O trilho que construiu a Região das Hortênsias

No mês de junho, comunidade gramadense comemora o centenário da chegada do trem à região

Renata Garcia
Redação Beta
7 min readJun 4, 2019

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A chegada do trem na Região das Hortênsias marcou a localidade econômica e culturalmente (Foto: Grupo Pró VG/Acervo Pessoal)

O som da máquina encarvoada anunciava a sua chegada e gerava um misto de espanto, curiosidade e alegria. A cena é do primeiro filme do mundo, apresentado em 1895, na França, mas as mesmas reações se repetiram no Brasil 24 anos depois. Assim como na obra dos Irmãos Lumiére, a vinda do trem a Gramado, na Serra Gaúcha, despertou curiosidades e marcou a história de quem viveu ao lado dos trilhos. No mês de junho de 2019, comemora-se os 100 anos da chegada do primeiro trem à região serrana, sinônimo de progresso cultural e econômico.

Para prestigiar os 100 anos desse marco histórico, a comunidade do bairro Várzea Grande desenvolve um projeto de reconstituição física e histórica do caminho percorrido pelo trem. A proposta é resgatar as inúmeras histórias interligadas ao avanço ferroviário. Por meio da mobilização de moradores e entidades públicas e privadas, a ideia é reavivar locais perdidos com o tempo.

O projeto foi implementado na comunidade em novembro de 2018. Em meio ao desenvolvimento do município e do fortalecimento de pontos turísticos e gastronômicos, histórias como as do trem foram esquecidas pelos próprios moradores.

Mas o conhecimento histórico, aliado ao engajamento da comunidade, tornou possível reconstruir a cidade de Gramado do início do século XX. Além do levantamento bibliográfico, moradores se uniram inúmeras tardes para a limpeza e reconhecimento dos trilhos que marcaram a história do município.

Os planos de recontar essa história não ficam limitados ao mês comemorativo. O historiador e integrante do projeto, Wanderley Cavalcante, ressalta que a expectativa é de que essa ação se torne um instrumento cultural e educacional. “Nossa proposta é fazer com que esse material vire livros didáticos, jogos e concursos culturais, com conteúdo lúdico e atraente, para os alunos das turmas das séries iniciais que têm a disciplina de turismo, mas não têm o material necessário para trabalhar com a temática”, explica.

Coordenador das pesquisas históricas, Wanderley alia o conhecimento aos espaços físicos (Foto: Renata Garcia/Beta Redação)

Vidas orientadas pela passagem do trem

Entre 1919 e 1963, o trem era um dos únicos meios de locomoção, tanto para quem morava na região quanto para os visitantes. Na época, Gramado sequer existia, sendo à época o quinto distrito da cidade de Taquara. A primeira linha ferroviária construída no Rio Grande do Sul, da qual Gramado fez parte, foi a sétima do país.

Aos 87 anos, o aposentado Abel Tomazi conta que a chegada do trem representou uma época de progresso para a localidade de Várzea Grande, especialmente para a primeira família que habitou os campos ainda desconhecidos. Ele conta que, na época, a estação ferroviária marcava os horários do dia. “O trem chegava aqui na estação sempre às 11 da manhã. Como trabalhava na roça, não tínhamos relógio. Ele era o nosso despertador”, lembra.

Abel Tomazi recorda as mudanças na localidade após a chegada do trem (Foto: Renata Garcia/Beta Redação)

Além das memórias da rotina na plantação, Abel recorda com carinho do período em que ajudou a construir a capela da Igreja São Luiz Gonzaga, na qual, até hoje, frequenta as missas de domingo. “O material da construção vinha no trem. Eu e mais um amigo íamos até a estação, ajudávamos a descarregar os tijolos e levávamos de carroça até a Igreja”, relata orgulhoso.

Apesar de não ter vivenciado o caso, Abel ainda tem na memória o episódio em que um dos vagões do trem se desprendeu das engrenagens e colidiu com uma pedra. Na ocasião, o vagão estava repleto de máquinas de costura que seriam levadas ao centro de Gramado.

Após tombamento do vagão, o espaço se tornou ponto turístico (Foto: Grupo Pró VG/Acervo Pessoal)

Desenvolvimento que corre nos trilhos

O projeto de instalação do trem iniciou em 1903, quando foi inaugurada parte da linha que, inicialmente, ligava Novo Hamburgo a Taquara. A estação do bairro Várzea Grande, no antigo distrito de Taquara, foi inaugurada em 1919, e a do Centro foi finalizada em 1921.

O projeto que ligava Taquara a Canela foi concluído após 21 anos de obras (Foto: Grupo Pró VG/Acervo Pessoal)

Durante o planejamento para a instalação da ferrovia, os primeiros desafios começaram a surgir. A linha foi construída em condições excepcionais, dadas as condições geográficas, conforme explica Wanderley. “O exemplo concreto disso é a altitude: de 29 metros em Taquara, chegava a 827 metros em Gramado”, destaca.

Essas dificuldades impuseram a necessidade de construir, na saída da Várzea Grande, um desvio feito para paralisar a locomotiva, conhecido como rabicho. Ao chegar na localidade o trem precisava percorrer um pedaço do trajeto de ré para vencer o território íngreme. Esse rabicho foi o único construído em toda a América do Sul. A ultrapassagem do obstáculo somente foi possível com obras de altíssimo custo, como a construção de um túnel, algo que era praticamente impossível naquele período.

