Por que ainda se discute a possibilidade de uma moeda comum sul-americana?

Interessante na teoria, criação da moeda comum encontra fortes barreiras na realidade econômica e política da América do Sul

Natan Cauduro
Redação Beta
8 min readNov 25, 2020

--

O real, moeda corrente brasileira, foi implementado em 1994. (Foto: Eduardo Soares/Unsplash)

Em junho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, marcaram presença nas manchetes de vários jornais brasileiros e estrangeiros com declarações sobre a possibilidade de criação de uma moeda comum com a Argentina. Um ano depois, a Beta Redação decidiu revisitar o tema e descobrir se, afinal, há chances de uma moeda comum nascer na América do Sul.

Sonho x realidade

Ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula (2007–2011), Welber Barral comenta que, em teoria, a chance de se criar a moeda comum existe, mas a realidade econômica e política do continente inviabiliza a oportunidade. Ele também reforça que, para considerar tal moeda, faz-se necessário compreender sua equivalência na Europa: o euro.

O processo de criação do euro foi longo e apresentou uma série de complicações. Welber pontua algumas ações dos países europeus que foram essenciais para o nascimento da moeda: alinhamento macroeconômico; acordos sobre endividamento; e bases monetárias fortes (era o caso da Alemanha) que atuavam como geradoras de credibilidade para a moeda, tornando-a conversível (que pode ser trocada por outras moedas, como o dólar). “Não há nenhuma dessas coisas na América do Sul”, pontua o ex-secretário.

Em terras sul-americanas, Welber cita as taxas de endividamento altas e distintas de cada país como um dos grandes empecilhos, além de problemas na coordenação de políticas macroeconômicas entre as nações vizinhas. O continente não conta com uma moeda conversível, ao contrário da Alemanha e de sua moeda da época, o marco alemão. Outra dificuldade são as divergências de dados sobre a inflação de cada país. “Como se compara ou equipara o real brasileiro com o peso argentino sendo que eles [argentinos] estão com 50% de inflação?”, comenta.

Diplomata de carreira com atuação nas embaixadas de Paris e Washington, e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IPRI), Paulo Roberto de Almeida concorda que a América do Sul não está preparada para uma moeda comum. “Poucos países no mundo renunciam a suas moedas nacionais. Eu não conheço nenhum grande país que o tenha feito, a não ser como parte de um projeto mais amplo de mercado comum totalmente unificado, como é o caso da União Europeia”, conta.

“Se você tem um mercado unificado, não faz sentido manter moedas distintas para um mercado totalmente livre”, acrescenta Paulo Roberto.

O diplomata reforça que os países da América do Sul são díspares, divergentes e contraditórios, o que dificulta ainda mais a implementação de uma moeda comum. “Essa é a razão básica pela qual eu não acredito que nossos países estejam preparados para uma moeda comum, não única. Única é uma loucura, nem a Europa tem.”

Welber também destaca a importância dos Bancos Centrais na implementação de uma moeda comum. “Você ter uma moeda conversível não é porque você quer, mas é porque ela é aceita no mercado internacional.” Isso resulta, segundo o ex-secretário, em uma moeda com credibilidade, lastro, usada em operações com terceiros e que tenha fluxo livre aqui e no exterior. “A moeda brasileira não tem isso, então os bancos centrais teriam de regulamentar”, destaca Welber. Outra entidade importante nesse processo é o Conselho Monetário Nacional.

Edifício-Sede do Banco Central do Brasil em Brasília (DF). Foto: (BCB/Divulgação)

E se…

Num exercício de futurologia, o ex-secretário Welber Barral reflete sobre quais benefícios o Brasil teria caso uma moeda comum fosse implementada. Um deles seria o custo de câmbio, pois o mesmo não seria necessário, uma vez que todos os países utilizariam uma mesma moeda. Outro estaria em evitar a imprevisibilidade das moedas, como dólar e real, pois a variação de inflação é uma só, o que auxilia nas importações e exportações. Welber também pontua a percepção popular como sendo impactada positivamente quando viaja para outro país. “Ele (indivíduo) não quer fazer cálculo para saber quanto custa, se é mais caro ou mais barato. Já existe uma previsibilidade de custo”, comenta.

