O que é preciso levar em conta antes de revisar a Lei de Cotas

Legislação completa mais uma década e poderá passar por uma revisão em agosto deste ano

Thanise Melo
Redação Beta
8 min readJun 23, 2022

--

Políticas afirmativas deram oportunidades para milhares de negros e negras frequentarem o Ensino Superior no Brasil (Foto: Thiago Corrêa / Divulgação)

Em quase 20 anos de vigência no Brasil, a lei de cotas raciais não corrigiu os mais de 300 anos de tráfico e de tortura de pessoas negras no nosso país, mas oportuniza às próximas gerações o acesso a um direito fundamental garantido pela Constituição: a educação.

Embora tenha ampliado a inclusão no Ensino Superior, essa política pública não reparou os danos da desigualdade, nem atingiu o seu principal objetivo de equidade em sala de aula e, posteriormente, em postos de trabalho.

As cotas são resultados de um longo processo de articulação do Movimento Negro com o Poder Público. Esse é um instrumento de pluralidade em espaços historicamente ocupados por pessoas brancas, como as universidades e os concursos públicos. Em 2019, o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, mostrou que estudantes pretos passaram a compor 50,3% da maioria em instituições de Ensino Superior da rede pública.

As primeiras experiências com ações afirmativas no Brasil começaram em 2003, universidades federais do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a da Bahia (Uneb). Em 2004, foi a vez da Universidade de Brasília (UnB) a instituir as cotas raciais.

Oito anos depois, em 2012, houve a aprovação da Lei 12.711, que reserva 50% das vagas em instituições de ensino federal para grupos historicamente excluídos — negros, indígenas, estudantes de escola pública e pessoas com deficiência e de baixa renda.

Entre as negociações para aprovação da lei de cotas no Brasil, ficou demarcada a necessidade da revisão dessa política pública a cada dez anos. Desde novembro de 2021, em regime de urgência, tramitam propostas na Câmara Federal para análise em plenário, como por exemplo o Projeto de Lei 1788/21, do deputado federal Bira do Pindaré (PSB/MA), que transfere para 2042 a revisão dessa ação afirmativa.

O primeiro passo da construção

“Nós não vamos mais fazer esse trabalho sozinhos!”, afirma a Doutora em Educação, Maria Rita Py Dutra (Foto: Pedro Piegas / Diário)

Filha de pais analfabetos que valorizavam muito a educação, Maria Rita Py Dutra foi, aos 70 anos, a primeira mulher negra doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Apaixonada pelos alunos e por alfabetizar, em seu primeiro emprego como professora passou a perceber questões sociais e raciais.

Ela conta que, após a implementação das cotas no Rio de Janeiro, as discussões começaram em Santa Maria. A convite da Coordenadoria Municipal de Política Racial da época, ela passou a debater como a universidade poderia contemplar a medida.

“Não fui a única, fomos somando. Enchemos a Câmara de Vereadores de pessoas, a maioria negras, e, a partir desse dia, iniciaram os debates nas rádios e nas escolas. A minha filha mais velha dizia: mãe, não vai, vão te jogar ovo podre!”, conta Maria Rita, aos risos.

Por um voto favorável, a universidade da cidade passou a aderir ao sistema de cotas ainda em 2012.

Exército Anti-Cotas sai às ruas de Santa Maria em protesto contra o projeto de lei. (Foto: Liana Coll / O Viés)

“Por incrível que pareça, havia jovens negros que julgavam que as universidades públicas não eram destinadas a eles. Certamente havia quem os convencesse disso, até mesmo os seus professores”, lembra a professora e doutora em Educação, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.

E complementa: “Lembro de ter ouvido de uma professora de escola pública que era contra as cotas para negros, indígenas e egressos de escolas públicas, porque pagava o ensino particular para seus filhos”.

A história de Petronilha se inicia na Colônia Africana, em Porto Alegre, onde hoje está localizado o bairro Rio Branco. Sua trajetória passa pela formação como professora e doutora em Educação, e chega à relatoria do Parecer CNE/CP3/2004, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

“Diziam que nós iríamos prejudicar e diminuir a qualidade das universidades, que iríamos construir o racismo no Brasil e o que a gente mostrou foi ao contrário! O racismo estava nas cotas 100% para pessoas brancas e ricas”, comenta Gleidson Renato Martins Dias sobre as construções do Movimento Negro Unificado em diferentes lutas pelo país.

O especialista em Direito público foi uma liderança estudantil totalmente apolitizada, que encontrou no MNU uma escola de saberes, ouvindo os mais velhos e as mais velhas.

Sobre as cotas raciais, Gleidson destaca que essa é a primeira política de inclusão de pessoas negras em espaço de poder e prestígio. “Somos a base da pirâmide, precisamos de um Estado forte que entenda e interfira na desigualdade social. Não há nenhuma possibilidade de democracia sem a inclusão da pauta racial”, afirma.

Especialista em Direito Público, Gleidson Dias é militante dos Direitos Humanos com ênfase no combate ao racismo. (Foto: Arquivo pessoal / Divulgação)

Há mais de 20 anos, Frei David luta por justiça social através da área da educação. Teólogo e filósofo por formação, encontrou na criação do Educafro — Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes, uma forma de ajudar pessoas negras a ingressar no Ensino Superior. Como diretor-executivo da rede, tem contribuído junto de outras lideranças no debate sobre as políticas de ações afirmativas nas universidades do Brasil.

