“O cinema é uma construção coletiva”

Giba Assis Brasil, um dos fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre, fala sobre sua trajetória e as dificuldades na pandemia

Victória Lima
Redação Beta
10 min readJun 19, 2020

--

Giba relembra os tempos de criação com Super-8 e a transição para o formato 35mm. (Foto: Divulgação/Culturíssima).

Quarenta anos de trajetória. No currículo, dezenas de obras nas quais ele trabalhou como roteirista, diretor e, principalmente, montador. Obras essas que já passaram pelas telas de cinema e da televisão de todo Brasil. Ele é Gilberto José Pires de Assis Brasil, mais conhecido como Giba Assis Brasil. Sua contribuição para a arte do audiovisual também inclui a criação da Casa de Cinema de Porto Alegre, fundada por ele e mais doze cineastas gaúchos em 1987.

A Casa de Cinema, nos anos 80, era uma cooperativa de cineastas. Sua fundação representou um investimento do cinema gaúcho no formato Super-8, que possibilitava uma produção mais caseira e de baixo custo. Foi com essa inovação que obras cinematográficas daqui puderam atingir o território nacional. Desde sua criação, a Casa já passou por muitas transformações e hoje é uma produtora que trabalha em projetos de cinema e TV para todo o Brasil.

Giba é artista “sem rosto” da obra audiovisual, que está por trás das câmeras. O talento de profissionais como ele se encontra na construção da história, na seleção e organização das cenas, nas escolhas dos melhores ângulos. A arte de Giba é o que dá sentido ao roteiro e a atuação daqueles que, sim, estão em frente às câmeras. Como ele mesmo diz, o cinema é uma construção coletiva.

Vindo do jornalismo, Giba se encontrou no cinema por acaso. Foi um dos criadores do longa-metragem Deu Pra Ti Anos 70 (1981), cujo nome inspiraria a conhecida música de Kleiton e Kledir (Deu Pra Ti). Já trabalhou como diretor e roteirista, mas sua vasta experiência está voltada para a montagem. Hoje, segue trabalhando na Casa de Cinema de Porto Alegre e é professor do curso de Realização Audiovisual da Unisinos.

É impossível não falarmos de Deu Pra Ti Anos 70, afinal, o longa-metragem foi a sua porta de entrada para o cinema. Quais experiências com a arte audiovisual esse filme lhe proporcionou? O que você aprendeu de inovador naquela época?

Eu comecei a fazer o filme meio que por acaso, porque eu não tinha ideia ou perspectiva de fazer cinema. Estava estudando jornalismo e a minha ideia era eventualmente me tornar crítico de cinema. Política internacional também era uma coisa que me interessava. Foi num curso que tive contato com o pessoal do Grupo Humberto Mauro, que faziam sessões de filme brasileiros em formato Super-8. Era uma alternativa na época para fazer filmes muito baratos, com orçamento praticamente doméstico. E, principalmente, tive contato com Nelson Nadotti com quem me identifiquei e criei uma amizade rapidamente. Em uma de nossas conversas, ele propôs que fizéssemos um filme juntos. Começamos a escrever e terminou virando um longa (Deu Pra Ti Anos 70), que ficou maior do que imaginávamos. Ficamos mais de um ano envolvidos no filme até ele ficar pronto.

Giba e Nelson Nadotti foram os criadores do longa-metragem Deu Pra Ti Anos 70. (Foto: Flickr/Christian Schneider).

Lembro que o que mais me atraiu naquela experiência foi descobrir a criação coletiva, descobrir que o filme não tem um autor, ele é feito por um monte de gente. Claro que sempre terá aquele que chamamos de diretor, que é o maestro responsável por tomar a maior parte das decisões criativas em relação ao filme, mas o resultado é um trabalho coletivo. Isso eu achei um negócio muito legal, ir combinando o que tu e o outro sabem fazer. Essa construção coletiva é o que mais me atraiu no cinema.

Do jornalismo para o cinema. Como isso aconteceu e qual foi o momento decisivo para você sair de um campo e entrar completamente no outro?

Quando fiz o filme, ainda estava cursando jornalismo, mas já estava trabalhando na área, no departamento de esportes da Rádio Gaúcha. Isso foi em 1980, eu tinha 23 anos. Inclusive, eu já tinha saído da casa dos meus pais, já tinha minha independência precária, claro, pois não era grande meu salário (risos).

Eu comecei a fazer o filme nos horários livres, nas poucas folgas que eu tinha, e pagava a minha parte dos custos com meu salário. Só que quando terminamos de filmar, vimos que tínhamos um longo trabalho de montagem pela frente. Tínhamos perspectiva de apresentar a obra no Festival de Cinema de Gramado de março de 1981, e estávamos em dezembro de 80. Então, eu decidi largar meu emprego para conseguir fazer isso. Eu tinha mais ou menos uma poupança que me seguraria por dois ou três meses e resolvi largar o emprego. Mas a ideia era, assim que lançar o filme, procurar outra oportunidade de trabalho no jornalismo, até porque eu já estava me formando na faculdade.