“É preciso ressaltar que uma moeda comum pode ser uma boa coisa em mercados comuns, o que está longe de ser o caso do Mercosul”, aponta o diplomata Paulo Roberto. “Quando e se o Mercosul chegar nessa fase, talvez seja interessante uma moeda comum”, mas ele ainda se mostra cético, em especial porque numa união entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, o Brasil, sozinho, detém mais de 70% do mercado consumidor, o que inviabiliza a renúncia da soberania nacional sobre a moeda e o próprio mercado. “Você se prender a uma política comum para atender a um mercado secundário não é uma boa coisa”, analisa.

Não é a primeira vez

O governo Bolsonaro não foi o único a cogitar uma moeda comum sul-americana. O governo Lula (PT) também foi manchete por comentar tal possibilidade. O ex-secretário Welber lembra ainda de outras tentativas de unificação monetária. Uma delas foi nos anos 80 com o governo do ex-presidente José Sarney (MDB) com o uso do gaucho, uma moeda escritural entre Brasil e Argentina. Moeda escritural se equivale a depósitos bancários usados como forma de pagamento — cheques e cartões de crédito, por exemplo. De qualquer modo, nenhuma das tentativas foi efetivada.

Estando no governo Lula, Welber lembra que naquele período havia no Ministério alguns estudos e a possibilidade de criação de um Tribunal Arbitral para Investimentos, mas tudo era encabeçado pela União de Nações Sul-americanas (Unasul), não pelo Brasil. Com essa organização perdendo força, as ideias pararam no tempo.

Circula também a ideia de que, sendo o Brasil o maior dos países sul-americanos, é responsabilidade dele dar início a um programa político de criação de moeda única, mas Welber não vê o governo Bolsonaro interessado em tamanha empreitada. “Esse é um governo tipicamente isolacionista, então eu não espero nada positivo em geral, até por conta da pandemia e da crise (econômica). Ele (governo) está focado bastante numa agenda interna”, analisa.

“O Bolsonaro falou sobre criar a moeda do Mercosul ano passado. Eu não sei quem disse isso para ele, mas seguramente ele não tinha a menor ideia do que estava falando”, afirma Welber.

Paulo Roberto de Almeida tem uma opinião parecida sobre as manifestações do presidente e do ministro da Economia. Ele, inclusive, lembra de encontros com Paulo Guedes e, após ouvi-lo reclamar sobre o Mercosul, percebeu que o campo da política e economia internacional não era o forte do ministro. “O Paulo Guedes é um cara de mercado financeiro, de mercado de capitais, mercado de investimentos. Ele não entende de acordos internacionais, de economia política internacional, de tecnocracia, de estadismo, de diplomacia. Então o que o Bolsonaro e o Guedes falaram é uma bobagem monumental”, avalia.

Em junho de 2019, data das manifestações do presidente e do ministro, o chanceler Ernesto Araújo manifestou-se de forma esquiva, afirmando que “o Mercosul requer eficiência no comércio entre os membros, mas também que seja uma plataforma de abertura e de eficiência para o resto do mundo, como se vê em negociações estratégicas que estão perto de concluir, como a com a União Europeia”, segundo matéria da revista Veja.

Para Paulo Roberto de Almeida, um assunto como o de uma moeda comum “não pode ser política de governo, isso é uma política de Estado. Moeda é política de Estado”. Ele também afirma que o Itamaraty tem bons economistas, diplomatas e uma boa base de dados. “(a quantidade e qualidade de informações) do Itamaraty sobre o Mercosul e a União Europeia é perfeita”, destaca. O diplomata afirma que o chanceler Araújo deveria ser capaz de alertar ao presidente e ao ministro Guedes que a ideia de uma moeda comum é inviável. Paulo Roberto também recorda que Ernesto Araújo é um estudioso do Mercosul, inclusive com um livro sobre o tema publicado nos anos 90, e que o diplomata classifica como “muito bom”.

