O som do viaduto

O Brooklin, como é conhecido o Viaduto Imperatriz Leopoldina, traz cultura a céu aberto para a região central de Porto Alegre

Cassiano Cardoso
Redação Beta
9 min readOct 4, 2017

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Por Cassiano Cardoso e Jéssica Martins

Skatistas foram os primeiros a aproveitar o espaço. (Foto: Cassiano Cardoso/Beta Redação)

Num final de tarde de sexta-feira, já se sabe como estará o trânsito na região central de Porto Alegre: intenso. Mas quem passa nas proximidades do Campus Central da UFRGS, perto da Redenção, nota uma movimentação que vem se tornando comum sob o Viaduto Imperatriz Leopoldina. Mais próximo à parte iluminada da elevada, pequenas rampas e corrimãos oferecem diversão a um outro público: os skatistas. No escuro, ao fundo e atrás do último pilar, alguns móveis amontoados, colchões e roupas indicam onde se localizam os moradores de rua.

Numa noite qualquer, próximo de um dos pilares cobertos por mosaicos de cerâmica em tons de azul e bege, algumas dezenas de jovens na casa dos vinte e poucos anos se reúnem em círculo. É um dos eventos realizados no lugar que agora é conhecido como Brooklin — com “‘i” mesmo, diferente do bairro nova-iorquino que inspira o apelido. Há outros dias em que cabelos black power, bonés de aba reta e calças largas são comuns entre aqueles que ali estão para fazer batalhas de rap: um MC usa rimas ofensivas para desafiar seu adversário; o público decide quem é o melhor. Não faltam, porém, momentos em que dezenas de pessoas brancas montam feiras com brechós, cerveja artesanal, quadros, livros e música ao vivo.

Mas há sábados em que pessoas negras tomam conta do Brooklin com uma roda de pagode, precedida de um DJ que tocou rap no Bar 93, localizado bem na esquina do viaduto. Não é de estranhar, ainda, que no cair da tarde de um domingo o som da guitarra ecoe pelo local enquanto famílias chegam para participar do evento com seus sacos de pipoca. Cachorros brincam pelo espaço dividido com os food trucks. Estampas coloridas, cerveja artesanal e barracas com variados produtos cercam o ambiente do Buena Onda Festival, que carrega o grave auditivo do rock. Essa é a multiculturalidade do Brooklin, um espaço público cultural adotado pelos jovens de Porto Alegre à procura de entretenimento e arte sem precisar desembolsar muito dinheiro.

O local é grande e há lugar para todos. (Foto: Cassiano Cardoso/Beta Redação)

Ponto de encontro

Não interessa o horário em que se passa por lá: quase sempre vai ter alguém. Seja nos bancos, na encosta abaixo do viaduto ou então andando de skate. O local virou ponto de encontro para quem quer se reunir com os amigos. “Eu me separei há dois meses. Se eu não viesse pra cá, andar de skate, trocar uma ideia com a gurizada, poderia até entrar em depressão. O Brooklin é a minha terapia”, conta Cristian Nunes, 33 anos, skatista que há um ano frequenta o lugar.

O esporte foi um dos primeiros motivos para conquistar público. As pequenas rampas existentes na própria arquitetura do viaduto atraíram skatistas e logo eles construíram outras um pouco maiores, lombadas e corrimãos para executar diferentes manobras. É assim que o militar Igor Maciel, de 19 anos, se diverte aos fins de semana: “A galera vai pro (Parque) Marinha. O sol cai lá e a gurizada vem embalando até aqui. Tá sempre acontecendo alguma coisa, e é certo que vamos conhecer gente nova”.

Eventos independentes são realizados por pequenos grupos de pessoas, como os slams. (Foto: Jéssica Martins/Beta Redação)

Não se sabe exatamente qual foi o primeiro evento realizado no viaduto, mas talvez o primeiro a atrair bastante gente tenha sido a festa Boom Rap Rua. Conhecida na cena alternativa de Porto Alegre, a Boom Rap produzia festas apenas em casas noturnas, até que, em parceria com o Bar 93, organizou a primeira festa no Brooklin. “E foi realmente um ‘boom’. Lotou, e notamos que sempre que fizéssemos algo ali bombaria”, conta Fabrício “Milkshake” Chelmes, sócio-proprietário da produtora.

