CRÍTICA: O coveiro mais famoso do Brasil

Falecido em fevereiro deste ano, José Mojica Marins marcou seu nome na história do cinema nacional

Lucas Lanzoni
Redação Beta
7 min readMay 7, 2020

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José Mojica Marins, o Zé do Caixão. (Foto: Hélvio Romero/Estadão Conteúdo)

O mais popular protagonista de horror brasileiro foi criado em 1964. Josefel Zanatas levava a alcunha de Zé do Caixão, pois sendo o dono da única funerária de sua cidade, enterrava todos os mortos do lugar. Ao longo dos anos, o personagem participou de inúmeros filmes e programas de televisão, apresentado nas mais diversas mídias. Quem era criança e adolescente na década de 1990 deve lembrar das tardes na TV Bandeirantes, em que Zé do Caixão aterrorizava os telespectadores com filmes de terror no seu programa, Cine Trash. Mas nada elevou mais a sua fama do que a trilogia que Mojica começou há mais de 50 anos e que só foi finalizada em 2008, com o seu último filme — uma espécie de despedida para o personagem mais querido do terror nacional.

“À meia-noite levarei sua alma”

Lançado em 1964, com roteiro e direção de José Mojica Marins, o filme À meia-noite levarei sua alma é um marco dentro do cinema nacional, pois foi a primeira obra produzida do gênero terror. Com pouco orçamento e muita vontade, José Mojica conseguiu construir um personagem interessante que está até hoje na cultura popular brasileira. Um homem que não acredita em Deus ou no diabo, que não possui nenhuma crença.

A história se passa no interior de São Paulo, onde Zé do Caixão é o coveiro do cemitério da cidade. Tudo começa quando Zé decide que está na hora de ter um filho, porém, ele quer engravidar a noiva de seu amigo Antônio, uma jovem mulher chamada Ritinha. O plano começa a ser posto em prática após Zé matar sua esposa, Lenita. Numa das cenas mais famosas do filme, em que uma aranha é posta de verdade sobre a atriz, Lenita acaba sendo assassinada pelo marido.

Com muito cinismo, Zé enterra a esposa e continua buscando o seu objetivo. O próximo passo é se livrar do amigo, que o convidou para beber após ambos deixarem Ritinha em casa. Na casa de Antônio, Zé comete outro assassinato, deixando o caminho livre para colocar as mãos em Ritinha. Para conseguir chegar nela, o personagem compra um presente e leva até sua casa, para finalmente fazer aquilo que planeja.

Cena do filme “À meia-noite levarei sua alma”. (Foto: A Escotilha/Reprodução)

É difícil saber o quão impactante foi à época de sua exibição a cena em que Zé abusa de Ritinha. Mesmo nos dias hoje, em que inúmeros filmes já produziram cenas piores, o estupro de Ritinha segue sendo forte e chocante. Após ser abusada, ela diz que vai se matar e jura que voltará para levar a alma de Zé. É nesse ponto de virada do filme que Zé começa a ser atormentado por aquilo que nem ele mesmo acreditava. Mortos de volta à vida e espíritos começam a assustá-lo e, adiante, o levam finalmente à morte, como Ritinha havia prometido.

O filme conta com um elenco consideravelmente grande, considerando o investimento e a época em que foi feito. O nível de atuação não é dos mais espetaculares, sendo apenas o personagem Zé do Caixão bem construído e desenvolvido durante a película. Por ser um filme em preto e branco, a obra possui uma fotografia bonita feita por Giorgio Attili, que aproveitou muito bem o tom escuro das cenas para deixar o personagem de Mojica mais assustador.

Mesmo após todos esses anos e inúmeros filmes de horror já terem sido feitos no Brasil, a obra de José Mojica continua sendo de suma importância, e é uma produção que deve ser visitada por todos que gostam de cinema. Vale ressaltar que, em 2015, À meia-noite levarei sua alma entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos — seleção de filmes criada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

“Esta noite encarnarei no teu cadáver”

A sequência, Esta noite encarnarei no teu cadáver, lançada em 1967, começa exatamente do momento em que o filme anterior terminou, surpreendendo o espectador com o fato de que Zé do Caixão não morreu, apenas acorda muito ferido. Após retomar a consciência, Zé continua com o plano de encontrar a mulher ideal para gerar o seu filho perfeito. Agora, com o auxílio de Bruno, seu ajudante que lembra muito o assistente do Dr. Frankenstein, Fritz, do clássico filme de 1931 da Universal, ele sequestra seis belas mulheres para submetê-las às mais diversas torturas até encontrar a esposa ideal.

Logo de cara, uma das cenas mais sádicas é também um dos momentos mais icônicos na filmografia de José Mojica, quando centenas de aranhas reais são colocadas sobre os corpos das sequestradas, remetendo ao acontecimento do primeiro filme. Depois de escolher uma mulher chamada Márcia, Zé manda assassinar todas as outras por meio de picadas de cascavéis. Porém, Jandira, uma das mulheres raptadas, roga para Zé que voltará para encarnar em seu cadáver.