O livro mencionado chama-se Mercosul Hoje, publicado em 1998, pelos autores Sérgio Abreu, Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo. O chanceler também possui sua tese, apresentada em 2008 no Instituto Rio Branco, intitulada O Mercosul: Negociações Extra-regionais.

Também em 2019, o Banco Central do Brasil emitiu nota sobre as declarações do presidente e do ministro da Economia. Na nota, é dito que “o Banco Central do Brasil não tem projetos ou estudos em andamento para uma união monetária com a Argentina. Há tão somente, como é natural na relação entre parceiros, diálogos sobre estabilidade macroeconômica, bem como debates acerca de redução de riscos e vulnerabilidades e fortalecimento institucional”.

A Beta Redação entrou em contato com o Banco Central do Brasil em busca de informações. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, “o posicionamento do BC continua o mesmo”.

A nota oficial pode soar vaga, mas antigos dirigentes do BC já se manifestaram sobre a ideia de uma moeda única. Foi o caso de Alexandre Schwartsman, que, em entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou tratar-se de uma proposta sem sentido. Outra manifestação veio do também ex-dirigente do BC José Júlio Senna, no mesmo jornal. Ele afirma não ser otimista quanto ao resultado final de uma integração de moedas.

Edifício do Mercosul em Montevidéu, capital do Uruguai. Foto: (Mercosul/Divulgação)

O Mercosul e os demais

Welber já atuou no Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Segundo ele, as discussões dentro do órgão, em especial no Conselho do Mercado Comum, não cogitam uma moeda unificada. “Tem muito problemas para resolver antes de ir para uma coisa tão ousada quanto uma moeda.” Ele cita alguns, como exportações e controles cambiais, precificação, seguradoras de crédito e inflação. “Então, você tem uma lista imensa de 10 a 20 temas operacionais a serem implementados antes de falar em moeda comum.”

O diplomata Paulo Roberto afirma que a discussão sobre a moeda comum é precipitada. “Os países latino americanos não fazem nem o mínimo, que é ter uma zona de livre comércio unificado. Uma uniformidade na área fiscal e orçamentária, tributária, monetária, de políticas setoriais, ou seja, ter um estado organizado. O Mercosul não avançou a ponto de ser um mercado unificado ou união aduaneira.”

Outros órgãos internacionais também tentaram emplacar a moeda comum, mas nenhum deles tem força para tal, muito menos para substituir o Mercosul. Alguns deles foram a Unasul e a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA).

Paulo Roberto recorda do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que apesar de não tentar a criação de uma moeda única, tinha a visão de aproximar economicamente os países sul-americanos. Foi o caso da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), plano do governo de FHC que “era a iniciativa de integração física, com estradas, energia, telecomunicação, gasoduto etc.”, mas o governo do ex-presidente Lula e da ex-presidente Dilma (PT) não deram prosseguimento ao projeto.

Questionado sobre qual sua opinião acerca de uma moeda comum sul-americana, a assessoria de imprensa do Mercosul respondeu que tal informação só poderá ser respondida pela presidência pro tempore do Mercosul, o que significa que o atual dirigente do órgão precisa se manifestar. Ele é o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou (Partido Nacional).

Ao longo de duas semanas, a Beta Redação entrou em contato com diversos órgãos internacionais, como Alba e Unasul, e ministérios (da Economia e Itamaraty) para consultar opiniões de seus representantes sobre a criação de uma moeda comum sul-americana, mas até o fechamento desta matéria, não obteve resposta dessas organismos.

--

--

Natan Cauduro
Redação Beta

Jornalista e estudante de Relações Internacionais.