OMBUDSMAN: O semestre em que a Terra parou

Repórteres da Beta Redação na editoria Geral refletiram sobre a experiência jornalística em tempos de “Pandemia”

Luana Rosales
Redação Beta
5 min readJun 17, 2020

--

Semelhanças entre a série Pandemia e a realidade atual não são meras coincidências (Foto: Netflix/ reprodução)

“Foi assim no dia em que todas as pessoas, do planeta inteiro, resolveram que ninguém ia sair de casa. Como que se fosse combinado em todo o planeta, naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém”. Este é um trecho da música O Dia em que a Terra Parou, lançada em 1977, na qual Raul Seixas conta um “sonho de sonhador” que teve.

Mais de 40 anos depois, os versos do homem que nasceu há dez mil anos atrás ganharam um tom profético e voltaram a fazer sucesso. Após o início do distanciamento social por conta do coronavírus, as buscas pela canção no YouTube triplicaram.

No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de Covid-19, ou seja, a doença tinha se disseminado em escala global. Poucos dias depois, escolas e universidades suspenderam as aulas presenciais, comércio e indústria fecharam as portas, igrejas migraram para a internet e, quem pôde, ficou em casa. Mais ou menos como Raul tinha imaginado.

Assim como toda terra, os repórteres da Beta Redação da editoria Geral tiveram o semestre impactado, tanto como estudantes quanto jornalistas e cidadãos. Talvez de uma forma diferente, pois trabalharam diretamente com o tema neste período.

Gustavo Machado, por exemplo, está acompanhando a situação em Portão por estagiar no jornal da cidade em que reside, frequentando o hospital e os postos de saúde, além de acompanhar a campanha de vacinação contra a gripe. “Me expor à situação faz com que eu veja, de perto, o que os profissionais da saúde passam”, conta. Para a atividade acadêmica, uma das matérias também o colocou de frente com relatos daqueles que atuam na área.

A repórter Thais Lauck também segue trabalhando presencialmente no jornal local de Dois Irmãos, cidade onde mora, que está com a equipe reduzida em quatro pessoas por dia. As saídas acontecem apenas em situações realmente necessárias, com o uso de máscaras e luvas, além do álcool gel no bolso.

“Finalizado o expediente do trabalho, as aulas da faculdade em modo remoto parecem exigir de mim muito mais do que qualquer encontro presencial. Até os 45 minutos de trânsito intenso até a universidade fazem falta, assim como o contato com professores e colegas, pessoas com as quais acabo tendo mais contato do que com gente da própria família”, revela Thais.

Já para Victor Thiesen, a Beta Geral é a última disciplina cursada na graduação, com exceção do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Com a função de editor, ele conta que o contato presencial com os repórteres não foi crucial, pôde ser suprido com áudios, mensagens e chamadas de vídeo via WhatsApp.

“Contudo, o trabalho dos repórteres perde riqueza de detalhes sem as entrevistas presenciais. Tanto em termos de fotos in loco, como nas mudanças de humor que podem levar o entrevistado a revelar mais do que foi perguntado”, pondera Victor.

Ele conta que o consumo de informação o deixou mais estressado neste período, por conta da incerteza nas decisões com relação ao futuro da economia, por exemplo, o que faz com que as corporações reajam com desespero a qualquer sinal.

“No cotidiano pré-Covid, discussões sem aprofundamento ou motivadas pelo medo e insegurança eram diluídas entre as diversas editorias dos jornais. Ainda assim, era possível ler notícias com um certo distanciamento aos acontecimentos, o que permitia tomadas de decisões a longo prazo”, destaca o editor.

Na opinião de Guilherme Pech, um dos grandes privilégios da profissão é justamente a capacidade de mutação e dinamismo conforme as circunstâncias se impõem e, “neste período de pandemia, a importância do fazer jornalismo está em evidência especial”.

O repórter cita as mudanças na televisão, que está utilizando gravações de celular feitas em casa — seja na sala de estar, na bancada ou no escritório. Ele cita a importância de se alertar a população sobre fake news e boatos em tempos de calamidade como este. “Tudo isso é papel inerente ao jornalista”, ressalta.

Outra produção que também ganhou ares de premonição com a Covid-19 foi a série documental Pandemia, da Netflix, lançada em janeiro deste ano. Seu embasamento científico, no entanto, abre espaço para um grande debate sobre o papel do jornalismo na divulgação do surgimento de novos vírus.

O documentário parte do princípio de que o aparecimento de uma nova doença de alcance global, como aconteceu com a chamada gripe espanhola, seria só uma questão de tempo e a preparação para esse cenário era necessária.

“Do ponto de vista de um estudante de jornalismo, essa série é o maior presente para uma editoria de geral — como a nossa. A quantidade de pautas apresentadas ao longo dos episódios é incrível, especialmente porque todas elas apontam para uma mesma reflexão: a necessidade de conhecermos a nossa realidade” observou Natan Cauduro.

Para o repórter, muito do que foi observado nas cidades e países retratados no documentário poderia ter sido abordado anteriormente pelo jornalismo, como é o caso de saneamento, precariedade de moradias, qualidade de vida das famílias de baixa renda, pessoas que criam conspirações, além da vida e rotina dos profissionais que lidam com a situação de pandemia.

Outros assuntos que viraram pautas com a realidade da Covid-19 são amplamente abordados no documentário, como a pesada carga de trabalho dos profissionais da saúde, além de fatores como política, liderança, situação de hospitais, verbas públicas e tratamento de pacientes.

Também aparece a questão do conforto da fé, as pesquisas sobre a origem de vírus em animais antes mesmo deles surgirem e a busca por vacinas, mostrando os desafios da pesquisa e o paradoxo do discurso anti-vacina.

Henrique Bergmann refletiu sobre a atuação da imprensa, que pode ter falhado em não abordar o problema que a medicina e a ciência já estavam prevendo. “Será que o jornalismo não acreditou na pandemia ou não achou que seria importante? Ou simplesmente não foi atrás da informação?”, questionou.

“Entendo que faltou mais participação do jornalismo antes da pandemia de 2020 acontecer. O jornalismo precisa ir atrás da informação e esse problema estava fácil de encontrar, pois como mostra série, o mundo científico tinha certeza de que esse caos mundial aconteceria” ressaltou Henrique.

Renan Silva Neves, por sua vez, acredita que o jornalismo se modificou neste período, com os reflexos sendo sentidos em várias esferas da profissão. Para ele, a atividade é essencial no combate à doença e segue firme, realizando seu propósito, mesmo em meio a tantos ataques, inclusive físicos.

“Traçando um comparativo com o que é visto na série e o que vivemos atualmente, muitos cidadãos duvidam da atuação dos meios de comunicação. O papel da imprensa é divulgar e apurar fatos. E, no caso do novo coronavírus, a imprensa se mostrou fundamental na divulgação dos números e na disseminação das orientações da OMS”, destacou.

Viver a experiência pessoal e profissional deste momento de importância histórica é certamente um desafio em aspectos emocionais, sociais e econômicos para todos, cada um à sua maneira. De toda forma, os acontecimentos só vêm comprovando a essencialidade do jornalismo na guerra prevista em Pandemia, contra dois exércitos: o vírus e o comportamento humano — este um tanto “maluco”, sem nada de “beleza”, como a do apelido de Raul.

--

--

Luana Rosales
Redação Beta

Escrevo, aprendo, viajo, logo existo. Não necessariamente nessa ordem.