O bar

Projeto da Cidade Baixa, o Bar 93 surgiu na Rua General Lima e Silva, permanecendo um ano por lá. Consolidado como um espaço de rap no bairro, migrou para um local que fica ao lado do Brooklin, onde também produz eventos próprios e participa ativamente da maioria das festas. Entretanto, segundo Paulo “Buiu” Rodriguez, proprietário do estabelecimento, a cena musical já era presente desde 2006 no viaduto. “Foi a primeira estadia do Beco, que depois foi para a Independência”, relembra. E, segundo ele, nessa época o skate já estava presente no local.

“A ideia do bar sempre foi vir para cá por conta da gurizada que andava de skate no viaduto. O prédio passou por uma reforma e acabamos entrando em um acordo para trazer o bar em 2015”, explica. Depois da Boom Rap Rua, começaram a surgir cada vez mais festas, transformando a área pública urbana.

Tem as festas organizadas por produtoras e as do bar também. Mas o freestyle também está presente: batalhas de rap e slams são frequentes no Brooklin. “Nós produzimos e tem também uma galera que promove cultura independente para a cena aqui. Sempre acabam passando pelo bar. Somos unidos. Bebemos da mesma fonte, o rap”, explica Buiu.

Os slams e batalhas de rap começaram a surgir depois da Boom Rap Rua. (Foto: Jéssica Martins/Beta Redação)

De acordo com ele, a promoção de cultura é sempre importante, independentemente da forma que for. “Aqui ocorrem festas diferentes entre si. O que queremos é trazer cultura para as pessoas”, diz. A fachada do Bar é pintada de preto fosco. Do lado de dentro, alguns quadros com ícones da cena do hip-hop americano e um balcão ao fundo para a venda de bebidas. Os sanitários do espaço geralmente são os utilizados nos eventos, exceto em festas maiores, quando banheiros químicos são instalados.

Multiculturalidade

Era a cultura afro-brasileira que dava tom à festa no Brooklin em uma noite de sábado. Até as 22h, a Confraria do Melão animava com samba e pagode. Mas depois a terceira Boom Rap Rua aconteceria no local, tomando conta do viaduto com rap nacional e internacional. Ambos os eventos foram produzidos por Fabrício Milkshake, aniversariante do dia, que pretende realizar o projeto “Samba do Brooklin” — como chama a primeira parte da festa — mais vezes no viaduto.

À noite, o Brooklin é tomado pelo rap. (Foto: Cassiano Cardoso/Beta Redação)

“É um lugar que traz bastante diversidade, e por isso atrai um público muito diferente”, acredita Elisângela Escalante, 24 anos, estudante que foi ao Brooklin pela quarta vez. Renata Moreira, 19 anos, também estudante, pondera: “O pessoal que gosta de rap tem origem na periferia, e é nas comunidades que o samba encontra suas raízes”.

Dênis Alves é negro e homossexual — o retrato da representatividade que as ocupações querem mostrar. Ele mora num espaço quilombola e faz parte do coletivo Negração. O jovem participou do Slam Chamego, prática que vem crescendo em Porto Alegre também pela ocupação de espaços públicos da cidade. “A gente precisa agir nos espaços e se empoderar deles, sair dos muros das universidades porque não é o que contempla a maioria. Muitos dos meus amigos estão aqui hoje e a gente usa a poesia para falar”, diz.

No domingo à noite, no meio de um público que chegava a duzentas pessoas, Dênis recitou um poema em homenagem a um amigo que faleceu. Enquanto todos os presentes aplaudiam, ele falou sobre libertação. “Abaixa a guarda e abre o peito” era o tema do Slam Chamego, um dos eventos que ocorrem no Brooklin e traz a rima como forma de expressão.

Além dos muros pichados do prédio de medicina da Universidade, existe resistência e conhecimento. Muitos jovens que não frequentam o espaço e moram longe dos bairros centrais de Porto Alegre se fazem ouvir mostrando que entendem de politica, respeito e liberdade.

Primeira edição do Slam Chamego no viaduto, com o poeta Silvio Amaral. (Vídeo: Dilvugação/Slam Chamego)

O Slam é um espaço democrático onde qualquer pessoa pode apresentar uma rima. Mas os poemas devem ser autorais. Um júri composto por cinco pessoas é formado na hora entre o público para que ocorra interação com a plateia. Os escolhidos atribuem uma nota que pode classificar ou não o slammer para a próxima etapa. Desde que o movimento vem ganhando força, aconteceram edições como o “Slam das Mina”, “Slam Peleia”, entre outros.

Algumas semanas depois, na tarde do feriado de 20 de setembro, o sol era bastante forte e a movimentação começava cedo no Brooklin. Eram 15h e as caixas de som já estavam instaladas e as bancas montadas. O DJ tocava pop rock latino. Na medida em que as horas passavam, o lugar começava a ser tomado pelo público. Tinha início a terceira edição da CB Festival.