No decorrer da história, Laura, a filha do coronel que chega na cidade, é apresentada e logo chama a atenção de Zé. Com a desistência de Márcia de gerar seu filho por não conseguir aguentar o seu nível de sadismo, ele opta em conquistar Laura, que na sua visão tende a ser perfeita por enxergar a vida como ele mesmo enxerga.

O casal Laura e Zé do Caixão. (Foto: Adoro Cinema/Reprodução)

No mesmo dia em que Zé assassina o irmão de Laura, ele dorme com a mesma, executando o seu objetivo. Na noite em questão, um pesadelo leva Zé para o inferno, cena esta que marcou o filme, pois o inferno apresentado é o único momento onde tudo fica colorido. Fogo, gelo, pessoas sendo espancadas e muita tortura sádica, são momentos que Zé presencia em seu pesadelo, enxergando a sua fisionomia na figura do diabo.

Após acordar cheio de angústia e ver sua mulher morrer, falhando em dar à luz o seu primogênito, Zé jura blasfêmias contra todos os credos e divindades. Nessa mesma noite, a população ensandecida decide caçá-lo. A cena da perseguição lembra mais uma vez o filme Frankenstein, que foi uma influência nessa sequência de Mojica. Pessoas com tochas o cercam quando ele cai dentro de um lago, afundando lentamente até morrer afogado com o esqueleto de Jandira aparecendo sobre a água.

Diferentemente do primeiro filme, a continuação possui um elenco maior, mas ainda com atuações bem fracas, nada que atrapalhe o desenvolvimento da trama. Levando em consideração o período em que foi feito, a película consegue divertir o espectador nos dias de hoje, pois o nível de maldade do personagem Zé do Caixão ainda não foi superado por nenhum outro protagonista do cinema nacional.

Assim como o filme anterior, Esta noite encarnarei no seu cadáver também entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, em 2015, fazendo com que o personagem criado por Mojica ficasse marcado de vez na história da cultura popular brasileira.

Encarnação do demônio

Após longos 41 anos de espera, Mojica finalmente conseguiu finalizar a história de seu personagem. Porém, o encerramento passou longe de ser tão marcante quanto as duas outras obras. Lançado em 2008, Encarnação do demônio começa com Zé sendo libertado da prisão, onde passou 40 anos. Diferentemente do final do segundo filme, que mostra o personagem morrendo, nesse o espectador mais uma vez é surpreendido ao saber que na verdade Zé consegue se salvar do afogamento, sendo preso logo em seguida.

Josefel Zanatas próximo de sua liberdade. (Foto: Revista O Grito!/Reprodução)

Recebido pelo seu antigo e fiel ajudante, Bruno, na saída do presídio, Zé precisa se adaptar ao mundo novo, pois é tudo completamente diferente do tempo em que aterrorizava na sua antiga cidade. Após esse longo período preso, Zé é surpreendido ao sair da cadeia, pois, agora, ele possui seguidores dispostos a tudo para lhe servir. A história segue o padrão dos filmes anteriores, em que Zé busca encontrar a mulher perfeita para gerar o seu filho, que lhe dará a imortalidade.

Dando sequência à história, Zé manda seus servos raptarem algumas mulheres para ele escolher qual será a mãe de seu filho. É nesse exato momento que o melhor e o pior do filme se misturam. As cenas de torturas são muito bem feitas, considerando-se as limitações de uma produção nacional. Sangue, efeitos especiais e muito sadismo, isso é o que de melhor Mojica consegue entregar na obra. O ponto negativo é que o filme mais parece uma série de esquetes de torturas, em que não se consegue entender o real motivo para tanto ódio. Se fosse filmado nos dias de hoje, com certeza receberia duras críticas por conta da maneira como as mulheres são retratadas na história.

Outro ponto fraco do filme são os personagens extremamente caricatos e forçados, que juntamente do elenco de apoio fogem muito do tom dos primeiros filmes. A película conta com alguns atores conhecidos, como Milhem Cortaz, que interpreta um padre chamado Eugênio, um dos caçadores de Zé, e Luís Melo, conhecido ator global que faz o policial Américo, o responsável por libertar Zé no início da história. Mas nenhum dos citados ou os demais atores e atrizes conseguem entregar um trabalho bem feito, apenas interpretações forçadas que causam uma certa vergonha alheia.

Após lutar contra o padre Eugênio, Zé acaba sendo morto com uma cruz cravada em seu coração. Porém, na última cena do filme, quando o túmulo de Josefel aparece, todas as mulheres que haviam sido sequestradas aparecem grávidas, mostrando que, finalmente, o seu tão almejado sonho, a imortalidade por meio do segmento de seu sangue, havia sido alcançada.

O final da trilogia de Mojica não foi satisfatório. Contudo, nada tira o impacto que ele causou quando, há mais de 50 anos, lançou um filme que surpreendeu pela originalidade e capacidade de fazer algo que chamasse a atenção do público, mesmo sem muito investimento. As obras valem ser vistas e revistas por fãs de cinema, mas, principalmente, por aqueles que gostam de prestigiar o cinema nacional.

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