O sonho de viver do skate

Recém inserida nas olimpíadas, se profissionalizar na modalidade é um desafio, especialmente para atletas com menos poder aquisitivo

Ivan Júnior
Redação Beta
11 min readSep 3, 2020

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Skatista amador, Filipe Dihel faz a manobra “bs crooked grind” na pista de skate do IAPI, em Porto Alegre. (Foto: Tiago Silva/Lewis Skate)

Quando são noticiados salários ou valores de patrocínio de atletas de alto rendimento, muita gente cria uma visão otimista em relação ao retorno financeiro oriundo do esporte. Entretanto, a realidade é bem diferente, a depender da modalidade e da projeção midiática que ela recebe. Outro ponto a ser considerado são as condições necessárias para iniciar e se manter numa modalidade, visto que algumas exigem altos investimentos.

Um exemplo de esporte com tais características é o skate. A modalidade, recentemente inserida nos jogos olímpicos, tem um número expressivos de adeptos, embora os equipamentos para a prática sejam caros. Para participar de competições com mais visibilidade é cobrada uma taxa de inscrição, que se soma aos custos de deslocamento e de alimentação, distanciando aqueles com menos condições e que sonham em se profissionalizar.

Em cidades vizinhas da Região Metropolitana de Porto Alegre, o esporte aproxima duas histórias — mesmo em estágios diferentes — , que compartilham objetivos semelhantes: viver do skate.

Natural de Alvorada, Vitória Mallmann, 22 anos, é um dos principais talentos da categoria downhill speed, tendo conquistado o tricampeonato brasileiro em sequência e o vice-campeonato mundial na sua primeira participação, em 2019.

Com o intuito de ser uma ponte, por meio da aproximação de atletas à cena do skate no estado e no Brasil, a Lewis Skate, fundada por Douglas Newton, 20 anos, e Bruno Oliveira, 23 anos, iniciou sua trajetória em abril de 2020.

Uma mulher vitoriosa

Vitória Mallmann é tricampeã brasileira de skate downhill speed. (Foto: Arquivo pessoal/Zandro Silva)

O nome de Vitória Mallmann permite compreender de antemão a melhor definição para sua trajetória no skate dowhhill speed — vitoriosa — , como ela mesmo afirmou, quando perguntada como se sente sete anos depois do início na modalidade. Ao completar 15 anos, ela escolheu ganhar de presente um skate, no modelo longboard, dado pelo pai, sob a justificativa de utilizar o objeto como um meio de deslocamento.

O que a skatista não sabia ainda é que o meio de transporte a levaria a descer lombas a 115km/h, velocidade atingida em Teutônia, cidade onde fica localizada a descida mais rápida do mundo. “Sempre procurei algo para me aproximar da minha essência, por me sentir uma pessoa muito livre. O skate me transmitia essa liberdade de ser 100% o que eu sou”, destaca.

Distante pouco mais de 40 quilômetros de Alvorada, Novo Hamburgo foi a cidade onde Vitória participou da sua primeira competição. Com a companhia e o apoio da mãe, veio de ônibus até o centro de Porto Alegre, depois embarcou no trem até a cidade do Vale do Rio dos Sinos e pegou mais um ônibus para, finalmente, chegar ao local do evento. Em sua primeira participação num campeonato na modalidade, conseguiu a primeira colocação, o que se repetiu nos dois campeonatos seguintes. A skatista profissional lembra com carinho do apoio familiar e dos sacrifícios para participar das competições. “Minha mãe não media esforços para gente ir até os campeonatos, pois não tínhamos carro", recorda.

Embora os pais apoiassem, ainda havia uma contradição. Por ser mulher, a família tinha dificuldades para compreender o envolvimento de Vitória com o esporte radical. “Ser uma mulher que tá sempre se machucando, não é algo muito comum para a sociedade e para a minha não era também”, explica. Até chegou a ser cogitado que parasse de andar de skate, porém, ela conta que conseguiu facilitar a compreensão familiar. “Ainda trabalho para que aceitem cada vez mais, porque está tudo bem uma mulher andar de skate. Não é um esporte masculino, apesar da sociedade achar que é”, argumenta.

