O voto facultativo é o caminho a ser seguido?

Cientistas políticos avaliam que fim do voto obrigatório não é a solução para resolver os problemas da política brasileira

Paulo H. Albano
Redação Beta
8 min readDec 11, 2020

--

(Foto: Evaristo Sá/AFP via Getty Images)

A abstenção eleitoral no pleito municipal de 2020 chegou ao número recorde de quase 30%. Em 2018, 2016 e 2014, o índice de eleitores que deixaram de comparecer às urnas já havia ficado acima dos 20%. Nesta semana, ao fazer um balanço das eleições em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o Brasil iniciou a transição para o voto facultativo, que nas palavras dele, é o modelo ideal.

Mas será que o fim do voto obrigatório melhoraria de fato a política brasileira? E quais impactos a adoção do voto facultativo causaria? Entre as respostas apontadas por especialistas ouvidos pela Beta Redação, estão uma possível desmobilização dos cidadãos em relação a temas relevantes da sociedade e a provável falta de representação dos setores mais pobres da população.

Descrença na política e pandemia

Antes de aprofundar a questão do voto obrigatório ou facultativo, é necessário contextualizar o peso da pandemia e os receios com o coronavírus na escolha de quem decidiu não comparecer às urnas. No Rio de Janeiro, uma das capitais mais atingidas pela Covid-19, o prefeito eleito Eduardo Paes (DEM) recebeu 1.629.319 votos e ficou atrás da taxa de abstenções, que chegou a 1.720.154 eleitores.

O cientista político Paulo Sérgio Peres, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acredita que houve um cálculo por parte de muitos eleitores que colocaram dois fatores na balança: a indignação ou a desesperança com políticos e partidos, e o risco de contaminação envolvido no comparecimento ao pleito em meio ao início da segunda onda da pandemia. “Eleitores que já não acreditam que o seu voto valha alguma coisa, que alguma mudança substantiva ocorrerá por causa da sua escolha podem ter avaliado que, além do desperdício do seu tempo, corriam o risco de pegar a doença”, ponderou Peres.

Eleitores aguardam em uma fila de votação com pouco distanciamento no Rio de Janeiro (Foto: Bruna Prado/Getty Images)

Já Rodrigo Stumpf Gonzalez, professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS, ressalta que é preciso olhar para os resultados históricos das votações. Ele lembra que essa ausência de eleitores no segundo turno, se comparado ao primeiro, ocorreu em praticamente todas as eleições depois da redemocratização.

“Em alguns casos, como em São Paulo, a redução de eleitores já vinha ocorrendo nos pleitos anteriores. Esse processo de perda de credibilidade ou desinteresse pelo processo eleitoral não é um fenômeno novo. Por outro lado, a pandemia também pode ter contribuído para o não comparecimento daquela faixa de pessoas acima dos 60 anos. Isso fez com que uma parcela de votos brancos e nulos tenha migrado para a abstenção”, explica.

Para o professor Émerson Urizzi Cervi, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o alto índice de abstenções não pode ser relacionado diretamente a uma suposta descrença da população com a política. “Tem mais a ver com um movimento na direção contrária. A pandemia fez com que a abstenção tenha sido elevada em todas as faixas de eleitorado se comparado às eleições anteriores. Porém, quem compareceu às urnas, votou em partidos e candidatos institucionalizados”.

Cervi frisa que os políticos considerados tradicionais ganharam espaço. “A descrença estava presente com mais força em 2018, quando era a antipolítica quem ganhava mais votos. Em 2020 a política tradicional foi quem ganhou”.

Democracia e legitimidade dos políticos eleitos

Conforme os especialistas, um aspecto fundamental a ser considerado em caso de voto facultativo no contexto brasileiro é a possibilidade de governantes serem eleitos com um número baixo de votos.

Peres lembra que há teóricos que defendem a ideia de que a educação política para a sociedade só pode ocorrer dentro de uma democracia amplamente participativa, que estimule os cidadãos a exercerem sua cidadania. “A democracia depende do apoio popular ao governo, algo que é sacramentado no ato de votar. Com baixo comparecimento, esse descompasso entre representante e representado pode se agravar, o que se traduz num problema de legitimidade do governo”, opina.

Ele ainda questiona se o voto, ao invés de ser apenas um direito, também não seria uma obrigação. “Essa discussão está em curso há muito tempo. Tem países em que o voto é facultativo e a discussão dos especialistas de lá aponta para a necessidade de o voto ser obrigatório. Sendo facultativo, ele pode se transformar mais facilmente numa mercadoria”.

Na mesma linha de pensamento, Gonzalez alerta que a diminuição massiva do número de eleitores poderia deslegitimar o processo eleitoral. “Se hoje nós estamos preocupados com uma abstenção que está em torno dos 30%, imagina se esse índice subisse para 50% ou 60% ?”

Uma possível desmobilização de camadas sociais com menor grau de estudo também é um fator determinante para que o cientista político não considere que o voto facultativo seja um avanço.

“Embora, na prática, tenha sido facilitado [o não comparecimento à] votação, o fato de nominalmente ser obrigatório ainda é um fator de mobilização para a população, principalmente da parcela com menor escolaridade”.

