O desafio de confrontar as telas
Como lidar com a interferência das mídias digitais no desenvolvimento da criança durante a pandemia
Com a chegada da tecnologia e sua rápida evolução, a preocupação com a exposição às telas cresceu. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o país conta com 200 milhões de habitantes, sendo 65 milhões crianças e adolescentes, o que corresponde a 34% da população. Em tempos de pandemia, a dependência às mídias digitais aumentou. Neste contexto, a SBP lança periodicamente estudos e manuais de apoio aos pais e profissionais da área da saúde alertando sobre a importância do uso consciente das telas.
De acordo com a psicóloga e psicanalista em formação Susana Joaquim Rodrigues, é necessário evitar a exposição de crianças menores de dois anos às telas, além de limitar o tempo de uso ao máximo de uma hora por dia, entre dois e cinco anos, com supervisão. “As telas podem interferir no desenvolvimento da criança de várias formas. O desenvolvimento infantil se dá na relação com o outro, com o cuidador primariamente. O bebê nasce desamparado e assim permanece por muito tempo, sendo exclusivamente dependente de alguém que o cuide”, esclarece a psicóloga. Segundo ela, é através do cuidado, do afeto e das palavras que o bebê pode se desenvolver.
“O uso excessivo de telas no início do desenvolvimento infantil prejudica a constituição psíquica, pois, o vínculo interativo com o outro é substituído por um laço passivo com a tela. Com o virtual não há troca, não há dinamismo e não ocorre o encontro com o outro que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente. Há visualização, mas não interação. A criança fica numa posição passiva diante de um excesso de estímulos que o seu psiquismo ainda não tem condições de processar. O uso excessivo de telas também prejudica a capacidade de fantasiar, necessária para o desenvolvimento da criatividade”, complementa.
Covid-19 e as telas
Com a necessidade de participar das aulas no modo on-line, esse tempo a mais em frente ao computador pode ser prejudicial à criança. Susana explica que o ideal, nesse caso, é restringir ainda mais o tempo de interação, priorizando as atividades escolares feitas no caderno. Além disso, na educação a distância, o tempo deve ser reduzido de acordo com a faixa etária e devem ser priorizadas as modalidades de aulas interativas. É importante ressaltar que a relação da criança ou jovem com o tempo também fica comprometida quando a rotina é absorvida por muitos momentos diante das telas. Em frente ao computador, tablet ou smartphone não é necessário esperar. Tudo é rápido e dinâmico com o uso da tecnologia. “Se não gosta do que está vendo, pode avançar sem limites. Assim, as crianças passam a ter cada vez mais problemas em lidar com o ócio, ficando facilmente entediadas e com dificuldades de esperar que suas solicitações sejam atendidas, necessitando de retornos imediatos”, exemplifica Susana.
Tanto em crianças quanto em adultos, a SBP destaca em suas pesquisas que o uso descontrolado das mídias digitais pode ocasionar problemas de saúde, como dependência digital, irritabilidade, ansiedade, depressão, déficit de atenção, hiperatividade, transtorno do sono, transtornos alimentares e sedentarismo. Conforme a psicóloga, um dos motivos para essas ações é que, com o uso excessivo da tecnologia, as crianças passam cada vez menos tempo brincando, e é no brincar que elas elaboram os conflitos e encontram soluções para o tédio e outros problemas. “As relações sociais ficam prejudicadas, como a capacidade de empatia, de negociação e o estabelecimento de vínculos afetivos. Podem ser observados atrasos na fala, com a presença de repetição de frases dos personagens que não fazem sentido fora daquele contexto e comprometimento da motricidade. Cada vez mais, com o aumento do uso das telas na pandemia, temos recebido no consultório crianças com características de intoxicações eletrônicas e prejuízos cognitivos”, completa.
Outro medo em relação ao uso demasiado da tecnologia é que ela possa afetar o vínculo entre os familiares. Nesse momento, com o home office e aulas remotas, a rotina das famílias têm sofrido muitas modificações e o uso das telas acaba por se tornar inevitavelmente mais frequente no cotidiano. Susana, lembra que o excesso — desnecessário — das telas, pode sim influenciar no vínculo entre pais e filhos. “Na verdade, quando o uso excessivo da tecnologia ocorre no ambiente familiar, é porque, de certa forma, o vínculo já está fragilizado, pois o fato de recorrer às interações virtuais em detrimento das relações com as pessoas que estão presentes já denota que algo falta nessa relação. E isso é uma bola de neve, pois cada vez que aumenta o uso da tecnologia nesse sentido, mais distantes ficam pais e filhos. É um ciclo que precisa ser rompido e parte do adulto tomar essa atitude”, expõe a psicóloga.
Pontos positivos da tecnologia no desenvolvimento
Com tantos dados e discussões sobre a temática, a tecnologia pode acabar passando por vilã. Entretanto, ela também desempenha uma função vital para evolução da nossa sociedade. Crianças, jovens e adultos, podem aprender diversas atividades a partir das telas. Susana, complementa:
“A tecnologia não pode ser demonizada. Ela denota também o nosso avanço como civilização. Como todo recurso, deve ser utilizado com sabedoria e prudência. A partir de uma idade, ela contribui com a educação das crianças e também propicia momentos de lazer. O problema é o seu uso excessivo, em detrimento de outras coisas, principalmente das interações sociais.”
