Tumblr “Eu Vou Contar”, com a pesquisadora Debora Diniz narrando um caso de aborto clandestino (Foto: Reprodução/Tumblr)

O contraste entre abortos clandestinos e legais

Dados do hospital referência para atendimento das mulheres vítimas de violência revelam que muitas têm buscado na justiça o direito ao aborto legal

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A lei brasileira permite o aborto legal em casos de estupro, gravidez de risco ou se o feto sofrer anencefalia — ou seja, fetos sem cérebro. Esse último foi incluído na lei em 2015, em votação histórica do STF, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54.

Em Porto Alegre, o Hospital Fêmina é um dos espaços de saúde buscado pelas mulheres para o aborto legal. Segundo dados do hospital, muitas gaúchas têm procurado o serviço em função das violações causadas pelo efeito “Boa noite Cinderela” e que estaria ocorrendo com mais frequência na Cidade Baixa, bairro boêmio da capital. Para quem não conhece, o método consiste em colocar drogas nas bebidas e, assim, conseguir roubar ou/e estuprar a vítima. Segundo informações do hospital, a maior taxa de incidência se deu por meio de mulheres de classe média que estavam em bares ou festas.

O Hospital Fêmina, de Porto Alegre, é referência na saúde da mulher no Estado. De acordo com dados do hospital, até agosto deste ano foram realizados nove abortos em decorrência de estupro. Esse é um dos casos em que a prática é amparada pela lei no Brasil.

Para os casos de abuso sexual, a vítima passa por uma “maratona”. Ao chegar no hospital e declarar ter sido vítima de violência no momento de fazer o boletim, o Fêmina trata como prioridade o caso, na Emergência. O enfermeiro faz o acolhimento à vítima e explica o procedimento até que um médico disponível possa atendê-la. A partir de então, monta-se a equipe multidisciplinar para que a pessoa não precise repetir diversas vezes o ocorrido. A equipe é composta por enfermeiros, agentes do serviço social, psicólogos e médicos.

Após o relato são feitos os exames de ecografia e de toque. Se as informações “baterem” com os exames médicos no entendimento da equipe, o aborto é realizado de acordo com o protocolo. O setor de serviço social fica responsável pela parte legislativa. Quem explica o procedimento é a assistente social Marli Machado Silveira, uma das três que compõe o núcleo de Serviço Social do Hospital Fêmina.

A também assistente social Beatriz Luckowv explica que o serviço social cumpre com seu papel ao tentar auxiliar a vítima e apresentar possibilidades. Ela ressalta que muitas mulheres chegam lá com medo de relatar a sua história. Algumas sequer registram Boletim de Ocorrência (BO) e tendem a não estarem tão bem informadas sobre a situação. “Damos todas as oportunidades e encaminhamentos que ela [vítima] pode ter, além de desistir de fazer o aborto, analisamos as condições que ela tem, onde ela mora. Às vezes, a gente consegue levar a gestação até o fim e depois ela doa o filho”, salienta.

Marli explica que nenhum profissional da área da saúde se forma para fazer abortos, mas sim para salvar e tratar vidas. Contudo, pondera, não se trata de uma guerra de consciência. "A gente entende [o aborto] como uma decisão da pessoa e, como profissionais da área da saúde, o primeiro sentimento que temos que ter é o respeito, e o segundo, a empatia. Não estamos aqui para fazer nenhum julgamento”, enfatiza.

No Hospital Fêmina foram realizados mais abortos legais nos oito primeiros meses de 2018 do que em todo 2017

Dados disponibilizados pelo Hospital Fêmina mostram os casos de abortos legais desde 2015 no hospital

Os dados apontam que, entre 2015 e 2017, não houve grande variação no número de mulheres vítimas de violência que chegaram ao hospital. O número de abortos realizados no período também é parecido, oscilando entre 6 e 8. A diferença está em 2018, considerando que o número de abortos realizados já é maior que nos anos anteriores, ainda sem contar com setembro, outubro, novembro e dezembro. Por outro lado, 2017 mostra algo inusitado: de todas as mulheres vítimas de violência que quiseram realizar o aborto, 100% delas estava dentro do protocolo — ou seja, todas puderam realizar o procedimento.

Os itens “percentuais de abortos aprovados” e “percentuais de abortos negados” se referem às taxas realizadas ou não de abortos. O hospital segue as indicações do Ministério da Saúde. Em 2015, por exemplo, dos casos de gravidez indesejada, na avaliação da equipe multidisciplinar, 50% se confirmaram para ação legal e realizaram o aborto e 50% não.

