CRÔNICA: O medo que impera na pandemia

Guilherme Pech
Redação Beta
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3 min readMay 2, 2020
Crédito: Guilherme Pech/Beta Redação

Parecia o fim de um expediente de um dia comum e monótono — mas então comecei a ver portas se fechando, mãos esquivadas, olhares desconfiados. Nessas portas, pouco a pouco, eram grudadas plaquinhas improvisadas, impressas de última hora. No trem que seguia, um aqui e outro ali vestiam máscaras cirúrgicas, enquanto meia dúzia observava com expressão quase zombeteira. Ouvia comentários do tipo “histeria” e “exagero”.

Esse era o início da dita quarentena. A pandemia se aproximava, como uma nuvem negra, sobre o Rio Grande do Sul: um caso, dois casos, seis casos. E tão logo estávamos todos confinados no lar, preocupados com o invisível, respirando um clima incerto, apocalíptico.

Nos meados de março, horas antes dos governos decretarem isolamento e suspender por tempo indeterminado as atividades do comércio, lá estava eu, apressado, em um bazar do centro. A gerente da loja, inconformada e preocupada, ao mesmo tempo, desabafa:

“A gente fecha hoje sem saber quando reabrir.”

“Parece que o mundo está acabando”, respondeu uma funcionária que recolhia caixas no balcão.

Momentos mais tarde, ouço o comentário de uma amiga que se dirigia ao mercado para comprar suprimentos aos pais idosos, presenciando ruas desérticas, com um ou outro indivíduo apressado:

“Achei que eu estivesse no The Walking Dead.”

Os números do novo coronavírus só cresciam no Brasil. Os decretos ficavam mais rígidos; sair de casa ficava cada vez mais burocrático. Todo dia, toda hora, uma olhada nos boletins do Ministério da Saúde. A despreocupação de chefes que não faziam questão de aderir ao isolamento, endoidecidos pelo descaso de um chefe de Estado que fazia jus às adjetivações bizarras que recebia por aí.

Enquanto isso, nos corações mais atentos, um sentimento principal imperava: o medo, uma das expressões mais primitivas da natureza humana. Sobretudo, o medo do desconhecido, como lembra o mestre do horror H. P. Lovecraft. Em épocas pandêmicas como essa, o medo é gerado por um inimigo invisível, ameaçador e imprevisível — como um fantasma. Enquanto nas histórias lovecraftianas o perigo é sobrenatural e mitológico, na nossa realidade a ameaça é natural.

O vírus, para a biologia, é um ser que está no limbo entre a vida e a morte — não pode ser considerado vivo, porque não tem as características mínimas de um vivente, nem morto, pois assim que entra em contato com uma célula, tem a capacidade de se replicar rapidamente. É esse momento, o de reprodução, que representa, para o vírus, a vida, isto é, enquanto gera descendentes no mundo escuro aos nossos olhos.

O mito grego da Medusa, criatura que petrifica quem a enxerga, é uma alusão à paralisia que o medo nos provoca. Porém, nós não enxergamos o vírus, e, mesmo assim, ele nos causa medo. A máxima de “o que os olhos não veem, o coração não sente” vem abaixo nesse caso. O coração sente, sim. Sente o terror, o pânico, a tensão, o temor ansioso do futuro. E aí está o olhar petrificante da Medusa. Stephen King, o atual mestre do terror, lamentou o fato de que alguns se sintam como se estivessem dentro de uma história dele. É a vida imitando a arte.

Mas não podemos nos esquecer de que, enquanto o medo ecoa nas ruas desérticas, nas praças vazias, nos comércios solitários, a internet é povoada por memes. Essas imagens “virais” — não é à toa o termo que remete à capacidade de multiplicação de um vírus — ajudam a aliviar a ansiedade confinada no peito. O mundo pode estar caótico, como de fato está, e o povo permanece rindo. O castelo está em chamas, mas o palhaço ainda ri. Esta é uma lógica desconhecida por muitos, levada como falta de respeito. Mas o riso é algo sério.

Nas praças públicas da Idade Média, o povo oprimido pelo medo e pela fúria divina da natureza ria nos dias de festa. Os superiores, da carne e do espírito, eram ridicularizados, rebaixados e desmoralizados. Tirando sarro, rompia-se o medo, carnavalizava-o, virava-o do avesso. Rir da própria desgraça é uma catarse; uma tática vital para fugir do terror que se espalha lá fora, seja nas células infectadas de pulmões comprometidos, seja nos tronos de reis que decidem o destino popular. Resta saber se vamos — e como vamos — continuar rindo ao final desta pandemia.

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