O desafio de confrontar as telas

Como lidar com a interferência das mídias digitais no desenvolvimento da criança durante a pandemia

Sara Nedel Paz
Redação Beta
8 min readSep 21, 2021

--

Com a chegada da tecnologia e sua rápida evolução, a preocupação com a exposição às telas cresceu. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o país conta com 200 milhões de habitantes, sendo 65 milhões crianças e adolescentes, o que corresponde a 34% da população. Em tempos de pandemia, a dependência às mídias digitais aumentou. Neste contexto, a SBP lança periodicamente estudos e manuais de apoio aos pais e profissionais da área da saúde alertando sobre a importância do uso consciente das telas.

De acordo com a psicóloga e psicanalista em formação Susana Joaquim Rodrigues, é necessário evitar a exposição de crianças menores de dois anos às telas, além de limitar o tempo de uso ao máximo de uma hora por dia, entre dois e cinco anos, com supervisão. “As telas podem interferir no desenvolvimento da criança de várias formas. O desenvolvimento infantil se dá na relação com o outro, com o cuidador primariamente. O bebê nasce desamparado e assim permanece por muito tempo, sendo exclusivamente dependente de alguém que o cuide”, esclarece a psicóloga. Segundo ela, é através do cuidado, do afeto e das palavras que o bebê pode se desenvolver.

Susana Rodrigues, psicóloga, especialista em Educação Especial e Inclusiva. Atende em consultório particular com clínica psicanalítica para todas as idades. (Foto: Arquivo Pessoal/Susana Joaquim Rodrigues)

“O uso excessivo de telas no início do desenvolvimento infantil prejudica a constituição psíquica, pois, o vínculo interativo com o outro é substituído por um laço passivo com a tela. Com o virtual não há troca, não há dinamismo e não ocorre o encontro com o outro que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente. Há visualização, mas não interação. A criança fica numa posição passiva diante de um excesso de estímulos que o seu psiquismo ainda não tem condições de processar. O uso excessivo de telas também prejudica a capacidade de fantasiar, necessária para o desenvolvimento da criatividade”, complementa.

Covid-19 e as telas

Com a necessidade de participar das aulas no modo on-line, esse tempo a mais em frente ao computador pode ser prejudicial à criança. Susana explica que o ideal, nesse caso, é restringir ainda mais o tempo de interação, priorizando as atividades escolares feitas no caderno. Além disso, na educação a distância, o tempo deve ser reduzido de acordo com a faixa etária e devem ser priorizadas as modalidades de aulas interativas. É importante ressaltar que a relação da criança ou jovem com o tempo também fica comprometida quando a rotina é absorvida por muitos momentos diante das telas. Em frente ao computador, tablet ou smartphone não é necessário esperar. Tudo é rápido e dinâmico com o uso da tecnologia. “Se não gosta do que está vendo, pode avançar sem limites. Assim, as crianças passam a ter cada vez mais problemas em lidar com o ócio, ficando facilmente entediadas e com dificuldades de esperar que suas solicitações sejam atendidas, necessitando de retornos imediatos”, exemplifica Susana.

Dados da Sociedade Brasileira de Pediatria. (GIF: Sara Nedel Paz/Beta Redação)

Tanto em crianças quanto em adultos, a SBP destaca em suas pesquisas que o uso descontrolado das mídias digitais pode ocasionar problemas de saúde, como dependência digital, irritabilidade, ansiedade, depressão, déficit de atenção, hiperatividade, transtorno do sono, transtornos alimentares e sedentarismo. Conforme a psicóloga, um dos motivos para essas ações é que, com o uso excessivo da tecnologia, as crianças passam cada vez menos tempo brincando, e é no brincar que elas elaboram os conflitos e encontram soluções para o tédio e outros problemas. “As relações sociais ficam prejudicadas, como a capacidade de empatia, de negociação e o estabelecimento de vínculos afetivos. Podem ser observados atrasos na fala, com a presença de repetição de frases dos personagens que não fazem sentido fora daquele contexto e comprometimento da motricidade. Cada vez mais, com o aumento do uso das telas na pandemia, temos recebido no consultório crianças com características de intoxicações eletrônicas e prejuízos cognitivos”, completa.

Outro medo em relação ao uso demasiado da tecnologia é que ela possa afetar o vínculo entre os familiares. Nesse momento, com o home office e aulas remotas, a rotina das famílias têm sofrido muitas modificações e o uso das telas acaba por se tornar inevitavelmente mais frequente no cotidiano. Susana, lembra que o excesso — desnecessário — das telas, pode sim influenciar no vínculo entre pais e filhos. “Na verdade, quando o uso excessivo da tecnologia ocorre no ambiente familiar, é porque, de certa forma, o vínculo já está fragilizado, pois o fato de recorrer às interações virtuais em detrimento das relações com as pessoas que estão presentes já denota que algo falta nessa relação. E isso é uma bola de neve, pois cada vez que aumenta o uso da tecnologia nesse sentido, mais distantes ficam pais e filhos. É um ciclo que precisa ser rompido e parte do adulto tomar essa atitude”, expõe a psicóloga.

Pontos positivos da tecnologia no desenvolvimento

Com tantos dados e discussões sobre a temática, a tecnologia pode acabar passando por vilã. Entretanto, ela também desempenha uma função vital para evolução da nossa sociedade. Crianças, jovens e adultos, podem aprender diversas atividades a partir das telas. Susana, complementa:

“A tecnologia não pode ser demonizada. Ela denota também o nosso avanço como civilização. Como todo recurso, deve ser utilizado com sabedoria e prudência. A partir de uma idade, ela contribui com a educação das crianças e também propicia momentos de lazer. O problema é o seu uso excessivo, em detrimento de outras coisas, principalmente das interações sociais.”

