em outras famílias de duas mães, em outras famílias lésbicas, não seriam como a minha pois cada família é única.

Por que é importante falarmos cada vez mais sobre essas configurações familiares? O que vocês têm aprendido com os relatos de outras famílias? É possível dizer que vocês criaram uma rede de apoio e escuta?

Eu sempre digo que a nossa rede de apoio surgiu depois do nascimento dos
nossos filhos. Acho que a rede que a gente tinha — irmãos, pai, mãe e alguns amigos - ela se transformou por completo. Não que essas pessoas não sejam importantes, elas são, mas hoje a gente tem a nossa volta de fato uma pluralidade, uma diversidade para que os nossos filhos entendam que família é muito maior. Então, eles têm convivência, observação, sociedade muito mais ampla e muito mais plural. Isso para nós é muito importante, porque a nossa vivência também se faz importante para outras famílias. A ideia de rede de apoio seria até por uma palavra maior que é a ideia de pertencimento. Que a gente se perceba pertencendo a outras famílias, de outras configurações. E que essas famílias também se sintam pertencentes quando veem a minha família.

Recentemente, vocês iniciaram um abaixo-assinado apoiando uma ação na justiça que pede a troca dos campos “pai” e “mãe” de documentos pelo termo “filiação”. Por que vocês consideram importante essa mudança e o que ela significa?

Mudar campo “pai” e “mãe” por “filiação”, ela é uma mudança importante para que caibam todas as famílias. É importante dizer como algumas figuras
fundamentalistas dizem, principalmente de vínculo religioso, que a gente quer acabar com a nomenclatura pai e mãe, que a gente quer acabar com a criação de família, mas na verdade a gente quer que mais pessoas caibam como pai e mãe, mais pessoas caibam no rótulo de família, a gente quer ampliar o formato de família e não acabar com ela.

Quando você entra, por exemplo, na Receita Federal, que tem apenas um
campo, que é o campo mãe, que cabe um único nome e eu coloco meu nome e
aparece uma página dizendo “Marcela não corresponde com a mãe de Bernardo e com a mãe de Iolanda”, pra mim é uma violência e não é uma violência simbólica não, é uma violência física, que me faz chorar, que me dá dor de estômago, que me dá ânsia de vômito, que me dá depressão, que me dá tristeza, então ela é física, ela é palpável. A mesma coisa acontece nos cartórios, que até no papel sai filiação mas no sistema, que é o que a gente vive, porque a nossa vida hoje é praticamente toda ela online, ainda tem o registro de pai e mãe. Ou seja, você colocar como de forma fundamental a existência de uma família de núcleo com uma figura masculina e uma figura feminina, é você excluir, deixar de fora centenas de milhares de famílias, sejam elas unilaterais, que só tem uma mãe, que só tem um pai, que só tem uma pessoa não binária como responsável, mas que tem duas pessoas do mesmo gênero, do mesmo sexo, das que tem mais de duas pessoas. Então filiação faria caber aí todas essas famílias.

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.