Em 2016, a empresa Oi, à época, entrou com o maior pedido de recuperação judicial do país. (Foto: Unsplash)

A soberania da telecomunicação

Mercado brasileiro caracteriza-se pela baixa competitividade e ainda precária proteção de dados pessoais

--

Um mercado fechado e dominado por um grupo mais que seleto de empresas. Este é o cenário das telecomunicações do Brasil. Composto por Vivo, Claro, Tim e Oi, as quatro são responsáveis por controlar mais de 97% deste comércio — e a coisa pode piorar.

O mundo das telecomunicações no Brasil é um tanto confuso, por isso, antes de abordar esse assunto, é importante compreender sua abrangência. Afinal, o que é telecomunicação? Segundo a Lei Geral de Telecomunicação, no artigo 60:

§ 1° Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza.

Isso significa que tudo aquilo que assistimos na TV, ouvimos no rádio, lemos no jornal, falamos no telefone, escrevemos no whatsapp ou consumimos na internet é telecomunicação. E é função da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) regulamentar e fiscalizar esse setor.

Nos últimos quatro anos, a empresa de telecomunicação Oi foi manchete dos jornais brasileiros. Em 2016, por entrar com, à época, o maior pedido de recuperação judicial do país. Já em 2020, pela possível venda de ações para as três principais concorrentes.

Manoel Gustavo Neubarth Trindade é professor e coordenador do Latin Legum Magister em Direito dos Negócios da Unisinos. Ele faz uma rápida explanação sobre o que é uma Recuperação Judicial:

“Existe na legislação brasileira a recuperação judicial (instituto que substituiu a Concordata). É um procedimento judicial que visa impedir a falência de uma empresa. O que se faz? A empresa devedora apresenta um plano de recuperação judicial, o qual precisa ser aprovado pelos credores. Por um determinado período (o chamado Stay Period), as ações judiciais movidas contra a empresa ficam suspensas. Se ela conseguir cumprir o plano, ela retorna à normalidade.”

O pedido de Recuperação Judicial da Oi refere-se a uma dívida salgada na casa dos R$ 64 bilhões, e ela se dará pela venda de torres, partes da fibra ótica e a própria telefonia móvel. Isso se configura na venda de alguns dos principais ativos de uma empresa de telecomunicação. Dentro de todos os ativos, o que mais se destaca, e preocupa, é a transferência do setor de telefonia móvel, no valor de R$ 16,5 bilhões. Os compradores? Um consórcio montado pelas três maiores concorrentes: Vivo, TIM e Claro.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) está de olho. Não é novidade que o ramo das empresas de telecomunicação no Brasil vivencia problemas, mas o atual, e talvez mais relevante, seja a falta de agentes no mercado de venda. Isso significa que são poucas que dominam um mercado de abrangência nacional, e é função do CADE garantir que o consumidor e a concorrência não sejam esmagados pelas quatro maiores.

No site MoneyTimes estão disponíveis os documentos de Aditamento ao Plano de Recuperação Judicial Consolidado.

O cenário de supremacia se mostra evidente pelos números. Segundo levantamento da Teleco (empresa de consultoria no ramo da telecomunicação), o market share (fatia ou participação no mercado, em tradução livre) dessas empresas no Brasil se dá da seguinte forma (números de agosto de 2020):

Empresa Vivo é quem detém a maior quantidade do mercado da telecomunicação: 33%. (Gráfico 1: Teleco)

Desse total, a Vivo é quem detém a maior quantidade do mercado da telecomunicação, com 33%. Em seguida, estão Claro (26%), TIM (22%) e Oi (16%). Os dados do gráfico 1 são ilustrativos para a realidade do cenário brasileiro. Há quatro grandes empresas que, sozinhas, detém mais de 97% do mercado de telecomunicações nacional. Nos estados do Sul e Centro-Oeste, como o Rio Grande do Sul, a divisão de mercado se dá da seguinte forma:

Empresa Vivo é quem detém a maior quantidade do mercado da telecomunicação no RS: 46%. (Gráfico 2: Teleco)