Por conta do território íngreme, o rabicho teve de ser construído (Foto: Arquivo Pessoal/Grupo Pró VG)

A chegada do trem trouxe mais do que apenas um novo meio de locomoção. Com ele, vieram oportunidades de negócios para as famílias que moravam em linhas próximas às estações — muitas delas existem até hoje, como a Linha Moleque, Linha Carahá e Serra Grande. Viabilizada pela via ferroviária, a produção local aumentou. Até a chegada do trem, o transporte de animais, produtos coloniais e roupas era feito com carretas ou a cavalo.

Nesse sentido, Wanderley acrescenta que, além das vendas feitas nas estações, houve uma diversificação de produtos na região. “O trem saía de extremos, de Porto Alegre a Canela, então a diversificação era muito grande. Começaram a surgir na região serrana uma variedade nos produtos de origem processada, e até mesmo, do setor moveleiro”, afirma.

Além de fomentar a economia, a linha férrea trouxe avanços culturais. Com o fluxo intenso diariamente, comunidades totalmente isoladas passaram a ter contato com outras culturas. Ao longo dos 44 anos de ativação da linha, o trem propiciou a chegada de jornais e diferentes publicações, além de ampliar o consumo da arte e, até mesmo, difundir tendências de moda.

Os trilhos marcaram a chegada dos primeiros turistas na localidade (Foto: Grupo Pró VG/Acervo Pessoal)

Fim da linha ferroviária

Segundo o historiador, com o governo de Juscelino Kubitschek em ascensão e o forte impulso no setor automobilístico, algumas linhas ferroviárias foram consideradas deficitárias e acabaram desativadas. O encerramento das atividades da linha de Taquara a Canela iniciou em 1962 por determinação do Ministério da Viação e Obras Públicas. Juntamente com essa linha foram fechados os ramais de Pelotas a Canguçu, e de Ramiz Galvão a Santa Cruz.

Em março de 1963, o tráfego de Taquara a Canela foi suspenso. O trabalho de retirada dos trilhos iniciou em dezembro do mesmo ano e foi finalizado em dezembro de 1965. Para Wanderley, o processo retirou, principalmente, os resquícios de uma história muito rica. “Foram tirando tudo, não deixaram nada. Se destrói, se passa uma borracha na história”, lamenta.

Comunidade busca novo olhar para o bairro

Desde 2018, a comunidade do bairro se mobiliza para a reconstrução da história e trabalha em uma nova estratégia para impulsionar a localidade de Várzea Grande.

Segundo Marcelo Neumann, integrante do projeto de reconstrução da história do bairro, as ações objetivam fomentar o turismo além do centro de Gramado. “Com a chegada da crise, vimos a triste realidade de empresas fechando e demitindo suas equipes. Isso nos faz enxergar novas oportunidades no mercado, como o turismo histórico e cultural e o eco turismo”, ressalta.

Para impulsionar o projeto, a comunidade mobilizou finais de semana para a reconstrução de caminhos pouco conhecidos, como o trajeto até o rabicho. “A mobilização nos surpreendeu. O projeto engrenou de uma forma que não imaginávamos e em poucos meses tomou uma proporção jamais imaginada”, conta Marcelo.

A ideia seguinte, após a inauguração do caminho do trem, é investir no espaço para deixá-lo aberto a visitação. Um evento em comemoração ao centenário do trem está sendo planejado pelo grupo e acontece no sábado, 15 de junho, a partir das 9 horas, no Espaço Cultural Estação Férrea Museu do Trem. A atividade contará com peça teatral, apresentação da banda marcial do bairro e visita ao trajeto revitalizado.

Conforme Marcelo, o próximo passo do grupo é desenvolver e explorar espaços esquecidos pelos órgãos competentes e comunidade local. “Precisamos dar essa oportunidade para o nosso bairro, considerando que o turismo, a cultura e a educação são os eixos que nos guiam para conquistarmos espaço aos olhos daqueles que nos veem de fora”, conclui.

Comunidade vem se mobilizando para reconstrução da história do bairro (Foto: Grupo Pró VG/Acervo Pessoal)

A trajetória ferroviária

Para quem ficou interessado e pretende conhecer um pouco melhor a história das ferrovias no Rio Grande do Sul, o professor Wanderley Cavalcante realizou uma curadoria com títulos relevantes sobre a temática:

  • Caminhos de Ferro do Rio Grande do Sul: ​Uma Contribuição ao Estudo da Formação Histórica do Sistema de Transportes Ferroviários no Brasil Meridional (José Roberto de Souza);
  • Patrimônio ferroviário no Rio Grande do Sul. Inventário das estações: 1874–1959 (Alice Cardoso e Frinéia Zarmin);
  • ​Estrada de Ferro: ​Contribuição para a História da Primeira Ferrovia do Rio Grande do Sul (Germano Oscar);
  • Ferrovias no Rio Grande do Sul — Artigos Do Memorial (Antonio Francisco Ranzolin).

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Renata Garcia
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24 anos e estudante de Jornalismo. Por aqui, relatos do cotidiano. Além disso, falo sobre inovação e tecnologia na @gramadosummit!