Obra literária tem como personagem o mais belo gol que Pelé não fez

Livro de Sérgio Rodrigues, O Drible narra a relação entre pai, filho, e, claro, futebol

Laura Hahner Nienow
Redação Beta
5 min readJun 13, 2020

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Pai e filho têm, além do nome — Murilo — em comum, o envolvimento com as palavras e com o esporte. Murilo Neto é revisor. Murilo Filho, boêmio e famoso cronista de futebol das décadas de 1950 e 1960. A tribuna da imprensa do Maracanã, onde quase sempre sobravam cadeiras, era sua segunda casa. Embora os dois tenham se relacionado duas vezes com a mesma mulher, ouso dizer que as semelhanças param por aqui. Murilo Filho e Murilo Neto não se falam há 30 anos. O motivo: o suicídio da mãe.

O Drible, obra do escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, traz o futebol — mais precisamente o cenário da Copa do Mundo de 1970, sediada no México — como background do drama de Filho e Neto. E, mais do que isso, coloca o esporte como um personagem da história. Já que a literatura tem essa razão de apresentar, documentar e até mesmo de eternizar a cultura e os costumes de uma determinada época e local, nada mais coerente do que falar sobre futebol na literatura brasileira.

“O Drible” mistura realidade e ficção. (Foto: editora Companhia das Letras)

A falta do futebol na literatura nacional sempre chamou a atenção da professora e doutora em Letras na área de literatura brasileira, Eliana Pritsch. “Antropólogos, sociólogos e cineastas tratam do tema. Mas a literatura tem poucos textos”, analisa. “Alguns contos como Corinthians 2 vs Palestra 1, de Alcântara Machado; Meia encarnada dura de sangue, de Lourenço Cazarré; e Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas, tratam o tema de forma tangencial. Mas um romance todo centrado nesse universo faz de O Drible um caso de destaque. Jogos, crônica esportiva, jogadores famosos e novatos — tudo se mistura entre realidade e ficção. E o grande “drible” deixa de ser o de Pelé para ser o drible que o narrador dá em nós, leitores, numa construção literária muito surpreendente”, conta Eliana.

O nome da obra faz referência ao drible de Pelé na semifinal da Copa do Mundo de 1970 contra o Uruguai. Pelé recebeu o lançamento do jogador Tostão e, sem tocar na bola, passou pelo goleiro da seleção uruguaia, Ladislao Mazurkiewicz. Pelé deixou a bola passar por um lado do goleiro, pegou do outro lado e chutou cruzado. A bola foi para fora. Na percepção de Murilo, foi o drible mais bonito e improvável da história. Porém, para a maioria, o movimento ficou conhecido como o mais belo gol que Pelé não fez.

O gol que Pelé não fez na Copa do Mundo de 1970. (Vídeo: Youtube/Soccerex)

A professora Eliana ainda era muito jovem na Copa de 1970, mas o diretor, roteirista e membro do Conselho Superior de Cinema Brasileiro, Giba Assis Brasil, lembra bem daquele campeonato. “Eu tinha 13 anos, a idade de aprender a gostar de futebol e não esquecer mais. Assistíamos aos jogos na sala de jantar, que há pouco tinha se tornado a “sala da tevê”, com meus pais, tios e primos, todos juntos. Vamos, para frente Brasil — e para trás, mas isso eu ainda não sabia (e tem gente que ainda não descobriu). O drible do Pelé no Mazurkiewicz foi uma obra-prima única, lembro mais dele do que de qualquer um dos muitos gols daquele time inesquecível, mas nunca tinha pensado naquele drible como um desafio a Deus, e talvez por isso nunca tenha entendido porque aquela bola não entrou”, relembra Giba.

Seleção brasileira da Copa do Mundo de 1970. Em pé: Carlos Alberto, Felix, Wilson Piazza, Brito, Clodoaldo, Everaldo e Admildo Chirol (preparador físico). Agachados: Mário Américo (massagista), Jairzinho, Gerson, Tostão Pelé, Rivelino e Nocaute Jack (massagista).

A obra percorre a década de 1950 até o ano de seu lançamento, em 2013, quando Neto recebe uma ligação a pedido do pai que está morrendo e deseja vê-lo. Neto espera uma reconciliação, mas tudo que Murilo Filho faz é falar sobre futebol. Até pedir a Neto que leia seu último livro Porque Peralvo não jogou a Copa, obra que narra a história do jogador que nasceu na mesma cidade que Murilo Filho, no interior do Rio de Janeiro.

Murilo Filho realmente acreditava que Peralvo tinha potencial para ser maior que Pelé e narra a história do jogador de forma muito romantizada. Quando estava em ascensão, Peralvo teve alguns incidentes, talvez místicos, que o impediram de continuar a carreira nos campos. Pai e filho entram mais uma vez em confronto por Neto achar que a história de Peralvo não é lá grande coisa. Ele diz ao pai, “lamento ser eu a te dar a notícia. Para existir história é preciso existir algum interesse das gerações seguintes em contar essa história, aprender com ela, tirar lições”. A história de Peralvo foi esquecida pela próxima geração.

O autor ainda cita, além do Pelé, outros grandes nome do futebol — como Zico e o francês Raymond Kopa — e também da crônica esportiva, como o consagrado Nelson Rodrigues. “Sérgio Rodrigues desenha uma tese que é o começo de outra obra marcante, no limite entre a crônica de época e o fantástico, talvez a melhor ficção sobre futebol já escrita no ex-país do futebol. E, assim como o gosto pelo jogo de bola é um legado de pai para filho (ainda hoje, pra mim, assistir a um jogo é estar um pouco junto com meu pai), também O Drible do Sérgio Rodrigues é uma finta, uma negaça, uma firula nas nossas memórias e na nossa expectativa de ler um romance sobre uma conturbada relação entre pai e filho, que no final não era bem isso, ou não era só isso. Mais não digo pra não frustrar quem ainda não leu”, comenta Giba.

O Drible foi editado em espanhol, francês e dinamarquês, além de ter ganho espaço em Portugal. Sérgio Rodrigues, antes de se especializar no jornalismo cultural, atuou por muitos anos como jornalista esportivo. Cobriu a Copa do Mundo do México, em 1986, e os mundiais de Fórmula 1 de 1987 e 1988. Integrou, nos anos 1990, o núcleo de criação do jornal Lance!. Atualmente, é colunista da Folha de S. Paulo e roteirista do programa Conversa com Bial, da TV Globo. O jornalista trabalhou como repórter, editor e colunista na maioria dos principais veículos da imprensa brasileira, como Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S.Paulo e TV Globo. Sérgio também foi correspondente do JB em Londres em 1987 e 1988.

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