O cinema nacional e a ditadura militar: contrastes de uma história brasileira

A importância de filmes que abordem o regime ditatorial vivido no Brasil para a construção de uma memória social efetiva

yasmim fernandes borges
Redação Beta
5 min readDec 1, 2022

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Seu Jorge, ator e cantor, é o protagonista de “Marighella”, filme produzido em 2019 sobre guerrilheiro brasileiro. (Imagem: Reprodução/O2 Filmes)

O cinema nacional é reconhecido internacionalmente por filmes que retratam o período da ditadura. A mais recente produção que retrata os 21 anos de regime autoritário é Marighella, que participou de diversos festivais internacionais, como o Cannes, na França, e a Berlinale, na Alemanha. A obra conta a história de Carlos Marighella, escritor, político e guerrilheiro que lutou na linha de frente contra a ditadura militar, comandando um grupo comunista revolucionário, e acabou assassinado por agentes do regime em uma emboscada.

Em um momento tão importante para reafirmar a necessidade de uma democracia cada vez mais forte, é necessário lançar mais filmes sobre a ditadura? É relevante relembrar sobre as barbáries que ocorreram neste período ditatorial? A Beta Redação conversou com críticos de cinema e pesquisadores da área para entender um pouco mais sobre essa questão.

Zeca Brito, cineasta e atual diretor do Instituto Estadual de Cinema do Rio Grande do Sul (Iecine), entende que seja muito necessário que se façam filmes sobre o período da ditadura militar e também da época anterior ao regime autoritário. “A gente precisa fazer filmes que a ditadura não deixou, histórias que não permitiram que a gente contasse”, afirma Brito.

“O caso do longa-metragem Legalidade é isto, retrata uma história anterior à ditadura mas que a ditadura fez questão de apagar. E, a partir do núcleo do Legalidade, poderíamos pensar diversas outras histórias que aconteceram antes, depois, e que também não foram contadas.”

Zeca Brito, diretor de “Legalidade”, acredita no poder das histórias que não foram contadas durante o regime militar. (Imagem: Reprodução/Prana Filmes)

Dirigido por Zeca, o filme retrata o período da renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, mostrando o medo, por parte dos militares, das opiniões de esquerda de Jango. Liderado por Leonel Brizola, o movimento Legalidade foi criado para garantir a posse do vice-presidente em 1961.

Segundo o cineasta, há uma grande lacuna histórica no Brasil, um período que o país não contou sua história. Ou relatou a partir da narrativa dominante, da perspectiva de quem estava no poder, não contemplando a diversidade de opinião.

Já o jornalista, doutor em Comunicação e presidente da Associação de Críticos de Cinema do RS, Danilo Fantinel, entende que filmes sobre a ditadura militar no Brasil serão sempre importantes, por vários motivos. Para ele, o cinema é uma forma de pensar o mundo e de se referir a ele por meio de uma linguagem audiovisual que expressa entendimentos sobre nosso contexto. “Os filmes nos ajudam a elucidar questões sobre nosso processo histórico, social, cultural, político e econômico. Precisamos que realizadores de cinema façam obras ficcionais ou documentários sobre estes temas”, ressalta Fantinel.

O cineasta e atual desenvolvedor do longa-metragem Grito, que discute repercussões históricas da ditadura militar brasileira, Davi de Oliveira Pinheiro, fala que nunca houve um momento em que o cinema de cunho político e histórico fosse desimportante. “O que acontece às vezes é cair na ilusão que uma cicatriz aberta como a ditadura militar brasileira se esgota como assunto, pois seu impacto ainda ressoa naqueles que viveram e naqueles que herdaram a história que segue”, relata. Porém, Pinheiro segue ressaltando que, após tantas voltas, filmes sobre o regime ditatorial são importantes em momentos cruciais como agora e em momentos de aparente serenidade.

Sobre Marighella, obra mais recente que relatou o período da ditadura, os três entrevistados veem uma grande importância em se retratar um nome tão relevante na história, mas que acaba tendo algumas falhas em questões cinematográficas.

Zeca Brito afirma que o filme Marighella se vale muito de uma estética de espetacularização da história. “Eu acho que é importante também, que a gente faça um cinema de espetáculo, um cinema de ação, um cinema de diálogo com a população, mas acho que precisamos também de filmes que aprofundem mais as questões políticas.” Mas ele não descarta a importância da obra para a sociedade e traz a notabilidade de existirem versões de outros diretores sobre o mesmo assunto, o que possibilita a realização de um cinema mais plural.

“Acredito que O que é isso, companheiro? é um filme que faz bem isso no sentido de ter o arco dramático e conter uma profundidade de reflexão política também, do que está sendo debatido como ideologia, como pensamento de visão de mundo,” salienta Brito.

Em 1997 foi adaptado para o cinema o livro “O que é isso, companheiro?” que retrata a luta de um grupo de guerrilheiros durante a ditadura militar brasileira. (Imagem: Reprodução/Pandora Filmes)

Para Danilo Fantinel, Marighella, que ganhou destaque recentemente, tem qualidades técnicas, estéticas e narrativas. Mas, ainda que seja inspirado em fatos reais, é ficção. “Não é a realidade. É um filme. Portanto, o que vemos é uma história romanceada, elaborada não apenas para refletir fatos ocorridos no Brasil, mas também para envolver o espectador em um drama de ação com contexto histórico.” Ele fala que mesmo documentários, supostamente mais fiéis à realidade, guardam em si subjetividades e intencionalidades de seus realizadores.

Por fim, Zeca Brito deixa sua opinião sobre o cinema brasileiro contemporâneo. “Nós vimos a exaltação do militarismo, das polícias, da ideia de que bandido bom é bandido morto, e da negação de todo o racismo estrutural a partir dessas narrativas, da negação do encarceramento em massa da população negra.” Para ele, tudo isso é debatido nesse cinema neofascista que espetaculariza as regiões periféricas, apresenta a violência pela concepção da polícia e que cria heróis desumanos e mortíferos. “Isso precisa ser pensado também.”

O jornalista Danilo Fantinel relembra algumas obras do cinema que foram e são importantes para contar a história que foi vivida no Brasil. “Desde filmes documentais poéticos e subjetivos como Elena (2012), de Petra Costa, até documentários tradicionais, como O dia que durou 21 anos (2013), de Camilo Tavares, todos nos fazem lembrar deste triste e violento passado nacional.”

A sociedade brasileira necessita reconhecer sua história para não repeti-la. Um dos caminhos possíveis para esse reconhecimento histórico é a cinematografia brasileira, um instrumento artístico que produz narrativas e ajuda a reconstruir a memória. Essencial é percebemos a importância de filmes que falem sobre esse período tão sombrio que o Brasil passou.

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