Mais de 500 mil abortos clandestinos foram realizados em um ano

De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), estima-se que 416 mil mulheres tenham abortado em 2014. Em 2015, 503 mil abortos clandestinos foram feitos. O estudo revelou ainda que 1,435% da população feminina urbana, alfabetizada e de 18 a 39 anos, já realizou aborto. Isso representa 4,7 milhões de casos.

Segundo o levantamento, uma em cada quase cinco mulheres já realizou pelo menos um aborto até os 40 anos. O “perfil” destas mulheres é de escolaridade baixa (22% até a quarta série), pretas ou indígenas, principalmente das regiões norte, nordeste e centro-oeste.

Alternativas para visibilizar o tema: “Eu Vou Contar”

“Eu morava com meu pai de favor na casa da minha avó. Eu já tinha um filho, só um namorado recente, nada fixo, e só 20 anos. Eu descobri já com dois meses de gravidez, eu havia menstruado no primeiro mês, daí nem desconfiei. Não preciso nem explicar o quanto fiquei desesperada [...] Não me pergunte como, mas lá estava eu como mais quatro comprimidos. A conclusão é que usei quatorze citotec quando comecei a sentir dores […]

É, essa é minha história. Parece de horror, não é? Eu sou uma mulher comum, com esse segredo. Espero, de verdade, que um dia possamos escolher o que é melhor para nossas vidas, sem nos arriscarmos, e com o apoio de um hospital nos ampare e nos dê tratamento necessário. Eu falei tudo tão rápido, me desculpe pela pressa. Eu queria contar. Obrigada por ter me ouvido”.

Esta é uma das 23 histórias de abortos clandestinos relatadas por meio do tumblr Eu Vou Contar. A iniciativa foi criada pelo Instituto de Bioética — Anis, com organização da ONG Think Olga. Ao todo, serão 52 casos contados ao longo do projeto.

A página no Tumblr é feita com relatos em textos, transcritos, e com um vídeo do relato falado. Contudo, quem “encena” e narra tudo é a antropóloga Debora Diniz, do Instituto Anis. A identidade das vítimas dos relatos é preservada. Aliás, nem a própria antropóloga sabe o nome das mulheres. Porém, há uma importante observação: todos os depoimentos retratados precisam ter ocorrido há pelo menos oito anos. Esse é o tempo mínimo para que uma mulher possa falar sobre a prática de aborto ilegal sem ter complicações na Justiça.

Visibilidade do debate na América Latina

O debate sobre a descriminalização do aborto voltou com mais intensidade nos últimos meses com as votações argentinas. No país vizinho, campanhas nacionais de mulheres fizeram com que o tema fosse pautado na Câmara e no Senado. A proposta chegou a ser aprovada em votação história na Câmara argentina, mas não passou pelo Senado. No Brasil, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a ADPF 442, que tem como premissa a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A partir disso, uma audiência pública foi promovida pelo STF e contou com pensadores e intelectuais de diferentes perspectivas para tratar o tema.

As audiências públicas costumam ser um pontapé inicial para tratar essas questões. O tempo para algo que está sendo tratado tenha efetividade costuma demorar mais de um ano. Se formos pegar como exemplo a ADPF 54, que autorizou abortos em caso de anencefalia, em 2012, perceberemos que a audiência pública sobre o caso foi feita em 2008, quase quatro anos antes. São muitos procedimentos e atos a partir de uma audiência, ainda mais tratando de temas controversos como estes.

Ao todo, em 63 países o aborto não é considerado crime. A Irlanda foi o país mais recente a se juntar nesse índice, em maio deste ano, por meio de um plebiscito no qual 66% da população votou favorável à descriminalização. Na América Latina, Uruguai, Guiana, Porto Rico e Cuba (o primeiro da AL, desde 1959) descriminalizaram a prática.

Há diversas movimentações prós e contrárias ao aborto legal. A Frente Nacional pela Legalização do Aborto, por exemplo, é uma rede de movimentos em prol da descriminalização total do aborto. A rede comporta várias formas de luta. “Tem grupo/coletivo de religiosas, em universidades, redes feministas, ongs, etc. Acreditamos que é um direito reprodutivo e defendemos aborto legal, seguro e gratuito, pois nenhuma mulher deve ser maltratada, humilhada, presa ou morta por exercer sua autonomia reprodutiva”, salientam.

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