O avanço da representação negra na política

Candidaturas pretas e pardas ganham impulso com divisão de verbas de campanha

Thariany Mendelski
Redação Beta
8 min readOct 14, 2021

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Daiana Santos (PCdoB), Bruna Rodrigues (PCdoB), Matheus Gomes (PSOL), Laura Sito (PT) e Karen Santos (PSOL). (Foto: Leonardo Contursi/CMPA)

As eleições municipais de 2020 trouxeram uma importante mudança no cenário eleitoral brasileiro, com maior proporção e o maior número de candidatos negros e pardos já registrados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Segundo dados do TSE , 267.918 candidatos se autodeclararam brancos, 219.000 pardos e 58.688 pretos. Nas eleições anteriores, em 2016, por exemplo, houve 255.689 candidatos brancos, 194.402 pardos e 42.916 candidatos pretos. Em 2020, pela primeira vez o número de concorrentes pretos e pardos superou o de brancos.

O aumento dessas candidaturas vai ao encontro da decisão tomada pelo TSE em favor da valorização da igualdade racial. O TSE decidiu que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), também chamado de Fundo Eleitoral, e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve ser proporcional ao total de candidatos negros (pretos e pardos) que o partido apresentar para a disputa eleitoral. A medida já é válida para as próximas eleições gerais, que ocorrem em outubro de 2022.

Como os partidos vêm se organizando para as próximas eleições

A eleição de candidaturas negras é algo que possui uma relação íntima com a forma que os partidos priorizam essas lideranças e como a legislação eleitoral vigente constrói condições para essas candidaturas. As alterações recentes no Código Eleitoral apontam importantes esforços para as candidaturas negras e femininas. E os partidos, de um modo geral, começam a se organizar para que suas lideranças se tornem conhecidas pelo conjunto dos eleitores e possam obter êxito nas eleições.

O PCdoB organiza, desde a década de 80, a partir da Secretaria Nacional de Igualdade Racial (coordenada pela primeira deputada estadual da Bahia, Olívia Santana) espaços de formação e de estímulo à participação política de figuras negras, assim como fomenta o potencial de liderança dessas pessoas. Esforços esses que são empreendidos por siglas e legendas que também se importam com a superação do racismo.

No PT, grande parte dos recursos advindos do Fundo Eleitoral são distribuídos pelas setoriais do partido. A setorial de combate ao racismo é a segunda maior, portanto boa parte desses recursos serão destinados a candidaturas negras. O mesmo acontece com as mulheres e população LGBTQIA+. É uma maneira mais democrática de distribuir os recursos e valorizar a pluralidade.

Segundo o vereador Matheus Gomes, no PSOL, o foco central sempre foi a política eleitoral, dando ênfase para potencializar os movimentos sociais e fortalecer as setoriais, o que de um ponto de vista estratégico é fundamental para que o partido tenha quadros políticos mulheres, negros e negras, indígenas, LGBTQIA+.

Capital gaúcha elegeu sua primeira bancada negra

De acordo com o vereador Matheus Gomes (PSOL), o governo de Jair Bolsonaro (ex-PSL) atacou concreta ou simbolicamente conquistas históricas da população negra. “A ojeriza aos pobres e negros em universidade, nos aeroportos, na representação memorial do país, tudo isso levou a maior visibilidade da pauta racial e de gênero. O ano de 2020 também foi marcado por uma revolta mundial antirracista e essa conjuntura foi trabalhada com força em nosso país, pois já há um reposicionamento estrutural da luta negra nas últimas décadas. Isso se expressa na consolidação social das cotas na maior representatividade na cultura, na mídia e no crescimento das nossas formas de organização social e política”, resume.

Para Matheus, o índice de negros em cargos políticos ainda é muito baixo. Especialmente se relacionado ao total da população que se declara negra no país. A Câmara de Porto Alegre, por exemplo, só tem 5 dos 36 vereadores negros e a população negra da cidade é de 30%. Segundo ele, os mandatos coletivos também são uma forma importante de superar os limites da “representação institucional burguesa”, que só viabiliza a participação política a cada dois anos e que resulta em representações individuais. O controle coletivo é importante, e a democracia se exerce assim, segundo o vereador.