Ainda assim, Vitória destaca que em campeonatos de downhill speed há uma média de cinco ou seis mulheres competindo em meio a mais de 100 homens. Ela integra um movimento de skate feminino a fim de aumentar o número participantes. “Terá grandes resultados futuramente. Daqui uns três ou quatro anos vai crescer bastante devido às sementinhas que estamos plantando”, afirma.

Em 2016, Vitória passou a participar de campeonatos maiores, ganhando visibilidade em competições nacionais. Neste mesmo ano, conquistou o campeonato brasileiro, após recuperação de fratura no ombro. Em 2017 e 2018, repetiu o feito e chegou ao tricampeonato. Embora tenha tantas conquistas nacionais, a skatista se orgulha e afirma que sua maior vitória veio no campeonato mundial, disputado em Barcelona, na Espanha.

Em 2019, a jovem gaúcha passou a integrar a seleção da Confederação Brasileira de Skate para representar o país na World Roller Games, realizada em julho. Para participar da competição, ela contou com o apoio de um patrocinador que custeou a ida ao país europeu. No campeonato, enfrentou mulheres da elite feminina de downhill speed e conquistou o vice-campeonato mundial. “Me senti extremamente honrada por estar representando o Brasil. Agora, estou bem focada porque quero ser campeã mundial ano que vem. Quero esse título”, indica.

No pódio, à esquerda, Vitória comemora a segunda colocação no campeonato mundial. (Foto: Reprodução/Instagram)

Embora ainda esteja trabalhando como vendedora num curso preparatório em Porto Alegre, Vitória pretende se dedicar exclusivamente ao esporte. Outra ajuda financeira é proveniente do salário da Mary Jane, uma marca de tênis de skate para mulheres. O valor recebido mensalmente é usado para custear os treinos e os calçados especiais utilizados para a prática do esporte. “Tenho outras parcerias para trocas de peças de skate, mas em dinheiro só a Mary Jane mesmo”, contextualiza. Com foco total no próximo campeonato mundial, a skatista espera um patrocinador para participar da competição.

Em relação aos equipamentos, ela destaca que somente o macacão custa 2 mil reais, o capacete 800 reais e o skate, dependendo da marca, pode chegar a 1.5 mil. “São valores bem altos e a durabilidade depende muito. Posso passar um ano sem um tombo, mas se cair uma vez, destrói o macacão. Não tem como medir”, justifica.

De acordo com Vitória, o maior desafio de seguir praticando um esporte com pouca visibilidade é a questão financeira. Ela lembra que muitas vezes precisou abrir mão de todos os seus objetivos materiais para investir no skate. Quando era estagiária e ganhava salário de 400 reais, sempre investia o valor em equipamentos esportivos. “Muitas vezes as pessoas acham que foi fácil e que ganhei as coisas”, desabafa.

A rotina de treinos de Victória inclui crossfit focado na preparação física e andar de skate pelas ruas todos os dias. Nos finais de semana, quando pode descer ladeiras, realiza um treino “mais específico”. Geralmente, essas atividades são praticadas ao lado de amigos. “É um treino meio rolê skate”, contextualiza. Para se aperfeiçoar, ela precisa ficar atenta ao desempenho, por não possui treinador.

Sobre as perspectivas futuras, ela lista o desejo de seguir trabalhando com as aulas de skate para crianças e se tornar campeã mundial no próximo ano. “Se eu não for campeã mundial ano quem, vou treinar para ser em 2022. Se não for, vou treinar para ser em 2023. O plano é ser campeã”, almeja.

Iniciativa quer aproximar skatistas da profissionalização

Equipe da Lewis Skate - da esquerda para a direita: Filipe Dihel (skatista amador); Bernardo Oliveira (skatista iniciante); Douglas Newton (fundador e administrador); Thamires Botelho (Social Midia); Bruno Oliveira (fundador e administrador); Tiago Silva (fotógrafo e videomaker). (Foto: Arquivo pessoal/Tiago Silva)

Em 2017, Douglas Newton e Bruno Oliveira se conheceram trabalhando como voluntários em um projeto social focado no ensino de skate para crianças e jovens do bairro São Tomé, em Viamão. Juntos, tiveram a ideia de criar um projeto para auxiliar jovens com menos condições econômicas a vislumbrar oportunidades de se tornarem profissionais no esporte. O trabalho visa inserir os atletas na cena do skate gaúcho e brasileiro, ampliando a sua visibilidade por meio da produção de conteúdo para Instagram e YouTube.