Apesar de dominarem o setor, ainda há espaço para crescimento. Segundo a pesquisa PNAD Contínua de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 79,1% da população brasileira utiliza a internet. Faz dois anos desde a última pesquisa, então estima-se que haja 20% do mercado de telecomunicações ainda inexplorado, mesmo o provável número estando menor em 2020. O gráfico abaixo demonstra:

79% da população brasileira utiliza a internet. (Gráfico: IBGE)

Interpretar o mundo das telecomunicações não é tarefa fácil, especialmente por ele não se limitar ao território brasileiro. A título de curiosidade: a Vivo pertence à Telefônica Brasil, que por sua vez pertence a Telefónica (empresa da Espanha e real proprietária da Vivo). A TIM faz parte de uma empresa italiana de nome Telecom. Por volta de 2007, a Telefónica, em um consórcio, comprou quase 20% das ações da Telecom. Tudo isso significa que nesse mundo das empresas de capital aberto, a Vivo e a TIM geram lucro, em parte, para o mesmo chefe. Nos anos seguintes, o CADE teve de intervir, fazendo com que a espanhola vendesse parte das ações que adquiriu da italiana e, em troca, comprasse a brasileira GVT.

A influência do CADE nessa compra faz sentido mesmo tratando-se de empresas não brasileiras. Por dominarem o setor de telecomunicação no Brasil, causam impacto direto tanto na população quanto na concorrência. Para Nathalie Fragoso, Coordenadora da área de Privacidade e Vigilância do InternetLab, a lei brasileira não se aplica somente à empresas nacionais ou a dados que estejam armazenados especificamente no Brasil. “Esse é um assunto delicado. A lei se aplica. Agora, quando falamos de empresas que estão sujeitas a mais de uma jurisdição, pode haver algum problema e a necessidade de cooperação entre países”, destaca Nathalie.

O controle de um mercado

O professor Manoel Trindade comenta que a pequena quantidade de empresas em um setor importante e abrangente como o da telecomunicação pode ser um indicativo de Falha de Mercado.

Segundo o professor, existem, basicamente, quatro tipos de Falha, e o ramo das telecomunicações pode se enquadrar no primeiro, chamado de Poder de Mercado. É aqui que se encontram os monopólios e oligopólios.

“O ponto mais extremo do disfuncional Poder de Mercado é o chamado monopólio. Só há um ofertando, só um produz. Em um oligopólio também poderá haver expressivo poder de mercado. O que pode ser o caso da telefonia no Brasil, que são poucas (empresas). Então, não tem muita competição.”

O professor também reforça que o monopólio e oligopólio não são as únicas expressões do poder de mercado. Por exemplo, é o caso do cartel. São diversos agentes econômicos que atuam em conjunto para controlar preços, impedindo a concorrência legítima e controlando variáveis como preços e quantidades.

“Ainda que exista mais de um (negócio ou empresa), desde que eles combinem entre si, não precisarão competir e, por exemplo, manterão os preços mais elevados do que se ocorresse efetiva concorrência. Isso é ilegal, é crime”.

Manoel também reforça que falhas de mercado são comuns no Brasil. Há monopólios, oligopólios e cartéis, e mesmo monopsônios e oligopsônios. O Estado, que possui o dever de fiscalizar e intervir se necessário, quando exerce tal função, corre o risco de gerar mais problemas, que são as chamas falhas de governo. “É um equilíbrio muito tênue. É bom que se tenha uma quantidade maior de empresas, porque elas vão competir entre si, e o Estado, às vezes, cria barreiras à entrada. É claro que, por um lado, é necessário controlar as questões de segurança, soberania, os dados etc., mas, por outro lado, quando criam-se muitas dificuldades, a concorrência diminui.”

“É um equilíbrio difícil, pois se de um lado temos falhas de mercado, por outro temos falhas de governo. Tentando combater as primeiras, o Estado pode criar distorções no mercado, gerando as segundas.”

A principal lei que “dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica” é a Lei Nº 12.529, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. No artigo 36, estão as definições de infração econômica, e através dos incisos é possível encontrar os parâmetros de oligopólios e cartéis.

I — limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II — dominar mercado relevante de bens ou serviços;

III — aumentar arbitrariamente os lucros; e

IV — exercer de forma abusiva posição dominante.

No site do CADE também há uma página de perguntas sobre infrações à ordem econômica. Vale a pena checar.

Poucos sabem muito sobre todos

Existe um outro aspecto das grandes empresas brasileiras de telecomunicação. Trata-se do controle de dados, ou seja, a capacidade desses negócios de adquirir, armazenar e gerir todas as informações pessoais disponíveis via smartphone e navegação pela web. Com poucas empresas atuantes no ramo, também significa uma alta concentração de dados em um mesmo local. Como resume Nathalie Fragoso, “informação está relacionada com poder. Poder econômico ou poder político”.

A primeira ressalva da pesquisadora é de que o uso de dados por empresas ou governos não segue uma linha binária de raciocínio. A utilização desses dados pode ser tanto boa quanto ruim, vai depender de quem os utiliza e quais os propósitos, assim como a total capacidade da sociedade de compreender quais informações pessoais estão sendo repassadas e o por quê.

“A nossa vida está mais datificada, e essas informações possuem relevância. O valor comercial é uma delas. Também há valor político e seus atores. Isso tanto pode apresentar um risco para as pessoas, como pode representar um ganho. Se a gente pensar em governos, há também motivos que são legítimos. Conhecer a população de uma cidade permite à prefeitura elaborar políticas públicas de maneira mais eficiente”.

Professor Manoel comenta que em um contexto de economia de plataforma, os aspectos concorrenciais se manifestam “cada vez mais pela ideia de controle de dados. Isso porque, sobretudo as chamadas Big Techs possuem muitos dados, sendo possível, pelo menos em tese, as práticas de discriminação de preços. E, mais, se poucos tiverem acesso a todos ou a grande maioria dos dados relativos aos agentes econômicos e aos próprios mercados, poderão ofender a ordem econômica e a concorrência.”

A nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) garante um controle e fiscalização maior de tais informações quando em posse de terceiros, como as telecomunicações ou o próprio Estado. Duas palavras se mostram essenciais nesse processo, e elas são: Consentimento e Transparência.

“A importância desses dois conceitos é fundamental. Quando a gente fala sobre transparência dentro da LGPD, trata-se da garantia que os titulares dos dados tem a receberem informações claras, precisas e acessíveis sobre o tratamento (coleta, processamento, compartilhamento) dos dados, e sobre os agentes que são responsáveis por essas operações. Consentimento é a principal base legal para o tratamento de dados pessoais. Ela quer dizer que a pessoa teve condição de manifestar, de forma livre, informada e inequívoca, que concorda com o tratamento de dados pessoais para uma finalidade determinada”, afirma Nathalie.

No gráfico abaixo, produzido pelo InternetLab, as grandes empresas de telecom do Brasil são analisadas. Trata-se do projeto “Quem Defende seus Dados?”. O objetivo é identificar como lidam com a proteção de dados, e dentre os itens observados, estão os aspectos de consentimento e transparência.

Vivo é a telecom que mais se destaca com positivamente no lidar com dados pessoais. (Gráfico: InternetLab)

No site da pesquisa, que pode ser acessado clicando aqui, é possível conferir as avaliações de anos anteriores. Também, ao longo da página, todos os tópicos são discriminados e analisados, e em todas as empresas são encontradas falhas. Vivo é a telecom que mais se destaca com avaliações positivas.

“É importante que o titular do dado tenha a capacidade de exercer algum tipo de controle sobre a própria informação. As empresas tem a obrigação de terem políticas de privacidade e dizer como tratam os dados, informando quando os dados são coletados e apagados”, comenta Nathalie.

A pesquisadora também reforça que a LGPD é um passo importante, mas que depende das instâncias fiscalizadoras e judiciais garantirem a efetivação da nova lei. “Vai importar demais tanto o que a autoridade nacional da proteção de dados quanto os tribunais vão fazer interpretando a LGPD para que as pessoas tenham dimensão de que essa é uma lei para ser levada a sério.”

--

--

Natan Cauduro
Redação Beta

Jornalista e estudante de Relações Internacionais.