Relatos de quem cria
A estagiária de comunicação e fotógrafa autônoma Geisiely da Rosa Vargas é mãe de Sophia Telles, 5 anos, aluna do segundo ano da educação infantil. Em concordância com os manuais da pediatria e indicações da OMS, a mãe entende as limitações, pois acredita que as crianças perdem muito da infância quando há contato excessivo com as telas, principalmente as “brincadeiras saudáveis”.
“Hoje ela costuma ficar com o celular apenas à tarde, enquanto joga. À noite não tenho hábito de deixar, porém, inevitavelmente ela ainda fica bastante em frente à televisão. Antes de dormir, tenho costume de dar algum livro ou desenho para ela pintar, mas nem sempre ela quer. Como já é grandinha, às vezes escolhe a TV. Hoje em dia, até desenhos ela aprende a fazer no YouTube. Sempre que dá arruma uma desculpa para dizer que está aprendendo algo na internet”, relata.
Questionada sobre as possíveis mudanças de comportamento e estratégias de prevenção ao excesso das telas, Geisiely revela que a filha se tornou mais preguiçosa em relação às tarefas quando exposta ao uso de diferentes tecnologias. “Às vezes, quando está com o celular, ela fica meio preguiçosa. Mesmo assim, é super compreensiva quando digo que é o momento de guardar para fazermos outra atividade. Hoje em dia, não temos estratégias. Costumamos pintar ou, até mesmo, usar as telas ao nosso favor. Estimulo muito a leitura, com vídeos educativos que a internet disponibiliza. Procuro colocá-la para fazer atividades da casa junto comigo, passar um paninho nos móveis, secar a louça, coisas que ela não faz quando está na frente da TV ou celular”, revela a mãe.
Dicas para os pais e responsáveis
O uso das telas para o desempenho das tarefas escolares, para o acompanhamento das aulas e para o uso afetivo com o objetivo de assegurar a presença, mesmo que virtual, entre avós e colegas é muito importante. Porém, o tempo que as crianças permanecem diante de telas deve ser restrito. Quanto menos, melhor.
As orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o período ideal de tela por idade foram flexibilizadas durante a pandemia. Atualmente, as recomendações sugerem o seguinte: sem tela até 1 ano; uma hora por dia para crianças com até 5 anos; a partir dos 6 anos, os pais decidem o tempo e, em todos os casos, o adulto deve ajudar a criança a escolher o conteúdo. As orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria são: sem tela até os 2 anos; uma hora por dia de 2 a 5 anos; uma ou duas horas por dia para crianças com idades entre 6 e 10 anos; sempre com supervisão de um adulto.
De acordo com a Susana, para que as recomendações sejam efetivas, os pais ou cuidadores devem ter disponibilidade para se fazerem presentes junto à criança e oferecer sua companhia genuinamente. “Propor atividades, organizar momentos prazerosos em família, tornar a rotina mais agradável e lúdica, brincar, conversar, demonstrar interesse pelo que a criança estiver interessada, propiciar interações ao ar livre e com atividades físicas. Incluir a criança nas tarefas domésticas, como cozinhar ou arrumar a casa, de forma divertida, também é uma ótima oportunidade de diminuir o tempo diante da tela e fortalecer o vínculo entre adultos e crianças. Além disso, quando houver interação da criança com as telas, é necessária a presença do adulto, que pode acompanhar o que está sendo visto e estabelecer uma mediação entre a criança e a tela”, explica.
Susana afirma que é de extrema importância a divulgação de materiais informativos e educativos que esclareçam sobre o uso de telas na infância. “Muitos cuidadores ainda não sabem dos prejuízos que podem ser causados no desenvolvimento infantil pelo uso excessivo de telas e nem dos riscos a que as crianças estão expostas quando utilizam telas ligadas à internet sem supervisão. Os profissionais envolvidos nos assuntos da infância devem, cada vez mais, produzir materiais e propiciar que as famílias tenham acesso à informação de forma educativa”, conclui.
Mas calma, se seu filho passa muito tempo em frente as telas, a profissional defende que existem vários meios para que os pais realizem a desintoxicação tecnológica de uma criança que já possua um quadro de vício. Para que o exercício seja feito, é necessário reduzir progressivamente o tempo de uso. “No caso de crianças muito pequenas, menores de dois anos, o ideal é que seja suspenso. Para isso, é necessário que os pais ou cuidadores ofereçam outros atrativos e busquem interação maior com a criança, tendo compreensão também que essa mudança, pode inicialmente, desencadear irritabilidade, choro e atitudes agressivas que devem ser acolhidas com afeto. É muito importante que a criança descubra ou redescubra o prazer de brincar e de conviver, bem como tenha condições de encontrar soluções criativas para o tédio. Em casos graves, uma psicóloga deve ser procurada para auxiliar no processo, tanto com a criança em atendimento quanto na orientação dos pais quanto à melhor forma de proceder para que a criança possa retomar o desenvolvimento saudável”, conclui especialista.