Só que terminou o filme e já emendamos outro, que foi o Coisa na Roda (1982), depois veio Inverno (1983). Então, fui ficando no cinema meio que por acaso e estou até hoje nisso. Se teve um momento decisivo, foi esse: o Deu Pra Ti Anos 70.

Você escreve em um blog no site da Casa de Cinema de Porto Alegre, expondo sua opinião, comentando diversos assuntos e contando histórias pessoais. No entanto, apesar de mantê-lo desde 2007, ele não segue uma periodicidade. Como é sua relação com esse espaço de escrita?

Eu escrevo muito, o dia todo. Mas nunca consegui me organizar para escrever para um público. Cheguei a receber proposta para publicar colunas quinzenais, mas sempre fiquei na dúvida sobre isso porque eu não tenho tanta coisa assim pra dizer. Não tenho certeza se terei algo a dizer daqui a 15 dias. Em toda a minha trajetória desde o jornalismo, eu escrevi bastante coisa, mas nada que me dê vontade de publicar.

Quando, eventualmente, eu tenho vontade de publicar, esse blog é um espaço que utilizo. Eu até digo que terminei fazendo cinema porque eu não conseguia ficar suficientemente satisfeito com o que eu escrevia. Não gostava do que eu escrevia suficientemente para viver a partir daquilo. Em um determinado momento, eu percebi que era melhor copydesk (trabalho de editor para formatar um texto) do que redator. Eu trabalhava melhor aprimorando e afunilando o texto dos outros do que o meu próprio texto, e ser montador de cinema é um pouco isso.

Que diferenças você vê no seu trabalho para o cinema e para a TV?

Há várias diferenças, principalmente, porque o público de televisão é um público mais desatento do que o de cinema. Então, na TV, é preciso trabalhar com determinadas redundâncias, não que haja uma repetição de frases ou imagens, mas ideias que precisam ficar marcadas. E quanto maior a obra, mais a redundância se torna necessária. A novela é um exemplo disso. É necessário assistir em pedaços e, por isso, a repetição se faz necessária. Já no caso de longa ou curta-metragem, é preciso concentrar a informação naquele pouco espaço de tempo disponível, então as redundâncias são cortadas e deixamos apenas o essencial. Essa diferença se dá no roteiro, na produção, na interpretação, na direção e na montagem, que é o meu trabalho. Na montagem, nós damos mais ênfase em determinadas coisas e eliminamos tudo que está sobrando no caso do cinema.

Hoje em dia, diria que essa diferença é cada vez menor porque as mídias se convergem muito, o cinema, a TV e a internet. Hoje, o mais importante é pensar quem é o público da tua obra e construir ela pensando nesse público.

O montador não pode, nunca, se considerar satisfeito com a primeira opção. Ele precisa experimentar alternativas até ter certeza de que aquela é a melhor.

Em uma entrevista para a TVE, você comentou sobre as produções com as películas cinematográficas e como elas influenciavam no trabalho. Hoje, as limitações do analógico não existem mais. O que você colocaria como legado disso na construção da sua experiência com o audiovisual?

As películas eram um material mais caro, por ser feito a base de prata, então tínhamos que economizar na hora de filmar e na hora de montar. Além disso, por ser um material muito perecível, todo trabalho de montagem tinha que ser feito com muito cuidado. Já no digital, posso me dar ao luxo de errar mais porque é mais fácil de corrigir os erros sem perder nada. Com as películas, por exemplo, eu fazia uma opção de montagem para mostrar ao diretor, e se ele não gostava, eu tinha todo o trabalho de refazer a montagem. Ia na casa da película e tinha que cortar e colar os pedacinhos tudo de novo. E quando o diretor decidia que estava melhor como estava antes, daí dava todo um retrabalho. Na minha área de montagem, as possibilidades do digital facilitaram muito. Algumas pessoas que trabalharam com o analógico dizem que a rapidez do digital tira o tempo de pensar, que não é possível refletir direito se aquela é a melhor maneira de montagem. Mas isso se resolve, é só dar uma pausa no trabalho para pensar. Inclusive, essa pausa é essencial porque a tendência, às vezes, é ficar na primeira opção possível de montagem e o montador não pode, nunca, se considerar satisfeito com a primeira opção. Ele precisa experimentar alternativas até ter certeza de que aquela é a melhor.

Em 2015, Giba conta um pouco do início da sua carreira para a TVE. (Vídeo: TVE/Youtube)

O que você diria que é a arte do montador?

É a arte de conhecer profundamente o material que o diretor filmou. Também é comparar todos os resultados possíveis entre o que está filmado e a intenção que estava no roteiro para tentar, a partir dali, conseguir o melhor resultado para o filme. É pensar nessas três etapas: roteiro, filmagem e montagem.

Antes mesmo de trabalhar nesta área, quais contatos você tinha com o cinema gaúcho?