“No Rio Grande do Sul, o skate tem pouca mídia, pois o foco principal é São Paulo e Rio de Janeiro”, contextualiza Newton. Para ele, um exemplo é a concentração de fotógrafos e videomakers na região sudeste do país. Com a experiência de ser voluntário na Associação de Skate São Tomé, ele diz que pretende usar a influência que tem na comunidade de Viamão para ajudar skatistas na busca por visibilidade no esporte.

A Lewis Skate é formada pelos fundadores e administradores, Bruno Oliveira e Douglas Newton, pelo fotógrafo e videomaker, Tiago da Silva, pela social media, Thamires Botelho, e auxilia os atletas Bernardo Padilha e Filipe Dihel. “Os dois skatistas têm um potencial muito grande para seguir carreira, porém nunca tiveram um fotógrafo e a oportunidade de sair em alguma mídia do skate”, ressalta Newton. Mesmo com a pandemia, a iniciativa busca cumprir seu objetivo. O skatista Dihel, que compete na categoria amador e tem 24 anos, teve sua trajetória contada na Decs Magazine — revista focada em skate de São Paulo.

O primeiro atleta a integrar a marca é Bernardo Oliveira, de 15 anos. Morador do bairro São Tomé, Newton conta que conheceu Bernardo no projeto em que é voluntário. O jovem talento se destacava entre os demais. “Ele é de uma família mais carente e foi o primeiro que a gente pensou em tentar trabalhar para fazer ir um pouco mais longe”, expõe. Desde a fundação da marca, o grupo fez uma sessão de fotos na praça da matriz e gravou vídeos na pista do IAPI, em Porto Alegre. Boa parte das fotos e vídeos são feitos no IAPI, por ser uma das pistas mais conhecidas do Brasil, justifica, Newton.

Para Newton, existem muitas pessoas com potencial para se tornarem profissionais de alto nível, mas que estão invisíveis no esporte, por terem menos condições econômicas. Ele argumenta, também, que a maioria dos skatistas de destaque no estado têm mais poder aquisitivo. A Lewis Sakte, por sua vez, busca justamente oferecer visibilidade àqueles que têm dificuldades em acessar os equipamentos e as competições para sonhar com uma carreira no esporte. “Tem pessoas que não têm possibilidade de comprar um tênis todo mês ou uma peça de skate”, contextualiza.

Está nos planos da Lewis viabilizar a participação de atletas em campeonatos de maior visibilidade, como aquelas organizadas pela Federação Gaúcha de Skate (FGSKT). De acordo com Newton, serão buscados patrocinadores e será oferecida a divulgação da marca nas redes sociais a fim de arrecadar o valor necessário para que Dihel e Oliveira participem das competições: “A ideia da Lewis é tentar realizar o sonho de cada pessoa”, afirma otimista.

A cena do skate no Rio Grande do Sul

A Beta Redação Esporte entrevistou o presidente da Federação Gaúcha de Skate (FGSKT), Régis Lannig, por vídeo chamada na tarde de 1° de agosto. Durante a conversa, Lannig fez um panorama da modalidade no estado; falou da inserção da modalidade nos jogos olímpicos de Tóquio em 2021; como a federação tem se organizado para discutir a presença feminina e quais são as perspectivas para o próximo ano.

Confira a entrevista na íntegra:

Beta Redação: Qual o panorama da cena do skate no Estado?

A cena do skate no Rio Grande do Sul é uma das principais cenas do país hoje. É um dos únicos lugares em que temos o skate fomentado em todas as esferas, na questão de skatistas, de atletas e de empresas do ramo. Tanto que temos alguns skatistas da cidade de Porto Alegre, vou dar o exemplo do Luan Oliveira. Ele é um skatista de renome internacional, reconhecido como um dos melhores skatistas do mundo na modalidade street. Temos grandes empresas do ramo, consideradas uma das principais empresas de skate do país, com sede no Rio Grande do Sul, com o DNA gaúcho. A gente tem uma das melhores empresas de skate park no estado também. Enfim, tem uma cena bem diversificada e bem sólida do skate gaúcho. Temos hoje, segundo pesquisa do Instituto Datafolha, realizada em 2018, mais de 2 milhões de praticantes da modalidade no Rio Grande do Sul.