“Precisamos ampliar a representação negra na política. Sou signatário do manifesto nacional da Coalizão Negra Por Direitos que afirma que ‘Enquanto houver racismo, não haverá democracia’. Esse deve ser o nosso objetivo, superar a estrutura racista do modelo econômico e social do nosso país”, afirma Matheus.

A ONG Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes) também fez parte desse movimento de inclusão dos negros em âmbito político. De acordo com David Raimundo dos Santos, o Frei David, fundador da instituição, o principal objetivo da ONG é empoderar o povo negro em todas as áreas possíveis. “A Educafro trabalha de maneira bem transversal, corajosa e, acima de tudo, dá muita ênfase à área da política partidária, considerando que é o espaço onde gera justiça e injustiça”, ressalta.

Segundo ele, a forma da Educafro de ajudar a incluir negros na política é através da reflexão. “Toda reunião geramos debates, temos vídeos incentivando a motivação partidária, incentivando negros a votarem em negros, brancos a votarem em negros etc.”, afirma.

Mulheres negras na Câmara

Ainda majoritariamente branco, masculino e à direita, o Legislativo porto-alegrense começa a ficar mais diverso. Para o mandato que começou em janeiro de 2021 são cinco vereadores negros e jovens, sendo quatro mulheres. Karen Santos (PSOL), Bruna Rodrigues (PCdoB), Daiana Santos (PCdoB), Laura Sito (PT) e Matheus Gomes (PSOL) tiveram, somados, mais de 40 mil votos.

Professora da rede estadual, Karen Santos, 32 anos, admite que as razões para ainda existir poucos negros na política estão relacionadas a vários aspectos. “As dificuldades econômicas impostas às comunidades negras, o racismo institucional, a política de morte (necropolítica) operada pelo Estado brasileiro, as leis trabalhistas e previdenciárias. Enfim, o problema da inserção do negro brasileiro é um problema de toda a nação, com a especificidade da ideologia racista como fator de naturalização e justificação desses problemas”, aponta.

Karen afirma que os mandatos coletivos se enquadram dentro do debate da crises dos partidos e das organizações políticas tradicionais. “É uma tentativa de apresentar um formato mais horizontal e flexível, porém não acho que a crise das organizações políticas tem a ver somente com forma, mas sobretudo é uma crise de natureza, de necessidade de organizações que atuem como instrumento de mobilização, de formação política, de atuação cotidiana, ética e pautada em valores civilizatórios distintos. Nesse sentido, olho esse fenômeno com curiosidade em relação a essas respostas objetivas”, ressalta.

Karen Santos foi a vereadora mais votada de Porto Alegre em 2020. (Foto: Karen Santos/Arquivo Pessoal)

Nascida e criada na Vila Cruzeiro, Bruna Rodrigues, 33 anos, descobriu a política enquanto buscava uma vaga na creche para sua filha. Logo ela se envolveria na luta por moradia — foi uma das pessoas removidas pelas obras de duplicação da Avenida Tronco — , por educação e por saúde, defendendo especialmente o Postão da Cruzeiro.

Para Bruna, existem três aspectos para haver poucos negros na política. “A primeira diz respeito às fontes de financiamento e de acesso à publicidade eleitoral, porque mesmo com a garantia legal de acesso a recursos públicos por meio do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, ainda existe uma lógica onde candidaturas negras não contam com apoio concreto de muitos dos seus partidos. Uma segunda questão é a história do negro no Brasil. E o terceiro e último elemento que destaco é sobre as transformações do debate público. Os meios de comunicação cumprem um papel fundamental na construção da opinião das pessoas e nas suas tomadas de decisão, inclusive eleitoral. Como que candidaturas negras vão ser eleitas se cinco minutos depois suas peles são representadas como empregadas domésticas e/ou traficantes nas novelas?”, questiona.