Na calçada, roupas já usadas eram penduradas em araras para venda ao ar livre. Do outro lado, uma moça vendia botons e quadros. Mais adiante, livros estavam expostos à venda. Para refrescar um veranico fora de época em Porto Alegre, havia cerveja artesanal. No grande canteiro, muitas pessoas sentadas no chão. Embaixo do viaduto, os skatistas manobravam suas pranchetas.

Um dos organizadores, Tiago Leal, 33 anos, é proprietário da Bugio Discos, loja que vende LPs em um pequeno prédio em frente ao viaduto. “Fazemos eventos diurnos para que as pessoas transformem o Brooklin num espaço melhor com cultura para a cidade”, relata. “Primeiro eu vim numa festa de cumbia aqui. A gente sente como se fosse um ponto de fuga para as pessoas se expressarem”, conta o estudante de Produção Musical Renan Bueno, 23 anos, natural de Rondônia, que foi pela segunda vez no Brooklin.

No Brooklin também tem música ao vivo. (Foto: Cassiano Cardoso/Beta Redação)

Quem frequenta

Em apenas uma festa se pode encontrar pessoas com origens totalmente diferentes no viaduto. Jovens da periferia, da classe média, moradores de rua, pessoas de todas as idades. O viaduto surge como um grito por espaço de representatividade na cidade. “Eu venho para cá há mais de um ano por causa das batalhas de rap. É uma forma de mostrar que a gente tá aqui. Algumas pessoas têm uma visão errada do que nós fazemos. Isso aqui é resistência”, exalta Thaís Alves, estudante de 18 anos e moradora da região.

Em meio aos frequentadores mais usuais do viaduto, circula Flor — como é conhecida Nathália Silveira na cena do rap por mandar rimas pesadas. Ela está sempre disponível a trocar ideias com o público. “A gente está vendo a tomada de conscientização das pessoas de ocupar espaços que já são nossos por direito e a gente é ensinado a não usar”, argumenta.

O artista Cled Pereira estava há cinco dias em Porto Alegre e em duas noites foi ao Brooklin. Vindo de Brasília para participar de um evento de capoeira, foi convidado nas duas vezes por amigos gaúchos. Segundo ele, a ocupação dos espaços públicos da cidade é um movimento que não vem acontecendo só em Porto Alegre. “Em Brasília também vem rolando cada vez mais festas de rua. Acho massa essa ressignificação do lugar. As pessoas se sentem mais à vontade. É a rua, né?”, expressa.

Vivendo embaixo do viaduto há dois meses, um casal conta que os frequentadores do lugar convivem em paz com os moradores de rua. “Nos sentimos protegidos, pois sabemos que sempre que tem festa, há menos chance de a polícia vir fazer alguma coisa com a gente”, explica o marido. Com o olhar castigado de quem vive quase a vida inteira na rua, a moça diz que as festas trazem ânimo. “É sempre bom. Nos agita um pouco. É entretenimento para a gente. Mas tem vezes que queremos descansar e ficamos mais aqui”, conta sobre o seu refúgio na parte mais baixa da extremidade da elevada.

É comum, à luz do dia, ver araras com roupas sendo vendidas embaixo do viaduto. (Foto: Cassiano Cardoso/Beta Redação)

O dia no Brooklin

Quando a noite vai embora e o sol volta a surgir, o viaduto não parece ser o mesmo cenário descontraído das festas. Quem atravessa apressadamente a rua tem o medo iminente do assalto. Chamar um motorista pelo aplicativo depois das 18 horas também é uma dificuldade. Se o Brooklin é poesia em certos momentos, em outros pode ser drama.

Nos espaços em que é possível se abrigar da chuva, moradores de rua se escondem com carrinhos de reciclagem — alguns para usar drogas -, enquanto outros parecem seguir suas vidas sem se importar com o movimento. Assim como em outros pontos de Porto Alegre, é evidente a falta de políticas públicas. Os pedintes podem ter apenas o que conseguem carregar para não serem roubados.

As luzes do semáforo vão mudando do vermelho para o verde, enquanto um dos moradores de rua atravessa cantando um funk que toca que toca diariamente nas rádios. Parece que o viaduto é mesmo a nova cena de arte porto-alegrense. O som que vem da rua e que espera ser amplamente ouvido.

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Cassiano Cardoso
Redação Beta

Jornalista pela Unisinos. Estudante de História na UFRGS.