Beta Redação: A federação tem dado ênfase à construção da pista de skate na orla do Lago Guaíba, em Porto Alegre. O que significa uma obra desse porte para o estado?

A gente vê em muitas matérias que saem no jornal: “Porto Alegre quer entrar para a rota do skate nacional”. Na verdade, Porto Alegre já é uma referência no skate brasileiro há muito tempo, mesmo sem a construção dessa pista. A pista é uma luta da federação há mais de 10 anos. Em 2015 conseguimos incluir o projeto da pista no projeto do trecho 3 da orla. Ficaram uns quatro anos sem falarem e do nada a pista começou a ser construída. Vai ter um valor muito grande, não só para o skate de Porto Alegre, como para o skate gaúcho. Será a maior pista da América Latina, uma das maiores pistas do mundo. Visitei a obra recentemente e, para nós que estamos na batalha, é algo emocionante.

Lannig em visita à obra da pista de skate no trecho 3 da Orla do Guaíba no dia 18 de agosto. (Foto: Reprodução/Instagram)

Beta Redação: O que significa a entrada do skate nas próximas olimpíadas?

Abre muitas portas, inclusive, para melhorar a infraestrutura do esporte nacionalmente. A Confederação Brasileira de Skate formou uma seleção da modalidade e tem dado suporte às federações. Tem um projeto que estamos fazendo parte e que será lançado em todo o Brasil chamado Skate Escola Brasil. Deve ser um projeto de escolas de skates, ter projetos sociais com pólos de skate, que serão implantados no país, inclusive, teremos pólos no Rio Grande do Sul. O skate nas olimpíadas é muito importante no sentido de estar recebendo verba do COB. Os próprios skatistas podem acessar modalidades do bolsa atleta.

Claro, tem gente que acha que por causa das olimpíadas o skate vai perder sua essência. Vai se criar dentro do movimento global do skate um movimento de skatistas que estão interessados nas olimpíadas. Mesmo assim, o skate já é algo muito grande. Tem as suas competições como X Games, que é a olimpíada dos esportes radicais. A olimpíada será mais um evento para o skate. É importante salientar que o skate segue sendo um movimento grande, gigante e legal que acabou entrando nas olimpíadas.

Beta Redação: Como a federação se organiza para discutir a presença feminina na modalidade?

Existe um movimento nacional em prol da equidade de gênero no skate para equilibrar o número de participantes. Existe uma mobilização com o objetivo de criar alternativas e soluções para que aumente o número de meninas no skate. Temos alguma skatistas brasileiras que são referências mundiais, o caso da própria Vitória Mallmann, na modalidade downhill. Tem a Melissa também, que é a atual campeã brasileira e já foi campeã sul-americana. Está aumentando o movimento, mas ainda vemos uma procura muito pequena.

Estamos criando um conselho consultivo feminino dentro da federação, do qual a Vitória passou a fazer parte, e que discute alternativas para que as meninas compareçam aos eventos. Da minha parte é algo mais de escutar, e da parte das meninas de construção com ideias delas do que pode ser feito. Elas organizaram um evento no Gasômetro que foi um sucesso. Nosso objeto é esse com a criação do conselho. Que meninas possam fazer parte da federação e, num curto espaço de tempo, mulheres estejam assumindo a presidência das federações.

Beta Redação: Quais as perspectivas e desafios da federação para o próximo ano?

Estamos trabalhando nos circuitos do ano que vem, tentando fechar as parcerias. Mas como é um ano eleitoral e, por depender muito do poder público local para fechar as etapas, acaba sendo um ano complicado. Alguns prefeitos não vão continuar o mandato. Precisamos de autorizações, além de envolver o poder público local nas etapas. Então, somando a pandemia e o ano eleitoral, estamos alinhando o que pode ser feito para o ano que vem. A grande retomada será depois das eleições, com as novas administrações. Também estamos conversando com as marcas para apresentar os projetos.

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Ivan Júnior
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Jornalista em formação. Me interesso pelo acontecimento cotidiano. Ademais, tenho uma paixão por ler e discutir futebol e política.