Relatos de quem cria

Geisiely da Rosa Vargas e Sophia Telles (Foto: Arquivo Pessoal/Geisiely da Rosa Vargas)

A estagiária de comunicação e fotógrafa autônoma Geisiely da Rosa Vargas é mãe de Sophia Telles, 5 anos, aluna do segundo ano da educação infantil. Em concordância com os manuais da pediatria e indicações da OMS, a mãe entende as limitações, pois acredita que as crianças perdem muito da infância quando há contato excessivo com as telas, principalmente as “brincadeiras saudáveis”.

“Hoje ela costuma ficar com o celular apenas à tarde, enquanto joga. À noite não tenho hábito de deixar, porém, inevitavelmente ela ainda fica bastante em frente à televisão. Antes de dormir, tenho costume de dar algum livro ou desenho para ela pintar, mas nem sempre ela quer. Como já é grandinha, às vezes escolhe a TV. Hoje em dia, até desenhos ela aprende a fazer no YouTube. Sempre que dá arruma uma desculpa para dizer que está aprendendo algo na internet”, relata.

Geisiely intercala as atividades da filha para que ela vivencie experiências “reais” com atividades interativas e ao ar livre. (Foto: Arquivo Pessoal/Geisiely da Rosa Vargas)

Questionada sobre as possíveis mudanças de comportamento e estratégias de prevenção ao excesso das telas, Geisiely revela que a filha se tornou mais preguiçosa em relação às tarefas quando exposta ao uso de diferentes tecnologias. “Às vezes, quando está com o celular, ela fica meio preguiçosa. Mesmo assim, é super compreensiva quando digo que é o momento de guardar para fazermos outra atividade. Hoje em dia, não temos estratégias. Costumamos pintar ou, até mesmo, usar as telas ao nosso favor. Estimulo muito a leitura, com vídeos educativos que a internet disponibiliza. Procuro colocá-la para fazer atividades da casa junto comigo, passar um paninho nos móveis, secar a louça, coisas que ela não faz quando está na frente da TV ou celular”, revela a mãe.

Dicas para os pais e responsáveis

O uso das telas para o desempenho das tarefas escolares, para o acompanhamento das aulas e para o uso afetivo com o objetivo de assegurar a presença, mesmo que virtual, entre avós e colegas é muito importante. Porém, o tempo que as crianças permanecem diante de telas deve ser restrito. Quanto menos, melhor.

As orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o período ideal de tela por idade foram flexibilizadas durante a pandemia. Atualmente, as recomendações sugerem o seguinte: sem tela até 1 ano; uma hora por dia para crianças com até 5 anos; a partir dos 6 anos, os pais decidem o tempo e, em todos os casos, o adulto deve ajudar a criança a escolher o conteúdo. As orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria são: sem tela até os 2 anos; uma hora por dia de 2 a 5 anos; uma ou duas horas por dia para crianças com idades entre 6 e 10 anos; sempre com supervisão de um adulto.

Mãe e filha brincam juntas fora das telinhas sempre que possível. (Foto: Arquivo Pessoal/Geisiely da Rosa Vargas)

De acordo com a Susana, para que as recomendações sejam efetivas, os pais ou cuidadores devem ter disponibilidade para se fazerem presentes junto à criança e oferecer sua companhia genuinamente. “Propor atividades, organizar momentos prazerosos em família, tornar a rotina mais agradável e lúdica, brincar, conversar, demonstrar interesse pelo que a criança estiver interessada, propiciar interações ao ar livre e com atividades físicas. Incluir a criança nas tarefas domésticas, como cozinhar ou arrumar a casa, de forma divertida, também é uma ótima oportunidade de diminuir o tempo diante da tela e fortalecer o vínculo entre adultos e crianças. Além disso, quando houver interação da criança com as telas, é necessária a presença do adulto, que pode acompanhar o que está sendo visto e estabelecer uma mediação entre a criança e a tela”, explica.

Orientações sobre o uso de telas conforme a SBP e APP. (Imagem: Associação Brasileira de OtorrinoPediatria)

Susana afirma que é de extrema importância a divulgação de materiais informativos e educativos que esclareçam sobre o uso de telas na infância. “Muitos cuidadores ainda não sabem dos prejuízos que podem ser causados no desenvolvimento infantil pelo uso excessivo de telas e nem dos riscos a que as crianças estão expostas quando utilizam telas ligadas à internet sem supervisão. Os profissionais envolvidos nos assuntos da infância devem, cada vez mais, produzir materiais e propiciar que as famílias tenham acesso à informação de forma educativa”, conclui.

Mas calma, se seu filho passa muito tempo em frente as telas, a profissional defende que existem vários meios para que os pais realizem a desintoxicação tecnológica de uma criança que já possua um quadro de vício. Para que o exercício seja feito, é necessário reduzir progressivamente o tempo de uso. “No caso de crianças muito pequenas, menores de dois anos, o ideal é que seja suspenso. Para isso, é necessário que os pais ou cuidadores ofereçam outros atrativos e busquem interação maior com a criança, tendo compreensão também que essa mudança, pode inicialmente, desencadear irritabilidade, choro e atitudes agressivas que devem ser acolhidas com afeto. É muito importante que a criança descubra ou redescubra o prazer de brincar e de conviver, bem como tenha condições de encontrar soluções criativas para o tédio. Em casos graves, uma psicóloga deve ser procurada para auxiliar no processo, tanto com a criança em atendimento quanto na orientação dos pais quanto à melhor forma de proceder para que a criança possa retomar o desenvolvimento saudável”, conclui especialista.

Vídeo educativo sobre o uso seguro de telas. (Vídeo: Sociedade Brasileira de Pediatria/YouTube)

--

--