Afastamento dos mais pobres

Eleitora votando no Amapá (Foto: André Borges/NurPhoto via Getty Images)

O Brasil é um país de tamanho continental e que apresenta muitas desigualdades regionais. Émerson Cervi alerta para uma possibilidade real de um crescimento dessas desigualdades em um cenário de voto facultativo. “Há regiões em que é muito mais custoso e trabalhoso para o eleitor comparecer às urnas. Com o voto facultativo, essas regiões gradualmente irão ter um menor número de votos, o que vai fazer com o que os políticos se afastem delas uma vez que ganhar voto lá é mais caro e oneroso”.

O resultado disso, segundo ele, seria uma sobrerrepresentação em áreas que são de mais fácil participação e uma sub-representação das áreas que são mais afastadas. “O voto obrigatório no Brasil ainda é uma medida necessária para reduzir desigualdades, ou pelo menos evitar que as desigualdades regionais aumentem”, diz Cervi.

Qualidade dos políticos eleitos

Uma tese bastante difundida entre alguns defensores da implementação do voto facultativo é a de que o modelo melhoraria a qualidade da representação política, pois só votariam os eleitores que realmente estão interessados em se informar sobre o pleito antes de comparecer às urnas.

Para Cervi, não faz sentido relacionar diretamente a qualidade da representação política e o voto facultativo. “Em 2018 nós tivemos uma grande participação e foram eleitores não tão bem informados assim, votando em discursos personalistas e de retórica vazia, que representam a antipolítica. Não é a participação em massa que garante a qualidade da democracia, assim como também não é a participação apenas de uma minoria que vai melhorar a qualidade de informação dos que participam”, afirma.

Gonzales também não vê ligação entre qualidade de representação e voto facultativo. “Essa noção faz parte de um argumento elitista antigo de que só os melhores deveriam votar. Da mesma forma que alguns setores mais conservadores criticaram o voto de analfabetos permitido pela Constituição de 1988, o pressuposto de que só com os mais interessados votando teríamos uma melhor representação reflete a ideia de que só os intelectuais e mobilizados importam”.

Ele completa que a representação política deve ser um retrato de toda a sociedade. “Nesse sentido, para um país como o Brasil, a obrigatoriedade do voto ainda favorece a mobilização de parcelas que normalmente não tem grande interesse por política, mas que ao participar do processo eleitoral, em certo sentido se comprometem com ele”.

Polarização e extremos

Foto: Marcelo Casall Jr./Agência Brasil EBC
Barroso defende a implementação do voto facultativo no Brasil (Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil EBC)

Na entrevista concedida à Folha, o presidente do TSE declarou que mesmo sendo favorável ao fim da obrigatoriedade, o voto facultativo poderia incentivar a polarização no país. Segundo Barroso, os extremos não deixariam de comparecer às urnas, enquanto os moderados muitas vezes se ausentariam.

De acordo com Gonzalez, não há nenhuma relação entre o voto facultativo e uma suposta polarização. “Se isso fosse verdade, as eleições de todos os países que adotam o voto não obrigatório, como por exemplo as grandes democracias europeias, seriam polarizadas, e isto não acontece. Há alguns estudos no sentido de que o voto facultativo poderia prejudicar a participação de um eleitor menos consciente e que se sente afastado do sistema eleitoral”.

Ele também aponta que nem todo eleitor mobilizado seja necessariamente composto por extremos. “Provavelmente o voto facultativo favoreceria os eleitores de classe média, com mais recursos, em detrimento das camadas mais pobres”, avalia.

Já Cervi usa as eleições norte-americanas de 2020 como exemplo de que não há lógica na relação feita pelo ministro. “Olha o que aconteceu esse ano nos Estados Unidos. Foi a maior votação da história em uma eleição polarizada e com resultado apertado. Faz pouco sentido essa afirmação”.

O cientista político Paulo Peres observa que não é da alçada do STF propor reformas institucionais e nem promover debates públicos acerca de modelos eleitorais que juízes da Corte acreditem ser o ideal, e que esse papel cabe a deputados e senadores.

“Só mesmo experimentando durante um tempo razoável o voto facultativo é que poderíamos observar os seus efeitos. Por outro lado, o processo eleitoral não é um laboratório para experimentos políticos. A experiência que já temos do voto obrigatório, até onde percebo, tem mais efeitos positivos do que negativos”, assegura.

Ausência nas urnas

O eleitor que não compareceu na votação tem até 60 dias para justificar a ausência através do aplicativo e-Título ou pelo site do TSE. Se não justificar, terá que pagar multa de R$ 3,51 para cada turno em que se absteve. Se a multa não for paga, sofrerá penalidades previstas no Código Eleitoral. Por fim, em caso de ausência em três eleições consecutivas, sem apresentar justificativa ou pagar as multas, terá o título cancelado.

Peres menciona que apesar de a obrigatoriedade do voto e a regularização de quem se absteve não ser um procedimento rígido, as penalidades leves e a multa irrisória para quem não vota já existem há muito tempo, sem impacto significativo na proporção dos não-votantes ao longo das décadas.

“Ainda temos muito comparecimento, mesmo nesta eleição municipal, comparando-se com o contingente que, provavelmente, não votaria se houvesse a suspensão da obrigatoriedade do voto”, conclui.

Gonzalez observa que o Congresso tem aprovado, na maioria dos casos, anistias aos eleitores que não justificaram a ausência, e que existem poucas pessoas que tenham sido efetivamente punidas por não votar.

“É bom lembrar que a parcela da população que se preocupa com as consequências de não votar é pequena, já que punições como ficar proibido de retirar passaporte ou de receber empréstimos de bancos públicos não faz parte da realidade de muitas pessoas. Grande parte da população não é afetada por essas restrições”, constata.

--

--