Em sua avaliação, é extremamente positivo ver que pouco a pouco a representatividade política está se ampliando, ainda tem muito a se avançar, mas só de conseguir estar presente nesses espaços já considera uma vitória. De acordo com Bruna, são conquistas que vieram a partir de uma mudança em como as pessoas estão situadas na discussão política, onde as mídias sociais não são apenas difusoras de conteúdo, mas também permitem que cidadãs e cidadãos possam se manifestar sobre os acontecimentos, potencializando a visibilidade sobre problemáticas como racismo e machismo.

“É óbvio que essas lutas e essa visibilidade ainda esbarram em um problema grave, que é o financiamento eleitoral. A hegemonia dos homens brancos está alicerçada, dentre outras coisas, na sua capacidade de acesso e captação de recursos financeiros, o que os coloca em outro patamar de disputa política. É preciso que o sistema eleitoral garanta condições para mulheres, negras e negros terem acesso aos recursos para o financiamento de campanhas eleitorais, da mesma forma que as pessoas brancas”, afirma.

Bruna acredita que a sociedade como um todo está avançando na sua consciência sobre racismo. “As eleições do ano passado apontaram uma perspectiva de transformação da lógica política que temos hoje. Aqui em Porto Alegre, fizemos história ao eleger uma bancada negra, formada por quatro mulheres e um homem. Por todo o país, diversas pessoas negras foram eleitas. Se conseguirmos manter a visibilidade da luta antirracista e ampliar os mecanismos de equidade racial nas eleições, conseguiremos ampliar inclusive a representatividade negra nas Câmaras e Assembleias Legislativas, Câmara dos Deputados, Senado e nos espaços do Executivo”, projeta.

Estudante de Administração Pública e Social na UFRGS, Bruna é a primeira mulher na família a entrar na universidade. (Foto: Bruna Rodrigues/Arquivo Pessoal)

Jornalista e servidora pública, Laura Sito, 29 anos, acredita que é muito importante e extremamente necessário para a nossa democracia que a participação da população negra em cargos eletivos se faça cada vez maior. “Espero profundamente que tenhamos ainda mais representações negras e que essa onda das duas últimas eleições se confirme forte, pois nós estamos cada vez mais preparados e entramos nesse jogo para ficar”, destaca.

Laura reforça a importância da diretriz do TSE de impulsionar cada vez mais as candidaturas negras. “Eu considero fundamental que tenhamos mudanças na estrutura, que se registrem na lei. Os partidos precisam valorizar a formação de lideranças negras, seja da orientação política que for”, afirma.

Laura Sito acredita no fortalecimento das lutas populares na Câmara de Vereadores como parte do fortalecimento do poder de fiscalização e participação do povo na condução da cidade. (Foto: Laura Sito/Arquivo Pessoal)

Negros na Câmara

De acordo com pesquisa feita pela equipe do Memorial da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, da primeira legislatura, em 1947, até então, 26 negros ocuparam uma vaga no Legislativo, boa parte como suplentes. Foram 20 homens e seis mulheres. O primeiro vereador negro foi Eloy Martins, eleito pelo PCB em 1947. A história do Legislativo da capital gaúcha iniciou no ano de 1773, mas a participação das mulheres negras nesse espaço de poder levou mais de dois séculos para acontecer. A primeira mulher negra a ocupar uma cadeira como titular foi Teresa Franco, a Nega Diaba, mulher periférica, entre 1997 e 2000, pelo PTB.

Teresa Franco (Foto: Arquivo Câmara de Vereadores)

Até então, a legislatura de 2013 a 2016 havia sido o momento em que a Câmara contou com o maior número de negros e negras assumindo a vereança. Tarciso Flecha Negra e Delegado Cleiton foram eleitos, enquanto quatro suplentes da bancada do PT assumiram durante uma semana, uma iniciativa do partido por conta da Semana da Consciência Negra de 2015. Passados 24 anos da primeira negra eleita, o Poder Legislativo porto-alegrense tem no mandato titular quatro vereadoras negras. E tem como primeira suplente do Partido dos Trabalhadores o mandato coletivo de Reginete Bispo, que congrega cinco mulheres negras.

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