Quando eu comecei, praticamente não existia o cinema gaúcho. Meu primeiro contato foi no curso, com pessoas que produziam a partir do Super-8 um conteúdo amador. Naquela época, estava terminando o ciclo do Teixeirinha. No entanto, os filmes do Teixeirinha não tinham como principal objetivo contar histórias cinematográficas, mas sim vender sua produção musical. Então, o cinema foi uma maneira de multiplicar o trabalho dele e poder atender à demanda de shows que ele não conseguia fazer por ser muito requisitado. Nessa época, o cinema gaúcho contava, principalmente, com a produção do Teixeirinha e do José Mendes, que também tinha o mesma objetivo.

As produções com películas Super-8 eram caseiras e de baixo custo. (Foto: Flickr/Christian Schneider).

Foi essa produção que formou um grupo de fotógrafos, assistentes, produtores, montadores e roteiristas que se desenvolveram em torno dessa indústria e que terminou sendo muito importante quando fomos fazer essa passagem do Super-8 para o filme de 35mm, o profissional. Isso foi por volta de 83 e 84. Existia essa cena, apesar de pequena e pouco conhecida se comparada à de hoje. Ela foi importante porque foram esses profissionais que fundaram a Casa de Cinema de Porto Alegre. Quando formamos a Casa, em 87, eu já estava trabalhando com cinema, foi mais ou menos quando me desliguei totalmente do jornalismo e comecei a me organizar no audiovisual. O projeto foi uma forma de fazer isso, de pensar o futuro junto com outros profissionais.

E qual foi a importância da criação da Casa de Cinema nessa época?

A Casa de Cinema foi fundamental. Éramos um grupo de mais ou menos 20 pessoas que trabalhavam em conjunto. Já tínhamos feito alguns filmes, mas não tínhamos um local de trabalho, de encontro, para nos reunirmos e organizar o trabalho. Cada um fazia na sua casa e, na época, isso era muito difícil, não havia a facilidade do home office de hoje. A Casa de Cinema nasceu, então, como uma cooperativa de 13 pessoas e, mais adiante, se tornou uma produtora, daí com 6 sócios — porque algumas pessoas saíram.

Hoje, são quatro sócios, pois 2 deles abriram suas próprias produtoras.

Verdes Anos, de 1984, foi dirigido por Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (a esquerda do cartaz). (Foto: Divulgação/Almanaque Literário).

Como você está lidando com os desafios impostos pela pandemia?

A gente sempre tenta encontrar o lado bom, e, inclusive, tem muita gente escrevendo sobre esse lado bom. Mas, é ruim, né? É muito ruim se sentir obrigado a ficar trancado em casa.

Dar aula em casa está sendo uma alternativa, mas esse não é o curso que a gente previu, pois eu preciso ter o contato direto com o aluno para acompanhar o que ele está aprendendo ou não. Não gosto de dar aula a distância, não pretendo continuar depois, mas enquanto for necessário, vou fazendo. Uma pandemia é uma coisa ruim, certamente, para todo mundo, mas tendo um governo assassino como no nosso caso, um governo absolutamente despreparado e apostando no caos, na divisão, no ódio e na briga entre as pessoas, é ainda pior. Eu estou me sentindo muito mal por estar vivendo esse período, em específico, no Brasil — com esse governo idiota.

A quarentena interrompeu algum projeto seu?

Sim. Estávamos finalizando um filme que passamos o ano passado inteiro produzindo, Os Olhos de Ernesto, da Ana Luiza Azevedo. Tínhamos data marcada para estrear em 16 de março. Dias antes, tivemos que cancelar a estreia do filme. Estamos até hoje pensando em como podemos fazer. Neste final de semana, faremos uma pré-estreia na internet, mas quando haverá a estreia no cinema, não temos a menor ideia. Então, parou tudo.

Estávamos com o projeto de uma série também que já deveria ter sido rodada e que agora eu estaria montando, mas também não sabemos quando iremos fazer. Os projetos estão todos parados. A Casa de Cinema não está funcionando. Estamos conseguindo, pelo menos, manter o salário dos funcionários para que eles trabalhem em casa.

Não sei quanto tempo iremos conseguir resistir dessa forma. A ideia é retomar quando for possível, mas sem atropelos, sem fazer essa coisa absurda de voltar para rua normalmente porque a situação não é normal, e ter que voltar atrás depois de muitas mortes é pior. Infelizmente, essa é a opção possível. Está faltando uma liderança no país para ter o mínimo de bom senso na condução dessa situação, que ninguém previa e que, com uma condução idiota, fica muito pior.

A Casa de Cinema de Porto Alegre liberou 23 obras em seu Vimeo sob o título de Fique Em Casa. Entre as obras liberadas, estão Deu Pra Ti Anos 70 e Verdes Anos, mencionados nesta entrevista. Além de produções mais antigas, também foram liberados filmes de alcance nacional, como Meu Tio Matou um Cara, que conta com a atuação de Lázaro Ramos e Deborah Secco no elenco principal e com a montagem de Giba Assis Brasil.

--

--