Para Frei David, não há como avançar sem alterar as estruturas e também o funcionamento das instituições. “Precisamos pensar novas formas de funcionamento das instituições de poder, novas leis, novos projetos de políticas públicas, novos mecanismos de regulação. Isso precisa ser pensado com responsabilidade por diversos setores da sociedade e com protagonismo do povo afro-brasileiro”, afirma.

O religioso é uma das vozes que ecoa pelo país em prol da população negra e em defesa da presença destas pessoas em diferentes espaços da sociedade. “Ter pessoas negras eleitas é uma das formas de alterar a estrutura. Não é a solução de todos os problemas, mas é uma possibilidade”, acrescenta.

A política na universidade

Embora as vagas no Ensino Superior tenham ajudado a população negra a ocupar vagas nas universidades, a lei por si só não é suficiente para ampliar o futuro destas pessoas. É preciso ter o ingresso, a permanência e a formação. Para Maria Rita, “só a cota não resolve. Com todos os cortes do governo que estão por aí, os estudantes não conseguem se manter. É preciso se vestir, comer e ter material de estudo’, diz.

“Revisar é diferente de extinguir. A cota não cumpriu seus objetivos, os espaços de poder continuam sendo apenas para pessoas brancas. Não somos nem 10% dos juízes, dos promotores, dos reitores, dos diretores, imagina dos professores! O dia que atingirmos isso, não vamos precisar de cota racial”, fala Gleidson sobre as possibilidades de revisão da lei.

Há diversos mitos sobre as ações afirmativas. Essa política não atinge unicamente a população negra e indígena, mas todos os grupos populares, economicamente classificados como pobres.

“Por que valorizar só os eurodescendentes? Diferentes raízes étnico-raciais se encontram e dialogam há séculos. A supressão das políticas de ações afirmativas seria a expressão de um projeto de sociedade equivocado para uma nação tão diversa quanto é a brasileira”, comenta a professora Petronilha.

Petronilha foi Conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação e relatora do parecer que escabeleceu o ensino de história e cultura afro-brasileira no país. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Embora a Lei de Cotas tenha ampliado a presença de pessoas negras nas universidades públicas, Frei David diz que o projeto ainda não é o suficiente para reparar os danos dessa desigualdade. “Devemos avançar na pauta da bolsa permanência, que inclui a alimentação e a moradia. São tantos os atravessamentos que atingem a população negra no Brasil que é preciso dar todos os suportes necessários para esses jovens finalizarem seus estudos”, comenta.

Por uma alfabetização étnica

Entre os objetivos da Lei 12.711/12, está o apoio em condicionar que os grupos discriminados possam competir em igualdade no mercado de trabalho. É importante salientar que essa política não é permanente, mas transitória, nos levando a crer em um futuro de igualdade social e racial, sem discriminações. Portanto, a prerrogativa mantém a existência das cotas raciais, devido às disparidades entre pessoas brancas e negras.

Para Maria Rita, o racismo é estrutural e está no “cimento” da sociedade, mostrando que é preciso seguir lutando de outras formas.

“Nós não vamos mais fazer esse trabalho sozinhos! Precisamos ir para a universidade, não só para ser doutor, mas para ter conhecimento e ampliar horizontes. O racismo é uma ideologia, uma crença, está no ar”, diz.

Gleidson afirma que sua luta é feita desde o boteco até a academia, porque em todos esses espaços há racismo, inclusive na sua área de formação. “O Estado deveria construir argumentos, teorias e conceitos que tenham uma resposta jurídica antirracista. O direito antirracista teria uma especificidade para dar conta do que nós todos estamos dizendo: é um problema estrutural”, aponta.

Como deveria ser feito em todas as políticas públicas de impacto, a revisão da lei de cotas poderá acontecer até o mês de agosto de 2022. O projeto está pronto para ir ao plenário. Se o debate não ocorrer, ele deverá ser discutido apenas em 2023.

Para diferentes especialistas, o caráter inclusivo das ações afirmativas precisa continuar sendo preservado. Pensando na profundidade social que o racismo alcançou, Maria Rita afirma que “é preciso dar as mãos”. “Nós temos que ajudar os jovens a sonhar. Precisamos de mais políticas públicas, transferência de renda e cidadania para pessoas periféricas”, enfatiza.

Segundo o Frei David, com um congresso composto por homens, brancos e a grande maioria pertencente ao chamado “centrão”, a renovação automática poderia ser o caminho menos traumático. Mas, a última década da lei trouxe questões indispensáveis para a reelaboração dessa política pública nos próximos anos.

A rede Educafro, criada pelo Frei Davi, luta pela garantia das cotas nas universidades públicas e nas áreas do setor público. (Foto: Adriano Vizoni / Folhapress)

“Nos reunimos com o relator da revisão em umas três ocasiões diferentes e entregamos vários pontos para emendar. A lei, nos artigos 6 e 7, determina que a revisão aconteça a parir da pesquisa nacional sobre as cotas que o MEC iria entregar ao Congresso, o que não aconteceu. Absurdamente, os presidentes Temer e Bolsonaro cortaram as verbas para essa pesquisa”, lembra Frei David.

Para Gleidson, o problema não é a pessoa ser uma pessoa branca, mas não pensar na questão racial, e ele reafirma que elas podem e devem construir narrativas e projetos para lutar contra o racismo. Ainda, ele conta como a frase de Malcon X mudou sua perspectiva sobre a construção de políticas públicas. “Ele fala que nem todo negro é aliado, nem todo branco é inimigo. Então é isso: quero andar com meus aliados, mais do que isso, andar também com pessoas brancas que lutam contra o racismo sabendo o seu lugar e o seu privilégio”, conclui.

--

--